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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O uso de Presidenta e o uso da Intransigência



Há cerca de quatro anos, o Brasil se vê, vez ou outra, discutindo uma questão que parece gramatical. Existe variação de gênero para a palavra “presidente”? Isto se deve, como todos sabem, à ascensão de uma mulher ao topo do poder executivo. A autoridade declarou como gostaria de ser chamada e passou a adotar a forma desejada nos documentos oficiais. Houve estranhamento imediato e alguns veículos de comunicação, como o jornal Folha de São Paulo e a revista Veja, declararam solenemente que se recusavam a respeitar a vontade dela.

A resistência apareceu sob o argumento de preservação da língua. Para a linguística, trata-se de evidente bobagem. Todas as línguas mudam o tempo inteiro, inclusive a nossa, o que não significa perda de valor. O exemplo mais conhecido é o da transformação de “vossa mercê”, em você. Mas, eles são inúmeros. Sugiro a leitura, no original, da Carta de Pero Vaz de Caminha, ou de textos da década de 1950. Não falamos como nossos avós, que não falam como Caminha, que não falava como os avós dele, que não falavam o latim vulgar, usado por analfabetos, de onde surgiram o português, o italiano, o francês e o espanhol. Que pureza é esta que se defende?

Ainda que a expressão “presidenta” fosse uma novidade, não haveria motivo para tantas reclamações. Mas, o pior é que não é. Fala-se de dicionários do século XIX que já a utilizavam. Dois dos livros de gramática mais respeitados atualmente apontam a correção do termo, de maneira bastante interessante. Ambos, falando das normas apontam para o que está além delas. Luiz Antônio Sacconi1, tratando das principais dúvidas sobre gênero, escreve o seguinte.

“ À esposa de um presidente se dá o nome de primeira-dama. E ao marido de uma presidenta ou de uma primeira-ministra, que nome dar?

A língua não previu a situação em que um homem esteja na situação de marido de presidenta, primeira-ministra, governadora ou prefeita; daí porque não existe o termo masculino correspondente”.

Evanildo Bechara2, por sua vez, antes de apontar a palavra presidente como exemplo de termo variável, discorre sobre o gênero das profissões femininas.

“ A presença, cada vez mais justamente acentuada, da mulher nas atividades profissionais que até bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem tem exigido que as línguas - não só o português- adaptem o seu sistema gramatical a estas novas realidades”

Os dois livros citados, ambos com mais de 30 edições, indicam a razão fundamental do uso de “presidenta”. Trata-se de postura política para evidenciar o fato de que as mulheres estão vencendo séculos de opressão e assumindo postos antes inacessíveis. A opção pelo termo não é um mero capricho e muito menos autoritarismo. É uma tomada de posição. Não produz efeito apenas em relação à atual mandatária, mas a todas as mulheres. O termo presidente é tão notadamente relacionado ao masculino que não há heterônimo masculino para primeira-dama. Por isto, presidenta faz sentido e "presidento" não.

Assim, tendo em vista que a linguística não se opõe às modificações da língua, gramáticos respeitadíssimos não se opõem ao uso do termo e ele possui valor para a afirmação da emancipação feminina, se recusar a utilizar “presidenta” é, também, uma posição política. Não se trata, portanto, de gramática. Esta postura requer a tomada de algumas decisões, que envolvem ignorância em relação à linguística e à gramática, desrespeito à pessoa e insensibilidade às mulheres.

A ignorância em relação à linguística se encontra na obsessão pela imutabilidade. Sobre a gramática, está no desconhecimento sobre os debates e, logo, sobre as possibilidades de escolha. O desrespeito à pessoa ocorre quando alguém pede para ser chamado por um entre dois termos possíveis, que não possui nenhum teor ofensivo, mas opta-se, deliberadamente, por contrariá-la. A insensibilidade às mulheres acontece quando se fecha os olhos para a sua difícil luta por afirmação e decide-se atacá-la. A raiva contra o uso de "presidenta" transparece a colocação  da birra contra uma pessoa, ou contra um partido, acima de tudo isto. É fácil ver onde está o uso da intransigência. 

1 SACCONI, Luiz Antônio. Nossa gramática completa: teoria e prática. 31 ed. São Paulo: Nova Geração, 2011.

2 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2009.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Gritos e Harmonia.



O Brasil sempre teve índios. Em um certo tempo, passou a ter brancos. Depois, foram trazidos os pretos. Como o sangue é quente e a carne é fraca, aconteceram misturas, afinal, sempre houve homens e mulheres. Mas, também existiram sempre pessoas que gostavam do mesmo sexo, que gostavam do sexo oposto e que gostavam de qualquer sexo. Desde o início, havia pessoas com mais ou menos riquezas, mais ou menos poder. Logicamente, depois da chegada dos brancos isto aumentou. Todos sempre conviveram e ninguém discorda. Algo, porém, tem mudado.

