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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Lembra de algo? (ou o Brasil venceu?)


"A demonização é importante porque permite que os problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos ´outros´, em geral percebidos como situados na ´margem´da sociedade. Ocorre aqui uma inversão costumeira da realidade causal: em vez de reconhecer que temos problemas na sociedade por causa do núcleo básico de contradições na ordem social, afirma-se que todos os problemas da sociedade são devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos problemas e a sociedade estará ,ipso facto, livre deles! Assim, em vez de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso deletério de alto risco de drogas é causado por problemas de desigualdade e exclusão, sugere-se que, se nos livramos deste uso de drogas (´diga não´,trancafiarem os traficantes), não teremos mais nenhum problema."

Jock Young, A Sociedade Excludente, Revan, 2002. p. 165.


sábado, 27 de novembro de 2010

Sede de Sangue.

Ela tinha apenas 13 anos e já estava morta. O casal chorava, como nunca imaginou ser possível. Os peitos apertavam, a garganta secava, os olhos transbordavam. Rezavam para que fosse um pesadelo. As pernas tremiam, o mundo rodava e a vista escurecia. Não há maior sofrimento para um pai ou para uma mãe, que enterrar o próprio filho, ou a própria filha.

Dias antes, eles se viram em um dilema. Tinham o poder de decidir se a menina poderia ou não se submeter a uma transfusão de sangue. O procedimento seria, em tese, capaz de salvá-la. Mas, haveria um custo: seria uma ofensa a Deus. Pode não ser o seu Deus ou o meu, mas o deles não perdoava o uso do sangue, como alimento.

Eles discutiram,ponderaram e chegaram à conclusão que parecia mais sábia. Ela talvez vivesse até os 100 anos, contudo o faria indignamente, aos olhos do criador. Os seus incertos dias na terra seriam seguidos pela aflição na vida eterna. Tê-la ao lado era mais confortável para os pais e, a curto prazo, melhor para a criança. Mas, no futuro, ela pagaria muito caro e por muito mais tempo. Sua expectativa de vida era insignificante, frente ao juízo final. Por pior que fosse a dor, era melhor suportá-la.

Os dois viam a menina no seu quarto vazio e nos seus brinquedos, abandonados. Lembravam dela a cada vez que viam seus livros fechados ou passavam por sua escola, repleta de alunos, mas sem ela. Pensavam no que disseram e deixaram de dizer, no que fizeram e deixaram de fazer, no que viveram e deixaram de viver com ela. A cada lembrança, impiedosamente, voltava o pensamento: "vocês decidiram assim". Não há maior sofrimento para um pai ou para uma mãe, que enterrar o próprio filho, ou a própria filha e saber que, talvez, pudesse ter evitado a tragédia.

A angústia não aumentava e um policial os visitou. Precisariam comparecer à delegacia, para prestar depoimento. Não bastava o que passaram e o que passavam. Precisariam relatar tudo novamente, para um delegado. Depois, para um juiz. Por fim, para sete jurados, diante de uma plateia ensandecida.

Teriam que responder a perguntas, sempre desconfiadas e acusatórias, dos policiais, dos promotores, dos juiz e dos jurados. Sem falar nos jornalistas. Teriam as vidas devassadas, as crenças questionadas e as próprias existências recriminadas. Diante de um grande crucifixo, os acusadores repetiriam que o país é laico. Os algozes diriam que é inaceitável uma religião que pregue vincule a dignidade está no sangue, embora fosse achassem recomendável uma que a põe no hímen.

Durante a execração pública, seriam obrigados a relembrar por "n" vezes tudo o que passaram e, por fim, seriam condenados à prisão. O mundo certamente estaria melhor. e sentiria mais seguro. Jamais alguém voltaria a morrer. A menina, do céu, celebraria, vendo que os seus pais foram punidos. Agradeceria a Deus se a pena usasse a maior severidade possível.

Para nós, virtuosos, cidadãos de bem, racionais por excelência, não bastaria o sofrimento de um pai e de uma mãe, que enterrou a própria filha, sabendo que, talvez, pudessem ter evitado a tragédia. Somente poderiamos dormir tranquilos, com a certeza de que os dois pagaram pelo que fizeram. Estariamos vingados.O sangue, finalmente, nos alimentaria. Por hoje.

Texto inspirado na Matéria "Entre a vida e a crença", da revista Istoé nº2141. Veja aqui.


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

E o criminoso ninguém viu

Por José Cláudio Souza Alves

"Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime
Coluna do Leitor 25 de novembro de 2010 às 17:39h

O leitor José Cláudio Souza Alves, sociólogo e pró-reitor de Extensão da UFRRJ, contesta as avaliações que predominam sobre a onda de violência no Rio.

Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.

Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.

O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.

De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.

Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.

Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.

Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.

Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.

Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?

Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.

Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.

Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.

A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.

Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?

Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.

Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

* José Cláudio Souza Alves e sociólogo, Pró-reitor de Extensão da UFRRJ e autor do livro: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense."

Original aqui.



O Rio de Janeiro continua lindo.

Por Marcelo Freixo.

"Violência é caso para inteligência


Quero conversar com os demais deputados para chamar a atenção para algumas coisas que fogem a obviedade. É claro que a situação no Rio é uma situação delicadíssima, inaceitável. Todos nós sabemos disso, mas cabe ao Parlamento um debate um pouco mais profundo, do que necessariamente faz, ou fazem os meios de comunicação. E, nesse sentido, quero pontuar algumas coisas. Primeiro, a venda fácil da imagem de que o Rio de Janeiro está em guerra. Quero questionar essa ideia de que o Rio está em guerra.

Primeiro, que as imagens, as armas, o número de mortos, tudo isso poderia nos levar a uma conclusão da ideia de uma guerra. Mas, qual é o problema de nós concluirmos que isso é uma guerra, de forma simplista? Não há elemento ideológico: não há nenhum grupo buscando conquistar o estado. Não há nenhum grupo organizado que busca a conquista do poder por trás de qualquer uma dessas atitudes. As atitudes são bárbaras, são violentas, precisam ser enfrentadas, mas daí a dizer que é uma guerra, traz uma concepção e uma reação do Estado que, em guerra, seria matar ou morrer. Numa guerra a consequência e as ações do Estado são previstas para uma guerra. Hoje, inevitavelmente, o grande objetivo é eliminar o inimigo e talvez as ações do Estado tenham que ser mais responsáveis e mais de longo prazo.

