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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Pessoal dos Direitos Humanos



Um menino de 15 anos foi espancado, deixado nu e amarrado a um poste pelo pescoço, com uma corrente de bicicleta. A apresentadora de um telejornal nacional comentou o caso. Começou atacando a vítima, "um marginalzinho", "com a ficha mais suja que pau de galinheiro", que "preferiu" fugir a registrar ocorrência. Disse que era compreensível a atitude do grupo de agressores, apelidado por ela de "os vingadores", pois agiam em legítima defesa coletiva dos cidadãos de bem, assustados com a violência. Por fim, lançou uma campanha para "os defensores dos direitos humanos" que "se apiedaram do marginalzinho": "faça um favor ao Brasil, adote um bandido". 

Poucos dias depois do fato e da repercussão, o mesmo garoto teria sido preso pela polícia, acusado de roubo. Algumas pessoas que aplaudiram o discurso anterior, logo apareceram para cobrar: "cadê o pessoal dos direitos humanos, agora? Vão dizer que ele é vítima?". São perguntas de quem, assim como a jornalista, não consegue ver fenômenos complexos do modo que eles são, complexos. A nova polêmica envolvendo o menino não contraria os argumentos do "pessoal dos direitos humanos". Ao contrário, os reforça. 

Talvez para quem nunca teve contato com o sistema penal, seja difícil compreender que o simples fato de ser chamado de "marginalzinho" já tem força suficiente para ensejar medo e desejo de fuga. Imagine ser espancado e amarrado, sem roupas, a um poste. O menino foi estigmatizado e todos acreditaram na sua ficha suja, sem sequer perguntar o que ele roubou de quem. Apelidar os agressores de "Vingadores" é sintomático. Utiliza-se o nome de um grupo de super heróis dos quadrinhos. O menino, por sua vez, era um daqueles vilões cujo sofrimento é sempre merecido. Como quem é tratado assim vai confiar na polícia?

No mundo simplista, o bem precisa derrotar o mal. O bem, por ser o bem, tem licença para prender, torturar e matar todos os que ele entender necessário. Faz isto por um motivo nobre: melhorar o mundo. É preciso dar lições aos inimigos, para que eles se corrijam pelo exemplo. As leis são muito brandas com os maus, por isto eles continuam a agir impiedosamente. Assim, é preciso fazer justiça de verdade. A justiça de verdade é rápida e dura. Hulk não julga, Hulk esmaga. Voltamos à era dos suplícios.

Porém, o malvado desta história voltou a fazer malvadezas. Foi preso, acusado de roubo. Como pensar é custoso, é mais fácil ter certeza de que estava mesmo roubando e roubava algo muito importante (talvez um relógio) de alguém também não identificado. O problema maior é que isto acontece logo depois de receber a lição didática no poste. Seria necessária, então, outra aula de bondade, igual ou mais severa. Eu deixo para cada um exercitar o próprio sadismo e pensar quais espécies de castigos mais drásticos seriam adequadas a um menino de quinze anos, acusado de roubar não sei o quê de não sei quem.

Outra possibilidade, bem mais trabalhosa, é verdade, seria pensar se punir, sem julgar, um suposto crime de furto, ou roubo de bobagem com tortura melhora alguma coisa na sociedade. Para começar, basta pensar no que é mais grave, o crime de furto, ou o crime de tortura. Tem um método fácil, bem ao alcance dos simplistas: se pudesse optar, você preferia ter o celular roubado ou ser espancado e amarrado sem roupas a um poste? Suspeito que há algo contraditório em limpar o mundo do crime cometendo crimes piores.

Complicando um pouco, dá pra imaginar as razões que levariam uma pessoa a viver na rua, roubando correntes. Para evitar respostas constrangedoras, vamos descartar logo o lucro fácil. Lucro fácil leva pessoas a enriquecerem e não a viverem na miséria. É muito mais fácil o lucro de uma pessoa de classe média que estuda a vida inteira, passa no vestibular e faz uma faculdade,  que o do menino que corre da policia (e do Capitão América, do Homem de Ferro...). Faça as contas, olhe ao redor e veja quem conseguiu prosperar economicamente de cada modo. 

Se não é a falta de punição nem a mera ganância que motivam esse tipo de opção de vida, deve haver alguma outra explicação. Nem todas as pessoas pobres e discriminadas escolhem roubar correntes de turistas ou vender drogas ( drogas do demônio, tipo maconha e crack e não a santa cerveja, claro), mas praticamente todas as pessoas que seguem esse caminho são pobres e discriminadas. Restam duas opções: ou, por coincidência, só os pobres são ruins ou não se trata de ruindade. Se esforçando um pouco, percebe-se que a única forma de acabar com a criminalidade econômica típica da miséria é combater a miséria. Combater os miseráveis, jogando na prisão ou amarrando em postes, só gera mais miséria e, consequentemente, agrava o problema.

 O "pessoal dos direitos humanos" tem piedade de pessoas agredidas pelo Estado, ou pelos vingadores, porque consegue enxergar que elas são humanas e não monstros. Quando o menino espancado é preso, a vítima é o mais fraco, o que está sofrendo a violência. No momento em que um roubo é praticado, a vítima é quem tem o patrimônio afetado. Se um policial ou um grupo de justiceiros espanca alguém, a vítima é o agredido. Cada vez que o estado prende um homem em condições sub-humanas, a vítima é o preso. Na hipótese de um negro sofrer racismo, a vítima é o negro. Sendo um homossexual é assassinado, a vítima é ele. 