Especialmente, desde o século passado, a cada dia, mais negros e índios reclamam de racismo. Mais mulheres reclamam de machismo. Mais homossexuais reclamam de homofobia. Mais pobres reclamam da desigualdade social. Além disto, alguns brancos apoiam as outras cores, alguns homens apoiam o outro gênero, alguns heterossexuais apoiam as outras orientações e alguns ricos apoiam a outra classe. Tem gente incomodada. Afirmam que quem está reclama está dividindo o país, jogando brasileiros contra brasileiros. É uma conclusão possível, desde que se acredite que antes das queixas, todos não apenas conviviam, mas, conviviam em harmonia.

A relação entre as coisas, a consciência delas e as palavras é complexa. É possível carregar por anos uma enfermidade sem saber da sua existência. Apenas depois de ter consciência dela, seremos capazes de nomeá-la e, principalmente, enfrentá-la. A nossa ignorância em relação à bactéria não ajudava a resolver o problema e nem evitava a morte que viria, mas evitava a angústia de encarar os fatos.Talvez, estejamos passando por isto. Quem nunca teve sensibilidade para enxergar o racismo, o machismo, a homofobia e as desigualdades está assustado por lhe apontarem a existência do mal, ou pior, por lhe apontarem como parte do mal.

A Copa do Mundo realizada no país, pode ilustrar essas condições. Os interessados em aproveitar o evento para namorar gringas sonhavam com as holandesas e não com as marfinenses ou as paraguaias. Apenas homens, aliás, podiam contar aos pais que desejavam conquistar o máximo de estrangeiras. Se mulheres dissessem o mesmo, haveria crise familiar. As ofensas cantadas nos estádios quase sempre envolviam o bumbum do alvo. Chamar alguém de heterossexual é xingamento? Quanto às classes, nem precisa dizer quem podia comprar ingressos.

Brancos sempre foram os belos. Pretos e índios sempre foram os presos, os agredidos e os mortos. Homens conquistam, mulheres são pegas, ou agredidas e mortas. Heterossexuais se orgulham, homossexuais se escondem para não serem agredidos ou mortos. Ricos vão para a Copa ver jogos, pobres vão para a Copa trabalhar, ou são presos, agredidos e mortos. Tudo está tão entranhado na nossa cultura, sendo transmitido de pai para filho há tantas gerações, que consegue parecer invisível. Esta capacidade só as torna as diferenças ainda mais cruéis. 

Reconhecer os próprios preconceitos e as consequências deles é o primeiro passo para enfrentá-los. Mas, não basta. É preciso combatê-los. Lutar contra o racismo, o machismo, a homofobia, a exploração não dividem nada. Nunca existiu harmonia nenhuma. O que houve foram séculos de silêncio e silenciamento. Caso fingir que as chagas não existem resolvesse algo, não haveria mais qualquer uma delas. Silêncio e silenciamento nunca contribuíram para evitar qualquer discriminação, mas apenas para encobrir o sangue que corria. Calar incentiva a conservação das diferenças. Gritar é o único modo de acabar com elas.



domingo, 6 de julho de 2014

A Visão do Urubu sobre a Copa do Boi.


É um absurdo o Brasil sediar a Copa! Não temos a mínima condição de realizar esse evento. O Brasil não tem educação, nem saúde. Vamos passar vergonha! Aposto que não construirão os estádios. Os aeroportos vão ser um caos, os turistas serão assaltados, estuprados, assassinados e estuprados de novo, durante os engarrafamentos. Será um fiasco. O que vão pensar de nós quando perceberem como os brasileiros são  ignorantes, incivilizados! Que país é esse? Que país é esse? A gente somos inútil!

Bando de vagabundos, parem de fechar as ruas! Tem que prender todo mundo. Por isto, sou a favor da pena de morte. Direitos humanos é para humanos direitos. Acabem com essa cracolândia! Ditadura gayzista! Racismo contra os brancos! Esses comunistas são responsáveis por esta anarquia! Mas, o Jabor mudou de ideia... Sem partidos! Sem partidos! O gigante acordou! Não são só vinte centavos! Vem pra rua! Vem pra rua! Fora corruptos! Tá de vermelho, tá de vermelho! Sai que agora é a gente! Fifa comunista! Não pode ter copa! É uma vergonha. Bando de ignorantes! Hipócritas! Fora médicos cubanos! Escravos! Escravos!

Oba! A Fifa começou a vender ingressos para a Copa! O preço está bom. Só vai ter gente bonita! Consegui todos os jogos! Setor Vip! Ei, Dilma, vá tomar no c...! Ei, Dilma, vai tomar no c...! Esses terroristas estão acabando com o Brasil! Já estou com vergonha! O caos deve ter começado. Pelo menos será o fim dela. Finalmente, o mundo inteiro, que foi enganado por tanto tempo por aquele analfabeto de quatro dedos, prestando-lhe inúmeras homenagens, saberá a verdade sobre a porcaria de país que esses bolivarianos deixaram. Uuuuuuu, hino do Chile! Uuuuuuuu!