É preciso lembrar que existem outras coisas importantes que temos que pensar neste momento. Primeiro, não precisa ser nenhum especialista para imaginar que as ações das UPPs teriam essa consequência em algum momento. Não precisa ser especialista para fazer essa previsão. Era óbvio que em algum momento, ou no momento da instalação, quando não houve, ou num momento futuro, uma reação seria muito provável. Então, era importante que o governo estivesse um pouco mais preparado para esse momento. Dizer que está sendo pego de surpresa porque no final do ano está acontecendo isso não me parece algo muito razoável, porque era evidente que isso poderia acontecer.

Neste sentido, seria fundamental que, junto com a lógica das ocupações – eu não vou aqui debater sobre as UPPs, mas tenho os meus questionamentos –, acontecesse o incremento de um serviço de inteligência. Na verdade, o governo do Rio de Janeiro investe muito pouco no serviço de inteligência da polícia, investe muito pouco na estrutura de inteligência.

Vou dar um exemplo. Quem quer visitar a Draco, a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado, portanto, uma delegacia estratégica? Se alguém tem alguma dúvida de que a Segurança Pública não faz investimento nos lugares devidos, vá a essa delegacia, que deveria ser muito bem equipada e estruturada, com boa equipe, bem remunerada, com bons instrumentos. Essa delegacia é uma pocilga, é um lixo! Ela fica nos fundos da antiga Polinter, na Praça Mauá, sem qualquer condição de trabalho para os policiais. Estou falando da Draco, da Delegacia de Repressão às Ações do Crime Organizado, uma das mais importantes que tem o Rio de Janeiro.

Não adianta a Segurança Pública ser instrumento de propaganda política quando, na verdade, os investimentos mais importantes e necessários não são feitos nos lugares corretos, não atendem aos lugares corretos. Se o Governo do Estado do Rio de Janeiro investisse na produção de inteligência e na inteligência da ação policial, certamente, muito do que está acontecendo – não totalmente, para ser honesto, mas muito do que está acontecendo – poderia ser previsto. A ação poderia ser mais preventiva do que reativa.

As ações emergenciais diante uma situação como essa, é evidente que precisam ser tomadas. É evidente que a polícia tem que ir para rua, é evidente que você tem que ter uma atenção maior, tem que haver a comunicação com o Secretário permanente com a sociedade, isso ele está fazendo, eu acho que é um mérito, acho que ele não está fugindo do problema, está debatendo, isso é importante. Mas nós temos também que perceber nesse momento o que não funcionou porque não adianta nesse momento a gente falar: “a culpa é da bandidagem”, isso me parece um tanto quanto óbvio, mas, o que de responsabilidade tem no Poder Público que falhou e que não pode mais falhar? Uma boa parte dos prisioneiros do chamado “varejo da droga” foi transferida para Catanduvas, o que, diga-se de passagem, é um atestado de incompetência do nosso sistema prisional que transfere para Catanduvas, porque no Rio de Janeiro a gente não consegue manter os bandidos presos, afinal de contas, há uma série de problemas: de limitações, de uma corrupção incontrolável... agora, transfere para Catanduvas e aí a solução e o diagnóstico dados pela Secretaria de Segurança é que partiu de Catanduvas a ordem para que tudo isso aconteça. Enfim, agora que o problema é de Catanduvas, a gente transfere os delinquentes para Marte?

Então, qual é a solução? O que está acontecendo de fato nesse momento? Essa juventude do varejo da droga nunca se organizou em movimento de igreja; nunca se organizou em movimento estudantil - até porque nem para escola boa parte foi -, nunca se organizou em movimento sindical; não é uma juventude que tem uma tradição, uma cultura de organização, não tem. Agora, querer achar que eles passam a se organizar e organizar muito bem, que representam o tráfico internacional? É uma tolice. Essa juventude é uma juventude violenta que só entende a lógica da barbárie e é com a barbárie que eles estão reagindo a essa situação que está colocada no Rio de Janeiro, está longe, muito longe de ser o verdadeiro “crime organizado”.

Fica uma pergunta: quantas vezes a polícia do Rio de Janeiro, em parceria com a Polícia Federal, em parceria com a Marinha, em parceria com quem quer que seja, fez ações de enfrentamento ao tráfico de armas na Baía de Guanabara? Quantas vezes a Baía de Guanabara foi palco das ações de enfrentamento ao tráfico de armas e ao tráfico de drogas? Nunca! Não é feito porque não interessa o enfrentamento ao tráfico de armas, o que interessa é o enfrentamento aos lugares pobres, que são mais fáceis, mais vulneráveis para que essa coisa aconteça, e ficam “enxugando gelo”. Quem é que vende esse armamento para esses lugares? São setores que passam por dentro do próprio Estado, todo mundo sabe disso. A gente precisa interromper um processo hipócrita antes de debater qualquer saída de Segurança Pública. Nós temos que, nesse momento de grave crise do Rio de Janeiro, discutir as políticas públicas de Segurança que não estão funcionando. Não dá para o Governo chegar agora e dizer: “está ruim porque está bom”, “está um horror porque estão reagindo a algo que está muito bom”. É pouco e irresponsável diante do que a população está passando. Nós temos que, neste momento, ser honestos e mais republicanos e admitir onde falhamos para que possamos avançar, num debate que não pode ser partidário, mas responsável, com a população do Rio de Janeiro."

Original aqui.



Rio de Janeiro, gosto de você.

Por Luis Eduardo Soares

"A crise no Rio e o pastiche midiático

Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu--, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão-- quanto os jornalistas.
Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:
(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.
(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –em uma palavra, banido--, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?
(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.
Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:
(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?
Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?
Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.
A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.
A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.
(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?
Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.
Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia-- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.
Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.
Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.
(c) O Exército deveria participar?
Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.
E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.
(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?
Claro. Mais uma vez.
(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.
Palavras Finais
Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social --um dos melhores gestores do país--, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.
O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –as bandas podres das polícias-- prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.
Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?
As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.
E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.
Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino "gato orçamentário", esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.
O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.
Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa."