O "pessoal dos direitos humanos" não é acostumado a enxergar as coisas de forma superficial e simplista. Desse modo, eles sabem que "adotar um bandido" é uma proposta ridícula e quem repete a expressão se ridiculariza. Problemas complexos demandam enfrentamentos complexos. Lanço outra campanha: faça um favor ao Brasil, analise as coisas de forma profunda e não siga o caminho fácil de bater no fragilizado. Os defensores de direitos humanos continuam onde sempre estiveram, do lado do oprimido. E sim, vão continuar dizendo que ele é vítima, porque, de fato, ele é.    




sábado, 8 de fevereiro de 2014

As Águas passam, as Pedrinhas ficam.



Em 2010, aconteceu em Brasília, o Seminário Nacional de Controle de Tuberculose no Sistema Prisional. Um juiz, falando em nome do CNJ, talvez pensando que falasse para pessoas que não conhecem as prisões, fez uma palestra piegas, cheia de pausas dramáticas e expressões faciais de piedade. Em resumo, narrou que, durante uma inspeção realizada pelo CNJ, os profissionais de saúde haviam dito aos juízes que não entrasse no pátio e nas celas, porque correriam sério risco de contrair doenças. Quando esperava as lágrimas emocionadas e os aplausos, entretanto, o orador foi surpreendido pela revolta da plateia. Os profissionais de saúde do cenário da história negaram que a recomendação tenha sido feita e disseram que foi uma decisão exclusiva dos magistrados. 

Então, veio a questão mais importante: se os juízes achavam que não poderiam entrar ali por alguns minutos sem danificar as suas saúdes, como permitiram que pessoas continuassem trabalhando e, principalmente, vivendo, encarceradas, ali? O Sistema Prisional raramente, ou nunca, funciona nas condições exigidas por lei. Todos sabem que as pessoas continuam presas ilegalmente. Porém, aparentemente, as autoridades que poderiam mudar a situação sentem que para cumprir o seu papel basta reconhecer que é errado, lamentar que é errado e ir embora. O estado onde se passava a história era o Maranhão. O narrador não disse o nome do estabelecimento. Talvez fosse Pedrinhas. A omissão, todavia, é indiferente, porque Pedrinhas, ao contrário do que parece, é apenas mais uma prisão e não uma situação excepcional.

Os estabelecimentos penais ficam lá quietinhos, fervendo por dentro, mas ignorados do lado de fora. Até que surgem imagens chocantes, como as cabeças decapitadas, ou um massacre de centenas de pessoas e a questão carcerária desponta. Vêm as críticas contundentes dos políticos e simpatizantes dos partidos de oposição, que, aliás, nunca falaram ou fizeram nada à respeito, quando foram situação. Vêm as justificativas e relatos de melhorias fictícias por parte dos políticos e simpatizantes dos partidos da situação. Vêm as desculpas de que "isto não me foi comunicado antes", por parte não políticos que poderiam ter agido. E surge a proposta mágica universal: mutirão para identificar penas vencidas e coisas semelhantes.

O problema do descumprimento sistemático dos direitos dos presos é silenciado. Isto começa a acontecer, na verdade, desde que os direitos são rebaixados ao status de benefícios, ou seja, favores, atos de generosidade do Estado. Chega ao ponto de um relatório elaborado pelo CNJ chamar de benefício até mesmo a extinção da pena por cumprimento integral, em um desses mutirões. Como tudo são só benevolências autorizadas pelos juízes, não é tão grave manter dez pessoas em uma cela para quatro.  Fica tolerável a manutenção de pessoa em regime semi-aberto em estabelecimento fechado e por aí vai. "Desculpa aí, senhor preso, mas hoje não dá para quebrar o seu galho".

Passam alguns dias, o assunto vai mudando e descamba para as "regalias" dos presos. Descobre-se, em um passe de mágica, que prisões tem líderes. Com uma surpresa ainda maior, chega-se à inesperada conclusão de que as lideranças fazem negociações com administrações prisionais. Mas, chega-se a revelações ainda mais estarrecedoras: "Presos têm televisões!" "Presos tem fogões!" "Presos usam drogas!" E o discurso muda para o ódio aos presos. Eles deixam de ser as pessoas que vivem em condições insalubres, com risco de serem decapitados ou massacrados. Voltam a ser os marginais, os cruéis, os monstros e, afinal, os únicos culpados por aquele mal estar.

Aí, a gente não lembra mais que praticamente todas as prisões têm mais presos que vagas. Aí, a gente continua decretando a prisão do menino que roubou três livros. Aí, a gente continua decretando prisão provisória por risco à ordem pública, sem nem explicar o que é isto. Aí, a gente aprova aumento de pena para isto e novo tipo penal para aquilo. Aí, a gente pede redução da maioridade penal. Aí, a gente amarra o garoto no poste. Aí, a gente reclama dos direitos humanos. Aí, o mutirão acaba e o estabelecimento continua com mais gente do que é capaz de suportar. Aí, a gente simplesmente esquece e tudo volta ao normal. As águas passam, as pedrinhas ficam. Afinal, na guerra do rochedo com o mar, sempre sobra para o siri. Ainda mais se o siri for daqueles mais escuros.