Tá, a Copa pode até estar boazinha. Os aeroportos funcionaram, a mobilidade urbana e a segurança também estavam ok, mas os governantes não têm qualquer mérito. Para começar, tudo bem que sediamos o evento, mas até a África do Sul fez isto antes. Perdemos para os africanos! Os africanos! Houve uma grande coincidência astrológica na conjuntura internacional que favoreceu o Brasil. As luas de saturno fizeram ângulo de 65 graus com plutão, de modo que tudo conspirava a favor do sucesso dos jogos. Essa quadrilha vive conspirando com Cuba, mas, com um governo  sério de verdade, o evento seria muito, mas muito melhor! Sem comparação!

Vocês só enganam os miseráveis sem educação. Para mim, podemos chamar este período vermelho de "A Copa Perdida". Aliás, não me venham com essa história de serem os pais da Copa. Todas as pessoas bem informadas sabem que ela já existia na era do Príncipe. O Operário, como sempre, ludibriou o povo, roubou o projeto do outro, mudou o nome e ficou com todos os méritos. Acordem, pesquisem e, principalmente, vejam! Vejam! A Copa, nos bons tempos, chamava-se Mundial de Clubes da Fifa. Em 2000, com primor de organização, foi vencida pelo Corinthians de Gilmar Fubá, após o empate sem gols contra o Vasco de Odvan. No Maracanã!

O que acontece em campo não tem nada com política! Até parece que se faz gol por decreto... Hipócritas! Querem se aproveitar do que os atletas fazem! Vai começar. Bernard no lugar de Neymar. Um a zero pra eles, Dois! Três! Ei, Dilma, vá tomar no c...! Ei, Dilma, vá tomar no c...! Bora Alemanha! Seis! É Hexa!Esta derrota é o reflexo de um país sem educação e sem saúde! Brasil de m... ! Nem comprar a Copa sabe... Ainda bem que tem eleições em outubro! Cadê aquele monte de montagem sobre ela que eu guardei? Vou voltar a falar de Copa no facebook, hoje! Eba! Quase um mês calado... Que esse jogo sirva para o povo, finalmente, aprender a votar. Fora comunismo no Brasil!  A culpa é toda deles! Não falei que esses vermelhos não prestam? Olha que vexame! Hahahahaha! Tudo exatamente como eu previ.

Moral da História: "O urubu tá com raiva do boi e eu já sei que ele tem razão. É que o urubu tá querendo comer, mas o boi não quer morrer, não tem alimentação".

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Coelhos, Hienas e Lobos. As mordidas do caso Suárez.



O conhecimento não se resume aos livros, ou às instituições formais de ensino. Ao contrário, cada aspecto da vida apresenta infinitos motes para reflexões. Manifestações artísticas, por exemplo, são extremamente frutíferas para a criminologia. Possibilitam aos seus autores grande dose de liberdade de expressão e uma posição de poder que garante certa imunidade. Enquanto um preso, ou ex-preso, comum precisa interpretar um papel de arrependido, ao falar publicamente da sua versão sobre um crime, um músico pode, abertamente, explicar porque, na sua ótica, um delito seria justificável. No futebol, acontece algo semelhante e o uruguaio Luiz Suárez é um personagem especialmente rico.

Luizito, como é chamado por sua torcida, enfrentava a forte equipe da Itália, quando, de repente, levou o rosto ao ombro de um oponente e, para espanto geral, o mordeu. Logo a seguir, jogou-se no chão e levou as mãos aos dentes, simulando uma pancada ma boca. O juiz não viu nada e ele ficou em campo até o fim do jogo. Mas, todas as câmeras de televisão viram. O anti-herói foi julgado e, muito rapidamente, condenado à suspensão por 09 partidas e o afastamento por 04 meses de qualquer atividade relacionada ao futebol, inclusive no  seu clube. Ele não pode sequer entrar em estádios de futebol. Perdeu a credencial da FIFA e está proibido de continuar com os companheiros de equipe.

O processo e a pena dividiram opiniões. Evidentemente, não faltam aqueles que consideraram tudo correto. Algumas pessoas, entretanto, protestam contra o modo de julgar, em que a possibilidade de defesa foi muito escassa, a sessão de deliberação secreta, não se sabe se havia a separação entre acusador e julgador, nem quais os fundamentos para chegar à decisão. Certamente, como a prova da "acusação" eram vídeos, poderia ser útil à defesa analisar as imagens na frente dos julgadores. Seria o momento de discutir se as imagens comprovam realmente o ato, ou a sua intensidade. Aparentemente, a decisão estava tomada, não importando o que fosse feito para ajudar o jogador, especialmente, por não ser a primeira vez que um adversário é apresentado à arcada dentária do artilheiro celeste, punido duas vezes pela mesma razão (no campeonato holandês e no campeonato inglês). 