Original aqui.


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Os 10 gols mais bonitos do ano, para a Fifa

Os 10 gols indicados pela Fifa, para o Prêmio Puskas 2010.



Na minha modesta opinião, os 3 mais bonitos foram estes aí embaixo:

sábado, 20 de novembro de 2010

Diário de um novo escritor (ou diário de um sacoleiro)


Seis novos escritores, eu, Nicory, Bethania, Andréa, Alexandre e Firmiane embarcamos para Campo Grande-MS, onde aconteceria Congresso Nacional dos Defensores Públicos, com dois objetivos: discutir a Defensoria e distribuir a nossa obra, Redesenhando a Execução Penal. (compras pela Internet aqui) Não puderam seguir jornada Alan, de férias e Léo, que cuidava da mais bela torcedora mirim do Bahia.

Grande parte do grupo viajou no dia 15 de novembro e enfrentou a primeira dificuldade: o avião, que saía às 08:10, estaria atrasado e perderia a conexão. A chegada, prevista para as 12:00 ,só se efetivaria às 18:00. Surgiam dois problemas: o primeiro era almoçar e o segundo era conseguir um argumento, para evitar que um Defensor Cidadão pirracento, que saíria mais tarde e chegaria mais cedo, nos alvejasse com incontáveis chistes maldosos.

Pensamos em um modo de matar dois coelhos, com uma cajadada: um bom almoço de graça. Para efetivar a saída imaginada, precisavamos de duas coisas:
1) Conseguir o almoço de graça;
2) O almoço tinha que ser bom.

O primeiro passo foi alcançado, graças à participação dos colegas, especialistas em Direito Civil, junto à companhia aérea. O segundo, porém, estava complicado. O restaurante indicado pela companhia era bem vagabundo e caro! A comida era ruim e pouca. Tudo parecia perdido, quando surgiu uma nova estratégia. Plano B: "vamos mentir". Assim, combinou-se a versão. A comida a quilo de segunda virou rodízio de comida japonesa, com Chopp liberado. Funcionou com perfeição. Ninguém precisava saber que, na verdade, comemos amendoins.

No dia 17 começariam as palestras e as vendas de livros. Conseguimos 2 horários, o primeiro no mesmo dia, das 17:30 às 19:00hs. Após um reconhecimento da área, vimos que havia um pequeno stand, com 2 mesas, para ser dividido entre os livros de Defensores . Existiam , por outro lado, stands permanentes, mas somente para editoras específicas, fotos e venda de bijuterias.

Assistimos as palestras e fomos à luta. No começo, o movimento estava fraco, mas não desanimamos. Ao contrário, bastou uma pequena provocação à mesa do lado, dizendo que a minha vendia mais e o bicho pegou. A competição foi acirrada e as táticas de atração do público cada vez mais ousadas. Vencer era questão de honra. De um lado, eu, Nicory e Andrea. Do outro, Firmiane, Bethania e Alexandre. Obviamente, a minha mesa vendeu mais, pois eu sou Bahia e não jogo pra perder. Na verdade, todos nós somos Bahia, de modo que todos nascemos para vencer, exceto Bethania, nascida no Rio, que é Fluminense (mas na Bahia, deve ser Bahia, já que é muito inteligente, sensata e não quer ser vice do brasileirão).

No dia seguinte havia outro desafio. A nossa hora e meia coincidiria com a reunião temática da Comissão de Execução Penal, a milhas dali. Não desanimamos. Formulamos a estratégia: dois agentes, eu e Bethania, iriamos divulgar o livro na reunião e depois voltar correndo para o stand. A execução falhou. Bethania esperava que eu ligasse antes de ir e eu não esperava nada. Meu telefone não funcionava. Assim eu fui e ela esperou, esperou, esperou... e fiquei sozinho.

Na volta, conhecemos Geraldo Prado, grande jurista carioca, que levou o livro autografado. Ele tinha prometido nos presentear com uma obra dele, o que não fez. Sacanagem, Geraldinho! De qualquer modo, eu comprei o seu "Em torno da Jurisdição". Afinal de contas, o calote foi pequeno, mas a simpatia do cara era grande e a qualidade do livro extratosférica!

Depois, eu, Alexandre e Bethania escapulimos, para ver algumas palestras. Um comentário me orgulhou muito: "Rafson, Geraldo Prado já leu seu artigo, pois repetiu muita coisa que você defende". Apesar de o palestrante ter recebido o livro apenas alguns minutos antes, preferi acreditar em uma leitura dinâmica, porque... porque sim, pô!

De tarde, novo desafio. Não teriamos mais stands de venda. Após longos debates, chegamos a uma conclusão razoável. Havia um espaço destinado a fotos, porém, nenhum fotógrafo. Nas circusntâncias, era um latifúndio improdutivo. A injustiça social era evidente e nossa consciência democrática nos impeliu à solução: ocupar, produzir e resistir! Invadimos pacificamente o espaço e fincamos nossa bandeira!

As forças repressoras não chegaram. Foi no assentamento que o melhor escritor brasileiro, na área de Processo Penal, Aury Lopes Jr, obteve o seu exemplar. Lá ,ainda contamos com 2 apoios importantes: Gil, o Defensor Cidadão, e a carioca Renata. Os dois abusaram do carisma e convenceram dezenas de pessoas a adquirir o livro. Quando restavam apenas quatro exemplares, fomos para as palestras.

Enquanto Aury falava, eu comentei com Bethania: "Ele já leu o seu artigo, pois está repetindo muita coisa que você defende". A princípio, imaginei que ela repetiria a minha reação: optar por acreditar, apesar de ele ter adquirido o livro minutos antes, porque... porque sim. Acho até que ela fez isto, pois sorriu contente, mas depois de alguns minutos, emendou: "Rafson, a gente tá se achando"!

Durante a palestra vendemos mais 3 livros. Sim, as pessoas nos cutucavam e perguntavam: "ainda tem?". Uma das pessoas que fez isto foi o grande escritor Rodrigo Duque Estrada. Depois, entrei em um stand da Lumen, para adquirir um ótimo livro de Denis Sampaio (que também levou o nosso), A verdade no Processo penal, e passei por outra situação esdruxula. Uma mulher viu o último exemplar na minha mão e entabulou o diálogo:

- Redesenhando a Execução Penal... Que legal! De quem é?
- Meu.
- Hahaha!Não! Eu quero saber de quem é.
- É meu e de mais 7 Defensores.
- Olhe, eu sei que é seu. Quero saber quem é o autor.

Apontei para o meu nome na capa e disse: "Este, pelo menos, sou eu".

Refelexos do não uso de paletó e gravata. Parece que é a roupa que escreve. Ela ainda perguntou se podia comprar no cartão, pois não tinha dinheiro. Quase respondi perguntando: "Ô, moça! A gente teve que fazer uma ocupação pacífica, para conseguir stand e você acha que vamos ter máquina de cartão?" Nem falei, nem ela comprou.

A última venda ocorreu sem que eu visse. Comentamos com Renata que só restava um. Ela disse pra deixar com ela, sumiu e voltou minutos depois com o dinheiro. Resultado: Os 80 exemplares levados foram vendidos, só com a cara (de pau) e a coragem. No final, cada um recebeu 100 reais e minhas costas doíam de andar com a mochila cheia de livros. Os custos foram mais que o dobro. Financeiramente, fomos um fracasso, mas, ideologicamente, um sucesso absoluto.Temos um sonho: ajudar a mudar a barbárie que é a nossa execução penal. Acho que demos um passo.

ps: se deseja comprar o livro, não se desespere, está disponível pela internet, no link que pus lá em cima e, para facilitar pro freguês, repito aqui.

Ressocialização

É um erro criticar o termo "ressocialização" com o argumento de que os criminosos nunca foram socializados, como se diz. É óbvio que eles foram. Não existe apenas um tipo de organização familiar, um tipo de ofício e um quadro de valores. O problema da "ressocialização" é o autoritarismo na imposição de modelos de comportamentos ( autoritarismo que acompanha a crítica citada). Quem disse que é esta ou aquela a espeécie de comportamento adequada?

Por que o pobre tem que aceitar passivamente os sub-empregos que são oferecidos, a impossibilidade de ascenção na carreira e a disciplina imposta? Por que ele tem que fazer somente o que o rico quer que ele faça (e acha indigno fazer por conta própria)? Por que o preso tem que agradecer por costurar bolas e a presa por ser manicure?

Este vídeo mostra bem o processo de criminalização da pobreza e tentativa de conformação de condutas. Mostra também, porque a Execução Penal tem o fetiche pela disciplina e a ordem. Se o pobre percebe o que está acontecendo, dá nisto.





ps: a dica do vídeo foi do grande tricolor João Gustavo!

CONSCIÊNCIA NEGRA 3

Presos, por cor da pele, no Brasil, segundo o Ministério da Justiça:

Brancos 153.495
Amarelos 2.637
Indígenas 715
Negros (Pretos e Pardos) 248.433 (61,2%)

População do Brasil, segundo o IBGE

Brancos 91.248.092
Amarelos 761.583
Indígenas 734.127
Negros (Pretos e Pardos) 75.872.428 (44,6%)

Presos por cor da pele, na Bahia, segundo o Ministério da Justiça:

Brancos 1306
Amarelos 9
Indígenas 12
Outros 105
Negros (Pretos e Pardos)7792 (85,32%)

População da Bahia, segundo o IBGE

Brancos 3.297.989
Amarelos 23.796
Indígenas 64.240
Negros (Pretos e Pardos) 9.574.018 (73,1%)

CONSCIÊNCIA NEGRA 2

Retirado do Site do CEAFRO.

"SUS mostra que número de negros assassinados é o dobro de brancos
[16-11-2009]

Em depoimento à CPI da Violência Urbana, o economista Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, divulgou estudo que mostra que o número de negros assassinados no Brasil é duas vezes maior que o de brancos, apesar de cada grupo representar cerca de metade da população do País.

A conclusão é baseada em dados do Sistema Único de Saúde (SUS) referentes aos anos de 2006 e 2007. Nesses dois anos, cerca de 60 mil negros foram assassinados e cerca de 30 mil brancos. As pesquisas mostram que entre as crianças e jovens de 10 a 24 anos se constata a maior diferença entre os homicídios de negros e brancos.

Marcelo Paixão afirmou que os jovens negros estão mais expostos e que as desigualdades só aumentaram nos últimos anos. "É preciso identificar que as causas disso estão relacionadas ao racismo institucional, às políticas de segurança pública que ainda entendem a população negra como inimiga do estado, à baixa qualidade da escola desses jovens, que está relacionada com uma maior exposição à pobreza; quer dizer, é um círculo de desgraças."

Ele afirmou que o atual governo não tem disposição política para enfrentar o racismo nas políticas de segurança pública.

Para o deputado Luiz Alberto (PT-BA), autor do requerimento de convocação do depoente, o atual governo não adota políticas de cunho racista. Ele sustentou que as instituições brasileiras foram forjadas em uma história de escravidão, e, portanto, foram contaminadas por uma visão racista da sociedade brasileira.

Auto de resistência
A presidente do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra da Bahia, Vilma Reis, trouxe à comissão um dossiê elaborado pela campanha "Reaja ou será morto, reaja ou será morta". A campanha, iniciada em 2005 na Bahia, denuncia a matança de jovens, na sua maioria negros, por agentes do Estado e paramilitares.

Ela lembrou que, a partir de 1969, com a vigência do AI-5, as polícias militares passaram a utilizar o chamado "auto de resistência" como o álibi para a prática de assassinatos, sob pretexto de resistência à autoridade policial. Ela estimulou a CPI a instigar os três Poderes a acabarem com o auto de resistência, o que para ela tiraria o álibi de policiais que se sentem livres para matar com a certeza de que não vão ser investigados.