Há ainda quem reclame da pena excessiva. 09 jogos é o maior afastamento da história das Copas, enquanto a mordida certamente não chega nem perto de ser a mais danosa agressão cometida. Lembremos que, em 1994, o brasileiro Leonardo provocou fraturas no rosto de Tab Ramos, dos Estados Unidos, com uma cotovelada, mas foi suspenso por apenas 04 jogos. O italiano deve ter se tratado com merthiolate e band-aids. O americano precisou ser operado. Alguns jornalistas, antes da decisão, achavam que Suarez merecia um jogo de suspensão. A maioria, contudo, entendeu ser razoável que ele ficasse fora da Copa. 

O que mais chama atenção, entretanto, é o "banimento" por 04 meses de qualquer estádio, com a proibição de continuar acompanhando à sua equipe. Até mesmo a vítima considerou exagerado. É inegável a semelhança, logo notada por juristas, com a teoria do Direito Penal do Inimigo. Como Suarez era reincidente na infração, a FIFA entende que ele teria renegado as  regras da "sociedade futebolística" e, por consequência, deveria perder o status de "cidadão". Assim, além de ter sido julgado por métodos contestáveis, ele foi excluído da comunidade. Virou uma espécie de "pária", até o final da pena.

Há, no entanto, um aspecto sobre esta parcela da punição que pode ter sido mais decisiva que a influência de Jakobs: a vontade de humilhar, de "dar o exemplo". Um dos julgadores declarou que era preciso que a sanção fosse rigorosa, senão, o futebol morreria. Como se vê, há uma grande dose de histeria na sentença. À pena rigorosa é atribuído o condão de salvar o mundo de calamidades e tragédias iminentes. Novamente, o futebol nos traz de volta à forma como a justiça é encarada também fora dele, com a habitual crença em monstros e deuses imaginários. O esporte reproduziu o pânico e a mania de grandeza com que a questão das penas é abordada diariamente.

O fato é que nunca houve uma onda de dentadas, que ameaçasse o esporte. Fora o uruguaio, é possível que tenha havido somente um mordedor recente: o atacante Emerson Sheik do Corinthians, na final da libertadores. O brasileiro não foi punido e não houve nenhuma campanha por punição. Ao contrário, ele foi elogiado pela esperteza. Mesmo com a sanção severa, é difícil imaginar que as trapaças no esporte deixem de ser elogiadas ou toleradas, quando dão certo. É assim que funciona aqui fora, quando os sonegadores de impostos, pedem a prisão de quem furta. Os consumidores e vendedores de álcool clamam pelo aumento de pena para tráfico de drogas. Aliás, o risco que a venda de maconha oferece à saúde pública pode ser comparado ao risco que uma mordida oferece ao futebol. No primeiro caso, todavia, não há vítimas, pois a compra é voluntária.

Na guerra contra os terríveis inimigos de fantasia, exigimos tratamento cruel e impiedoso. O preso não pode ver televisão, não pode receber comida dos parentes, não pode ter um mínimo de conforto. Tudo é considerado regalia. Tem que vestir farda, baixar a cabeça, varrer o chão e sofrer. Nesse contexto, Suárez não poderia ficar apenas fora da Copa. Para satisfazer a sanha por uma espécie torta e medieval de justiça, exige-se a humilhação. Era necessário a retirada da credencial, o impedimento de almoçar e saída, chorando, da concentração. É assim que os que se acham bons e puros distribuem sua pureza e sua bondade. Um coelho pode até morder, mas se for apanhado, logo conhecerá a fome das hienas e até mesmo dos lobos.  
 


segunda-feira, 28 de abril de 2014

Muito Além de Fotos com Bananas



Uma das mais intrigantes formulações de Freud foi o conceito de feridas narcísicas. Lembrando o antigo mito de um homem apaixonado pela própria imagem, o pai da psicanálise conta que a humanidade se comporta da mesma forma. Três eventos machucaram fatalmente esta auto idolatração:  a percepção de que a terra (e consequentemente o homem) não era o centro do universo; a consciência de que muitas decisões que tomamos seriam inconscientes, de modo que não controlamos nem a nós mesmos; e, finalmente, a elaboração da teoria da evolução, provando que não somos a imagem e semelhança de Deus, mas que viemos de seres menos evoluídos, especialmente do macaco.

Por muitos séculos, os africanos foram escravizados em todo o mundo. Em busca de legitimação moral desta prática repugnante e lucrativa, pediu-se auxílio à Igreja. Os clérigos tranquilizaram os vendedores, compradores e exploradores de escravos, asseverando que os negros não teriam alma. Não tinham alma, logo não eram gente. Dizia-se que pessoas de pele preta andavam como os brancos, tinham dois braços, duas pernas e até certa inteligência, mas não eram homens. Eram animais, talvez os mais espertos da natureza, exatamente como os chimpanzés. Conceitos espirituais e biológicos se cruzaram, para concluir que os negros, na teoria da evolução, estavam em um patamar inferior. É dentro desta história que se deve analisar cada piada associando negros a macacos.