"O auto de resistência, no nosso entendimento, é uma licença para matar, porque as pessoas estão sendo executadas sumariamente, sem qualquer chance de defesa. Quando a perícia é feita, é verificado que essas pessoas estavam em baixo de cama, dormindo, que a casa foi destelhada, que a casa foi invadida, e elas morreram com um tiro de misericórdia."

Segundo Vilma Reis, os assassinatos de negros se estendem a Pernambuco, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás e outras metrópoles do País.

Ela denunciou também os programas regionais de televisão que violam direitos humanos ao expor pessoas sob custódia do Estado à execração pública, promovendo sua condenação sem que tenham sido julgadas. Em sua opinião, a proibição a esses tipos de programas não é censura.

A presidente defendeu ainda que os recursos do Pronasci não sejam utilizados na compra de armamentos, viaturas e construção de novos presídios.

http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=142803
Fonte: Agência Câmara"

CONSCIÊNCIA NEGRA

Copiado e colado do blog do grandee juiz Gerivaldo Neiva .

"Uma lembrança em homenagem à consciência negra: a Revolta dos Malês

Cartilha da Escola Olodum, sobre a Revolta dos Malês

Na noite do dia 24 para 25 de janeiro de 1835, um grupo de africanos escravos e libertos ocupou as ruas de Salvador, Bahia, e durante mais de três horas enfrentou soldados e civis armados. Os organizadores do levante eram malês, termo pelo qual eram conhecidos na Bahia da época os africanos muçulmanos.
Embora durasse pouco tempo, apenas algumas horas, foi o levante de escravos urbanos mais sério ocorrido nas Américas e teve efeitos duradouros para o conjunto do Brasil escravista. Centenas de insurgentes participaram, cerca de setenta morreram e mais de quinhentos, numa estimativa conservadora, foram depois punidos com penas de morte, prisão, açoites e deportação. Se uma rebelião das mesmas proporções acontecesse na virada para o século XXI em Salvador, com seus quase 3 milhões de habitantes, resultaria na punição de cerca de 24 mil pessoas. Isso dá uma idéia da dramática experiência vivida pelos africanos e outros habitantes da Bahia em 1835.
A rebelião teve repercussão nacional e internacional. No Rio de Janeiro uma notícia detalhada chegou ao público por meio de periódicos que publicaram o relatório do chefe de polícia da Bahia. Temendo que o exemplo baiano fosse seguido, as autoridades cariocas estreitaram a vigilância sobre os negros locais, sobretudo na Corte imperial. Além de disseminar o medo e provocar o aumento do controle escravo em todo o Brasil, os rebeldes também reavivaram os debates sobre a escravidão e o tráfico de escravos da África, agora vistos com olhos mais críticos. Em Londres, Nova York, Boston e provavelmente outras cidades da Europa e das Américas, a imprensa também publicou relatos do levante A África teve conhecimento do fato por intermédio dos numerosos libertos para ali deportados como suspeitos pelas autoridades baianas.
A seriedade com que as classes dirigentes encararam a rebelião se revela na extensa devassa que se fez. Esses processos resultaram numa formidável coleção de documentos sobre o movimento e os africanos que viviam na Bahia, fossem rebeldes ou não. Mais uma vez a história dos dominados vinha à tona pela pena dos escrivães de polícia. A qualidade e a quantidade desses documentos tornaram-nos um testemunho extraordinário sobre a escravidão urbana e a cultura de origem africana nas Américas. Temos aí, por exemplo, mais de duzentos in­terrogatórios, nos quais, apesar do óbvio constrangimento da situação, os africanos falaram, além da rebelião, de aspectos de sua vida cultural, social, econômica, religiosa, doméstica e até amorosa.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003."

APOIO À DEFENSORIA PÚBLICA-PR

"DEFENDA A DEFENSORIA PÚBLICA!

MOVIMENTO DE APOIO À CRIAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO PARANÁ



O Núcleo de Direito Processual Penal da UFPR convida a comunidade paranaense a participar do ato de apoio à criação da Defensoria Pública em nosso Estado, que acontecerá no dia 24 de novembro de 2010, às 10 horas, no Salão Nobre da Faculdade de Direito desta Universidade (Pça. Santos Andrade, 50, 1º andar).



Nesta oportunidade, estarão reunidos autoridades, professores, alunos e cidadãos para exigir dos poderes públicos a criação deste órgão que tem por função prestar assistência jurídica à população carente.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, têm sido inglórias as lutas para a estruturação da Defensoria Pública no Paraná e esta desídia com a defesa dos carentes tem suas consequências, uma delas se verifica no dado estatístico de que nosso Estado possui o maior número de presos provisórios da Federação. A comunidade paranaense aguarda há vinte e dois anos a criação da Defensoria e não pode esperar mais.

O ato do dia 24 tem o objetivo lançar o MOVIMENTO DEFENDA A DEFENSORIA PÚBLICA!, que contará com a participação de todos que estão dispostos a lutar pela criação e correta implementação da Defensoria.



COMPAREÇA E PRESTE SEU APOIO À CRIAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA!"

Eu nem acredito que 22 anos após a Constituição, ainda seja necessário fazer manifesto para implantar a Defensoria Pública! Paraná e Santa Catarina estão fazendo vergonha!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Novo Livro, na Internet


Olá, Pessoal!

O livro "Redesenhando a Execução Penal: a superação da lógica dos benefícios", coordenado por mim e Daniel Nicory, está disponível para compra pela internet, no link abaixo

http://www.faculdadebaianadedireito.com/site/livros.html

Transcrevo ainda o prefácio de Alexandre Morais da Rosa e a apresentação, minha e de Nicory.

Prefácio:

Defender acusados no Brasil de hoje é quase uma atividade clandestina. O estigma de defender “bandidos”, buscar a efetivação de Direitos Humanos, passa a ser o discurso dos iludidos pela crença de que o Direito Penal e a pena servem para alguma coisa a mais do que uma resposta estatal agnóstica. Mas lidar com gente que acredita, piamente, no que se parece, no semblant, evidente, é dilema de quem atua nesta seara. Claro que não se trata de acreditarmos numa posição antecedente de “anjos” e “demônios”, dado que este maniqueísmo é próprio de uma compreensão religiosa, não laica, da qual devemos sempre suspeitar, especialmente da pretensão universal de bondade. Neste imaginário coletivo e universal de que a segurança coletiva prepondera sobre direitos e garantias individuais postam-se os defensores das regras de todos, a saber, dos que hoje estão submetidos ao poder estatal, via pena, e daqueles que hoje gozam ao verem o mal infligido, embora possam ser os submetidos de amanhã.

Neste contexto a sociedade do espetáculo de que nos fala Guy Debord arregimenta um sistema de instituições aptas a tirar proveito, em conluio com a classe política, da gestão do medo, via sistema penal, transformando o fato violento em produto, ou seja, o crime virou produto e vende muito! Basta ver o quanto se dedica nas programações televisivas e de jornais às notícias “policiais”. Pensar por aí pode ser uma das chaves para entender que o sujeito que se posta na defesa intransigente das regras do jogo é tachado, não sem razão, de “advogado do diabo”.

Com efeito, em 1983 o Papa João Paulo II extinguiu a figura do “advogado do Diabo” (advocatus diaboli) nos processos de Canonização, deixando que tudo ficasse a cargo do Promotor da Fé (Promotor Fidei). Este último, portanto, congrega em si mesmo os atributos para, sem contraditório, reconhecer os “Milagres” e opinar pela canonização. Com a exclusão do contraditório a Igreja Católica conseguiu acelerar os processos de canonização, pois quem tinha a função de permanentemente desconfiar, apontar os equívocos, as dúvidas, dos invocados “Milagres”, foi consumido. A aceleração na produção de novos “beatos” e “santos” se fez ver logo em seguida. Enquanto no período de 1900 até 1983 haviam ocorrido 98 canonizações, de 1983 até hoje ocorreram mais de 500, “democratizando” os “milagres” (da multiplicação, quem sabe) pelo mundo, na busca, frenética, por novas conversões... Este fato pode marcar o que se passa, desde sempre, com a Execução Penal, dado que neste processo, administrativizado, a figura do advogado/defensor é apenas tolerada e não admitida.

Na verdade, na eterna e imaginária da luta do bem contra o mal, de gente que precisa se tratar, porque coloca no outro, muitas e muitas vezes, suas angústias pessoais, mormente de salvação da sociedade – e todos salvadores são paranóicos e canalhas – afastando-se de uma compreensão adequada democraticamente de respeito pela dignidade humana. Logo após terminar uma fala sobre a necessidade de respeito aos direitos dos presos, em Florianópolis, no ano de 2009, um respeitável iludido da “Guerra contra o crime”, sem mais, aumentando a voz, disse-me: “Afinal de que lado você está?” Claro que antes disse não haver entendido nada do que havia enunciado. Ele tinha razão duas vezes. A primeira é porque quando o sujeito objeta do seu lugar sempre está com a razão. Em segundo, não tinha capacidade de entender o discurso porque, de fato, embora fosse um congresso de Direito Penal, era jejuno em diálogos democráticos, fruto de uma educação bancária e que acredita ingenuamente na pena. Adotava a posição do sectarismo e maniqueísmo próprios de quem continua na sua cruzada do “Bem”, procurando defenestrar qualquer representante do “Mal”. Por certo eu teria sido queimado numa fogueira qualquer se isto tivesse se dado alguns anos antes, porque lidar com gente fanática é complicado . Mas não. A platéia, formada em alguma medida por psicanalistas, entendeu o recado. Por isso terminei parafraseando Lacan : “é isto; se é que me entendem”.

Por isto que pode causar um certo desconforto aos “sanitaristas jurídicos” a defesa intransigente dos Direitos Fundamentais de todos – presos ou não. E neste livro, organizando por gente que ocupa o lugar de defensor, num verdadeiro Estado de Exceção que virou regra (Benjamim e Agamben), pode-se buscar reflexões argutas sobre o que se passa no Real desta violência diária. O texto perpassa temas instigantes, sobre o tempo da pena, a duração da medida, a garantia de direitos, garantismo, paradigma restaurativo, bem assim a luta intransigente pela efetivação de uma democracia processual na Execução Penal.

Anoto, ainda, que os defensores Rafson Ximenes, Daniel Nicory, Andréa Tourinho, Alan Roque Araújo, Alexandre Alves, Bethania Ferreira, Firmiane Venâncio e Leonardo Toledo merecem o meu respeito e admiração. O texto fala por si. Recomendo a leitura.



Alexandre Morais da Rosa

Doutor em Direito. Professor da UFSC. Juiz de Direito.

http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com

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Apresentação:

A supremacia da Constituição, a prevalência e centralidade dos Direitos Fundamentais e o pensamento a partir de princípios e da ponderação de interesses, que constituem a essência do discurso do chamado “Neoconstitucionalismo”, que se diz “pós-positivista”, invadiu todos os ramos da dogmática jurídica nas últimas décadas, muito embora alguns desses elementos já decorressem naturalmente do próprio positivismo jurídico, sobretudo de suas formulações mais bem acabadas, do Século XX, por Kelsen, Bobbio e Hart.

Por isso, mesmo que esse conjunto de afirmações não seja uma completa novidade na teoria jurídica, é inegável que o “Neoconstitucionalismo” teve grande sucesso com suas propostas, favorecendo uma desejável renovação da doutrina das disciplinas dogmáticas, que se chamou de “constitucionalização” do direito civil, do direito penal, e do direito processual, entre outros.

No entanto, um dos ramos em que essa renovação doutrinária tem sido mais difícil é a Execução Penal. Primeiro, porque a própria produção científica na área ainda é muito tímida. Segundo, porque os principais manuais da área, apesar de muito competentes para os seus propósitos, partem, na maior parte dos casos, de premissas divorciadas axiologicamente do quadro de direitos fundamentais protegido pela Constituição, embora encontrem grande ressonância entre os partidários da ideologia da defesa social.