Na Espanha, durante um jogo de futebol, o baiano Daniel Alves se preparava para cobrar um escanteio, quando arremessaram uma banana perto dele. Segundo o jogador, ele sempre ouve pessoas imitando sons símios, onde joga há onze anos. Em um ato inesperado, abaixou-se, apanhou a fruta, jogou sua casca fora e a colocou toda na boca. Ainda mastigava quando chutou a bola. Rapidamente, a imagem correu o mundo e todos elogiaram a coragem e criatividade do atleta. De fato, sua ironia foi uma ótima resposta para cada racista que pratica atos semelhantes. Com o gesto dizia que poderia comer bananas, tranquilamente, sem que isto o colocasse em condição de inferioridade. Afinal de contas, justificou, bananas previnem câimbras.

Pouco depois, teve início uma campanha que virou febre. Pessoas postavam na internet fotos com bananas e cartazes dizendo que "somos todos macacos", em apoio a Daniel. Começou com Neymar, companheiro de equipe e alvo frequente das mesmas ofensas, mas que disse não se considerar negro (fato que não depõe contra ele, mas sim contra a suposta democracia racial que alardeiam por aqui). Depois, vieram artistas de televisão, como Luciano Huck, Angélica e chegou até ao colunista de direita Reinaldo Azevedo. Em comum, entre as pessoas que se destacavam nessa corrente estava o fato de jamais terem se manifestado veementemente contra as violências cotidianas contra os negros. Alguns deles, ao contrário, sempre tentaram relativizá-las e retirar-lhes o conteúdo racial.

A frase escolhida acaba distorcendo o gesto do jogador, por ignorar todo o passado e toda a carga semântica da comparação de pessoas que eram consideradas seres quase humanos evolutivamente inferiores e macacos. Luciano Huck nunca precisou explicar porque não usava o elevador de serviço. Ninguém diria que Angélica não tem cara de médica. Reinaldo Azevedo não será parado na maioria das blitzes que enfrentar. Para eles ser chamado de macaco significaria que são engraçados ou espertos. Para os negros significa que são inferiores.  Bem mais inteligente foi o texto usado por Ivete Sangalo, "dê uma banana ao racismo", ou a frase do Ministério Público Federal, "somos todos humanos".

Caso alguém te chame de feio, você esperará que te defendam dizendo que você é bonito e não que todos também são horríveis. Quando chamam negros de macacos, deve-se responder que eles não são inferiores. Dizer que todos são macacos é recolocar o alvo do racismo no mesmo lugar do século XIX, porém, dizendo para ele deixar isto para lá. Não adianta dizer que todos temos a mesma origem biológica. É preciso reafirmar a condição humana de todos e não negá-la. Infelizmente, a repercussão da reação ao gesto racista parece apenas fingir que o racismo não existe. Talvez existam mais feridas que tentamos ocultar, além das explicitadas por Freud.

Seria bom ver os recentes adeptos ao combate contra a discriminação, lutando de verdade contra essa praga. Que tal combater a seletividade penal? Que tal deixar de fazer beicinho contra as cotas? Que tal parar de falar em cabelo "ruim"? Que tal não ironizar a eleição de Lupita como a mulher mais bonita do mundo? Que tal trocar a hastag da moda pela muito mais significativa  #somostodosquilomboriodosmacacos? Fazer algo contra o problema passa por reconhecer que ele existe e combatê-lo em cada fresta que ocupa, mesmo quando não arremessa frutas. Se queremos ser Daniel Alves comendo a banana, não devemos deixar que ela o engula. Precisamos, sim, vomitá-la de volta, na cara dos ignorantes. Somos todos Daniel Alves, mas nenhum de nós, nem ele, é macaco.

   

terça-feira, 18 de março de 2014

Abri a Porta.



Há sete anos, sou defensor público. Quando falava na carreira que gostaria de seguir, costumava sentir estranhamento e até menosprezo.  O Estado pagava relativamente pouco e a profissão era considerada a mais trabalhosa e mais desprestigiada do meio jurídico. Alguns não escondiam outra causa de repulsa: trabalhava com os pobres. "O povo fede", foi uma frase que ouvi. Mais de uma vez.

Passei no concurso, mas não recebi o prêmio imediatamente. Ao lado de outros que fizeram a mesma opção e para quem a Defensoria não era um "concurso meio", precisei virar freguês da assembleia legislativa, das secretarias estaduais, dos programas de rádio e televisão. Sem pressão, não conseguiríamos ser nomeados. Certa feita, furamos até a segurança do governador, para entregá-lo um manifesto. Nunca vi os aprovados em outros concursos jurídicos passando pelo mesmo sofrimento. Tive inveja. Queria que vissem que eu era tão bom quanto eles.

Tomei posse e logo ouvi que, para ser tratado como eles, eu teria que ser igual a eles. Vista-se igual. Compre um carro igual, ainda que precise financiar em mil parcelas. Vá para os mesmos lugares. Exija ter tudo o que eles têm. Durante um certo tempo, fiz isto. Usava minha carteira funcional, para ser respeitado. Entrei no cinema, sem pagar, dizendo que se eles tinham gratuidade, eu também possuía o mesmo direito. Estava quase chegando ao ponto de ir ao estádio na tribuna de honra, porque descobri que assim eles faziam. Até que acordei.

Olhei para mim mesmo e senti nojo. Não foi para me tornar alguém assim que enfrentei tantos obstáculos. Eu estava fazendo a luta errada. Era só mais um porco na revolução dos bichos. Não quero sentar no alto. Quero que eles desçam e fiquem no mesmo plano que todos. Não quero ser doutor. Quero que eles sejam você, assim como eu. Não quero prioridade na fila. Quero filas menores. Não quero ir para a Tribuna de Honra. Quero sentar junto com o povo e sentir que faço parte dele. 

Não faço questão do seu cafezinho. Não preciso entrar pela sua porta. Tenho pena de quem tem tanto medo e insegurança que precisa criar portas cada vez mais exclusivas para se sentir melhor. Não tenho qualquer admiração por esse respeito arrancado à força, com autoritarismo. Não vale nada ser considerado bom, apenas porque se tem poder, ou se está perto do poder. A admiração que eu anseio conquistar é a decorrente de ajudar as pessoas a abrirem as portas que vêem sempre fechadas. O respeito que preciso é que respeitem quem eu defendo. 

Texto em homenagem a todos os que compreendem o que é Defensoria Pública e, especialmente, aos Defensores Públicos que trabalham no Fórum de Caucaia-CE.
     

domingo, 9 de março de 2014

Dia da Mulher: A Crítica do Elogio.



É difícil ver elogios às mulheres que não toquem de alguma forma no aspecto estético. Não é suficiente que elas sejam inteligentes ou que defendam causas importantes. Nenhuma homenagem parece completa se não vem acompanhada de odes à beleza, ou referências à vaidade física. As críticas também caminham na mesma direção: feiura, falta de maquiagem, roupa mal escolhida ou repetida. Tudo isto se não houver a referência explícita à frustração sexual, através da famosa expressão objetificadora:  "mal amada".

O tradicional apresentador do Jornal Nacional anunciara que, no dia 08 de março, aquela bancada estaria mais bonita, pois seria apresentada apenas por mulheres. No dia anterior, um colunista da mesma rede de comunicações publicou a informação de que a Presidenta da República havia repetido a mesma blusa. Uma editora brasileira anunciou uma promoção especial, "para o sexo feminino finalmente gostar" de um livro que compila leis: ele viria com capa de oncinha. Uma imagem que circulou nas redes sociais enumerava problemas enfrentados por elas e concluía triunfal que elas "ainda arrumam tempo para ficarem lindas".

Homenagens e críticas dessa espécie revelam desconhecimento ou descrença em relação à emancipação feminina, que vem sendo a cada dia conquistada. Não conseguir finalizar uma série de elogios sem chegar na beleza é não compreender que a mulher é mais que um corpo. Para a mulher gostar de verdade de um livro, ele precisa ter conteúdo e não capa. Elas não são necessariamente fúteis, assim como os homens também não são. As jornalistas apresentaram  o jornal nacional porque são boas jornalistas, ou porque a emissora teve que ceder à pressão e dar espaço a elas, mas não porque são mais bonitas que Bonner.

Justifica-se a existência de um dia da mulher pela violência que elas sofrem, pelo tratamento salarial desigual e pelas leis patriarcais. A data reafirma a sua imprescindibilidade pelas próprias manifestações atabalhoadas que gera. Em movimento circular, ao pedido da quebra dos estereótipos, responde-se com a adesão em massa de pessoas que, achando fazer um favor, reproduzem os mesmos estereótipos combatidos. Chamar alguém de "linda" no momento errado pode soar como cobrança de comportamento. Não difere muito de se espantar com a roupa repetida.

 Toda mulher pode vestir a roupa de oncinha que quiser, se quiser. Pode utilizar a blusa que desejar, quando desejar e quantas vezes desejar. Pode usar ou não usar maquiagem, ser mãe ou cuidar da casa, se tiver vontade. Mas, não é esta a essência do feminino. Mulheres devem ser respeitadas e louvadas pelo que pensam, dizem e fazem. É o que basta. Não é necessário fazer referência a padrões estéticos (bastante contestáveis e opressores, aliás). O 08 de março relembra a história de mulheres que, lutando por equiparação salarial com os homens, morreram carbonizadas. Se alguma delas usava batom ou salto alto, certamente não há nenhuma relevância.
    