Não dá para negar que alguns autores vêm mudando esse quadro com obras críticas e atentas à renovação constitucionalista da dogmática jurídica, e entre eles merecem destaque Alexandre Morais da Rosa, que aceitou o convite para redigir o prefácio deste livro, Salo de Carvalho e Rodrigo Duque Estrada.

Se o presente trabalho segue, em linhas gerais, os caminhos já trilhados pelos autores indicados acima, ele traz como novidade um olhar que até o momento não tive a devida visibilidade: o olhar dos defensores públicos.

Os principais manuais sobre Execução Penal são assinados por membros do Ministério Público, e aqui destacamos os seguintes: Júlio Fabbrini Mirabete, Renato Marcão e Haroldo Caetano da Silva. Todos, como dito, competentes em seus propósitos, embora representem um espectro ideológico bastante abrangente: alguns são mais garantistas, outros são partidários das teorias da defesa social.

Além deles, os precursores de um discurso mais constitucionalizado acerca da Execução Penal (entre outros, os já citados acima) são juízes ou advogados. Embora os advogados cumpram bem o papel de sustentação do discurso sob a ótica da defesa na área criminal, o olhar peculiar do Defensor Público – que trata da defesa dos desfavorecidos econômica e socialmente – merece um espaço próprio no cenário. Até o momento, com a notável exceção de Rodrigo Duque Estrada, os defensores ainda ocupam esse espaço.

Karl Popper afirma, com extraordinária lucidez, que a objetividade da ciência não depende da objetividade do cientista, mas da livre discussão de ideias no espaço público. Nesse contexto, em que todas as teorias são submetidas a testes implacáveis, as mais frágeis caem mais rapidamente, e mesmo as mais bem aceitas e mais bem fundamentadas têm prazo de validade, e estão sujeitas a desmentidos e ao surgimento de teses melhores. Se o espaço de discussão não é livre, ou a sua diversidade é insuficiente, a objetividade da ciência começa a ficar comprometida.

Os coordenadores desse trabalho não têm a pretensão da neutralidade, impossível em qualquer atividade humana, mas asseveram que todos os autores, muito embora partam de premissas axiológicas claramente demarcadas, mantiveram o compromisso, a seriedade acadêmica e a atenção para possíveis teses contrárias, refutando-as quando necessário.

A tomada de posição é explicitada já no título do trabalho, quando se propõe a superação da lógica dos benefícios. Como asseverou o compositor Belchior, as palavras são navalhas e ferem. Quando todo o discurso dominante, inclusive nas Defensorias Públicas, se refere aos direitos do apenado, como uma caridade, um favor, é óbvio que haverá consequências. Vencer este obstáculo simbólico e poderoso é essencial para construir um novo modelo.

Isso, no entanto, como acabou de ser dito, não é o mais importante na presente publicação: a relevância desta obra consiste no enriquecimento do espaço público de discussão de ideias com um olhar que andava negligenciado: o olhar da defesa dos pobres, que, na Execução Penal, compõem a esmagadora maioria dos encarcerados e dos submetidos a penas restritivas de direitos.

Se as teses contidas no presente trabalho serão bem aceitas, só a própria comunidade científica dirá, com a passagem do tempo. No entanto, os coordenadores, em nome de todos os autores, agradecem à Editora Juspodivum e à Faculdade Baiana de Direito que, por meio de seu selo editorial, viabilizaram a publicação deste trabalho, apostando exatamente na proposta de diversificar o discurso sobre a Execução Penal no Brasil, para que os leitores tirem as suas próprias conclusões.



Salvador, Setembro de 2010.



Rafson Saraiva Ximenes

Daniel Nicory do Prado


domingo, 14 de novembro de 2010

Bora Bahea!


Diálogo entre dois grandes amigos, que possuem uma grave diferença ideológica: um é tricolor e outro vice de tudo, inclusive da eleição da musa do brasileirão. Aconteceu na noite de ontem, após o maior time baiano garantir seu retorno à primeira divisão.

- Bora Bahea!
- Bem vindo! Aqui em cima o bicho pega!
- Eu sei. Eu já ganhei.







Para terminar, a versão da torcida japonesa.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Palhaçada.

O circo pegando fogo, a lona rasgada no alto, no globo os artistas da morte e ainda tem gente preocupada em descobrir se o palhaço sabe escrever. Nada de novo, porém. Há uma fixação constante na busca do castigo para os analfabetos.



domingo, 7 de novembro de 2010

A 11 é minha.



Tinha 16 anos e jogava Handball. Gil, o treinador, me chamou para uma partida do time até 21 anos. Magricelo e humilde, cheguei para o jogo e escolhi, aleatoriamente, meu uniforme. Perguntei aos mais velhos se alguém usava o número que havia apanhado e ninguém disse nada. Me vesti e já começava o aquecimento, quando chegou Léo Tisott, um dos craques do time e um dos meus idolos no esporte. Olhou para mim e disse, educadamente:

- A 11 é minha.

Apelei para os seus bons sentimentos:

- Pô, Tisott! Até o calção tem o número! Eu já vesti tudo, você não pode usar outra camisa?

O técnico não deixou ele responder:

- Rafson, troque o uniforme. Respeite a hierarquia!

Cabisbaixo e humilhado peguei outro número.

No dia seguinte, havia um jogo do campeonato estudantil, mas desta vez era para o povo da minha idade. Eu era o artilheiro do time no campeonato, principalmente porque os dois melhores jogadores daquela faixa etária, Angelo e Ceará, tinham saído da escola. No vestiário, vi um companheiro mais novo, todo pimpão e serelepe, vestido com a 11. Camisa, calção, tudo. Resolvi fazer piada:

- A 11 é minha!
- Mas, Rafson, eu já estou todo vestido.
- É brinc...
- Dê a camisa pra ele! Respeite a hierarquia!

O treinador interrompeu a brincadeira, antes que eu completasse a frase e saiu. Sem reação, terminei usando o número 11 e nunca tive coragem de contar que nem fazia questão dele. A partir de então, adotei a camisa, até em respeito ao pobre que teve que trocar todo o uniforme.