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Pessoal dos Direitos Humanos



Um menino de 15 anos foi espancado, deixado nu e amarrado a um poste pelo pescoço, com uma corrente de bicicleta. A apresentadora de um telejornal nacional comentou o caso. Começou atacando a vítima, "um marginalzinho", "com a ficha mais suja que pau de galinheiro", que "preferiu" fugir a registrar ocorrência. Disse que era compreensível a atitude do grupo de agressores, apelidado por ela de "os vingadores", pois agiam em legítima defesa coletiva dos cidadãos de bem, assustados com a violência. Por fim, lançou uma campanha para "os defensores dos direitos humanos" que "se apiedaram do marginalzinho": "faça um favor ao Brasil, adote um bandido". 

Poucos dias depois do fato e da repercussão, o mesmo garoto teria sido preso pela polícia, acusado de roubo. Algumas pessoas que aplaudiram o discurso anterior, logo apareceram para cobrar: "cadê o pessoal dos direitos humanos, agora? Vão dizer que ele é vítima?". São perguntas de quem, assim como a jornalista, não consegue ver fenômenos complexos do modo que eles são, complexos. A nova polêmica envolvendo o menino não contraria os argumentos do "pessoal dos direitos humanos". Ao contrário, os reforça. 

Talvez para quem nunca teve contato com o sistema penal, seja difícil compreender que o simples fato de ser chamado de "marginalzinho" já tem força suficiente para ensejar medo e desejo de fuga. Imagine ser espancado e amarrado, sem roupas, a um poste. O menino foi estigmatizado e todos acreditaram na sua ficha suja, sem sequer perguntar o que ele roubou de quem. Apelidar os agressores de "Vingadores" é sintomático. Utiliza-se o nome de um grupo de super heróis dos quadrinhos. O menino, por sua vez, era um daqueles vilões cujo sofrimento é sempre merecido. Como quem é tratado assim vai confiar na polícia?

No mundo simplista, o bem precisa derrotar o mal. O bem, por ser o bem, tem licença para prender, torturar e matar todos os que ele entender necessário. Faz isto por um motivo nobre: melhorar o mundo. É preciso dar lições aos inimigos, para que eles se corrijam pelo exemplo. As leis são muito brandas com os maus, por isto eles continuam a agir impiedosamente. Assim, é preciso fazer justiça de verdade. A justiça de verdade é rápida e dura. Hulk não julga, Hulk esmaga. Voltamos à era dos suplícios.

Porém, o malvado desta história voltou a fazer malvadezas. Foi preso, acusado de roubo. Como pensar é custoso, é mais fácil ter certeza de que estava mesmo roubando e roubava algo muito importante (talvez um relógio) de alguém também não identificado. O problema maior é que isto acontece logo depois de receber a lição didática no poste. Seria necessária, então, outra aula de bondade, igual ou mais severa. Eu deixo para cada um exercitar o próprio sadismo e pensar quais espécies de castigos mais drásticos seriam adequadas a um menino de quinze anos, acusado de roubar não sei o quê de não sei quem.

Outra possibilidade, bem mais trabalhosa, é verdade, seria pensar se punir, sem julgar, um suposto crime de furto, ou roubo de bobagem com tortura melhora alguma coisa na sociedade. Para começar, basta pensar no que é mais grave, o crime de furto, ou o crime de tortura. Tem um método fácil, bem ao alcance dos simplistas: se pudesse optar, você preferia ter o celular roubado ou ser espancado e amarrado sem roupas a um poste? Suspeito que há algo contraditório em limpar o mundo do crime cometendo crimes piores.

Complicando um pouco, dá pra imaginar as razões que levariam uma pessoa a viver na rua, roubando correntes. Para evitar respostas constrangedoras, vamos descartar logo o lucro fácil. Lucro fácil leva pessoas a enriquecerem e não a viverem na miséria. É muito mais fácil o lucro de uma pessoa de classe média que estuda a vida inteira, passa no vestibular e faz uma faculdade,  que o do menino que corre da policia (e do Capitão América, do Homem de Ferro...). Faça as contas, olhe ao redor e veja quem conseguiu prosperar economicamente de cada modo. 

Se não é a falta de punição nem a mera ganância que motivam esse tipo de opção de vida, deve haver alguma outra explicação. Nem todas as pessoas pobres e discriminadas escolhem roubar correntes de turistas ou vender drogas ( drogas do demônio, tipo maconha e crack e não a santa cerveja, claro), mas praticamente todas as pessoas que seguem esse caminho são pobres e discriminadas. Restam duas opções: ou, por coincidência, só os pobres são ruins ou não se trata de ruindade. Se esforçando um pouco, percebe-se que a única forma de acabar com a criminalidade econômica típica da miséria é combater a miséria. Combater os miseráveis, jogando na prisão ou amarrando em postes, só gera mais miséria e, consequentemente, agrava o problema.

 O "pessoal dos direitos humanos" tem piedade de pessoas agredidas pelo Estado, ou pelos vingadores, porque consegue enxergar que elas são humanas e não monstros. Quando o menino espancado é preso, a vítima é o mais fraco, o que está sofrendo a violência. No momento em que um roubo é praticado, a vítima é quem tem o patrimônio afetado. Se um policial ou um grupo de justiceiros espanca alguém, a vítima é o agredido. Cada vez que o estado prende um homem em condições sub-humanas, a vítima é o preso. Na hipótese de um negro sofrer racismo, a vítima é o negro. Sendo um homossexual é assassinado, a vítima é ele. 