Fui convocado para a seleção baiana e usei o 11. No futebol, assumi a imortal 11 do Missão Percevejo (saiba mais aqui), apesar de jogar como autêntico número 9 ( fenômeno semelhante aconteceu com outro boleiro tão bom quanto eu: aquele baixinho de língua presa, o Romário). Depois, quando defendi o Carrossel da Liberdade, na faculdade de direito, também jogava com a 11. No vôlei, conquistei a 11, na mítica seleção da Copa Zeca (saiba mais aqui, aqui e aqui).

Recebi um duro golpe na minha carreira esportiva, quando o Carrossel da Liberdade acabou e fui convidado a defender a equipe dos Escolhidos de Che. A proposta, feita pelo cartola Sérgio, deu-se nos seguintes termos:

- Rafito, você já é formando e a barriga está crescendo. É um autêntico jogador em fim de carreira. Está na hora de defender times pequenos. Que tal disputar o próximo torneio pelos Escolhidos de Che?

Como era verdade e os caras são gente boa, aceitei. Achei que nem precisaria brigar pela 11. O número preferido de quase todos naquele time vermelho era o 13. Hoje, talvez, o 50 também seja bastante concorrido. Mas, nem foi me dada opção de escolha. Sérgio me entregou a 6, já que eu "jogava pela esquerda". Percebi que realmente estava em declínio. Não consegui sequer manter o número da sorte. E a hierarquia, Sérgio?

Mas, porém, entretanto, todavia e, principalmente, contudo, o mundo da voltas. Quando eu menos esperava, o 11 voltou à minha vida. Desta vez, nem foi preciso uma competição esportiva. O fato é que, na próxima quinta-feira, dia 11, do mês 11, de 2010, o ano que antecede 2011 lançarei, com mais 07 amigos, o livro "Redesenhando a Execução Penal- a superação da lógica dos benefícios", durante o seminário de mesmo nome (Zagallo forçava mais a barra com o 13 e ninguém reclamava!). A obra tem 10 artigos, mas se contarmos com o excepcional prefácio de Alexandre Morais da Rosa, são 11.

As inscrições para o seminário estão sendo feitas na Faculdade Baiana de Direito, em Salvador, e custam R$20,00. O livro custa R$30,00. Quem comprar o livro na hora da inscrição pagará apenas R$40,00. Não perca! Além de conhecer várias teorias sobre a execução das penas e visões diferentes das apresentadas nos programas de TV populistas, você ainda verá em ação o craque da camisa número 11.

Ou o cara de pau da camisa número 11, se preferir.


mais sobre o seminário e sobre o livro aqui , aqui e aqui.


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Você sabe com quem está falando?

(Antes de ler o post, o livro "Redesenhando a Execução Penal", está disponível aqui.)


"Você sabe com quem está falando?" parece uma simples frase. É mais que isto. Trata-se de um traço autoritário da sociedade brasileira. Ela funciona para demarcar diferenças e posições hierárquicas. O seu uso pode ser traduzido como "me respeite, pois não sou do seu nível", ou, melhor ainda, "nós não somos iguais".

É interessante que esta fabricação de estamentos acontece inclusive entre pessoas que aparentemente estão na mesma classe social. Por exemplo, um motorista pode dizer a outro: "você sabe com quem está falando? sou motorista do senador". Assim, todos estão sujeitos a usar ou receber a frase maldita. Mais que isto, todos podem pensar que não pertencem a uma classe subalterna, pois são vinculados a extratos superiores. É fantástico para quem está em posição de mando.

A expressão não precisa ser usada verbalmente. Ela possui seus símbolos, que a substituem com perfeição. Antigamente, havia o uso de bengalas, fraques e bigodes, que serviam para marcar a posição social. Era menos traumático, pois o "superior" não precisava falar as palavras pernósticas, para que o "inferior" soubesse que deveria reverenciá-lo. Mas, o sentido permanecia.

Hoje, embora existam menos símbolos, eles ainda estão aí. Veja, por exemplo, como funciona um Tribunal. Advogados, Defensores, Juízes e Promotores usam paletó e gravata, para se diferenciar dos "servidores" (como se defensores, juízes e promotores não fossem também servidores) e do povo. Não satisfeitos, usam pequenos broches, as insígnias, para se diferenciarem uns aos outros Estão avisando para todos: "saibam com quem estão falando".

A farda serve para exigir determinado tratamento. Diante de alguém com aquela fantasia, você deve usar sempre a palavra "doutor". Do contrário estará sendo desrespeitoso. A necessidade do tratamento tem a mesma função: "não me chame pelo nome, pois eu não sou da sua laia". Às vezes, é obrigatório se vestir de determinada maneira, para demonstrar a subordinação Algumas sessões de julgamento, apesar de públicas, exigem que a platéia também use paletó e gravata. Afinal, para se apresentar às "santidades" do local, você tem que seguir o ritual. Nesses casos, entretanto, é comum que os semi-deuses usem togas, para continuarem diferentes dos mortais.

Pensando nisto, lembrei de uma amigo jornalista, que reclamava revoltado, porque foi barrado no Tribunal de Justiça da Bahia, quando pretendia entrevistar o presidente do STF. É que, mesmo para fazer a entrevista para um jornal impresso, o repórter devia usar terno e gravata. Só conseguiu trabalhar porque o próprio tribunal emprestou um para ele. O recado era claro: "você sabe quem vai entrevistar? não é qualquer um pra você vestir o que quiser".

Se você acha que o paletó e a toga são bonitos, tudo bem. Se você costuma exigir que os outros te chamem de Doutor ou Excelência, tá tranquilo. Se você exige reverências, beleza. Não diga, porém, que está sendo democrático, ou favorável à igualdade.

Saiba que tudo isto tem historicamente uma utilidade. Quando praticar esses rituais, construa uma imagem mental, do seu rosto dizendo, silenciosamente, mas com a mesma arrogância, com o mesmo autoritarismo, com a mesma petulância e com o mesmo elitismo, as seguintes palavras:

"Você sabe com quem está falando?"

ps: Sobre o tema, recomendo o livro "Carnavais, Malandros e Heróis", de Roberto da Matta, editora Guanabara.