O "pessoal dos direitos humanos" não é acostumado a enxergar as coisas de forma superficial e simplista. Desse modo, eles sabem que "adotar um bandido" é uma proposta ridícula e quem repete a expressão se ridiculariza. Problemas complexos demandam enfrentamentos complexos. Lanço outra campanha: faça um favor ao Brasil, analise as coisas de forma profunda e não siga o caminho fácil de bater no fragilizado. Os defensores de direitos humanos continuam onde sempre estiveram, do lado do oprimido. E sim, vão continuar dizendo que ele é vítima, porque, de fato, ele é.    




sábado, 8 de fevereiro de 2014

As Águas passam, as Pedrinhas ficam.



Em 2010, aconteceu em Brasília, o Seminário Nacional de Controle de Tuberculose no Sistema Prisional. Um juiz, falando em nome do CNJ, talvez pensando que falasse para pessoas que não conhecem as prisões, fez uma palestra piegas, cheia de pausas dramáticas e expressões faciais de piedade. Em resumo, narrou que, durante uma inspeção realizada pelo CNJ, os profissionais de saúde haviam dito aos juízes que não entrasse no pátio e nas celas, porque correriam sério risco de contrair doenças. Quando esperava as lágrimas emocionadas e os aplausos, entretanto, o orador foi surpreendido pela revolta da plateia. Os profissionais de saúde do cenário da história negaram que a recomendação tenha sido feita e disseram que foi uma decisão exclusiva dos magistrados. 

Então, veio a questão mais importante: se os juízes achavam que não poderiam entrar ali por alguns minutos sem danificar as suas saúdes, como permitiram que pessoas continuassem trabalhando e, principalmente, vivendo, encarceradas, ali? O Sistema Prisional raramente, ou nunca, funciona nas condições exigidas por lei. Todos sabem que as pessoas continuam presas ilegalmente. Porém, aparentemente, as autoridades que poderiam mudar a situação sentem que para cumprir o seu papel basta reconhecer que é errado, lamentar que é errado e ir embora. O estado onde se passava a história era o Maranhão. O narrador não disse o nome do estabelecimento. Talvez fosse Pedrinhas. A omissão, todavia, é indiferente, porque Pedrinhas, ao contrário do que parece, é apenas mais uma prisão e não uma situação excepcional.

Os estabelecimentos penais ficam lá quietinhos, fervendo por dentro, mas ignorados do lado de fora. Até que surgem imagens chocantes, como as cabeças decapitadas, ou um massacre de centenas de pessoas e a questão carcerária desponta. Vêm as críticas contundentes dos políticos e simpatizantes dos partidos de oposição, que, aliás, nunca falaram ou fizeram nada à respeito, quando foram situação. Vêm as justificativas e relatos de melhorias fictícias por parte dos políticos e simpatizantes dos partidos da situação. Vêm as desculpas de que "isto não me foi comunicado antes", por parte não políticos que poderiam ter agido. E surge a proposta mágica universal: mutirão para identificar penas vencidas e coisas semelhantes.

O problema do descumprimento sistemático dos direitos dos presos é silenciado. Isto começa a acontecer, na verdade, desde que os direitos são rebaixados ao status de benefícios, ou seja, favores, atos de generosidade do Estado. Chega ao ponto de um relatório elaborado pelo CNJ chamar de benefício até mesmo a extinção da pena por cumprimento integral, em um desses mutirões. Como tudo são só benevolências autorizadas pelos juízes, não é tão grave manter dez pessoas em uma cela para quatro.  Fica tolerável a manutenção de pessoa em regime semi-aberto em estabelecimento fechado e por aí vai. "Desculpa aí, senhor preso, mas hoje não dá para quebrar o seu galho".

Passam alguns dias, o assunto vai mudando e descamba para as "regalias" dos presos. Descobre-se, em um passe de mágica, que prisões tem líderes. Com uma surpresa ainda maior, chega-se à inesperada conclusão de que as lideranças fazem negociações com administrações prisionais. Mas, chega-se a revelações ainda mais estarrecedoras: "Presos têm televisões!" "Presos tem fogões!" "Presos usam drogas!" E o discurso muda para o ódio aos presos. Eles deixam de ser as pessoas que vivem em condições insalubres, com risco de serem decapitados ou massacrados. Voltam a ser os marginais, os cruéis, os monstros e, afinal, os únicos culpados por aquele mal estar.

Aí, a gente não lembra mais que praticamente todas as prisões têm mais presos que vagas. Aí, a gente continua decretando a prisão do menino que roubou três livros. Aí, a gente continua decretando prisão provisória por risco à ordem pública, sem nem explicar o que é isto. Aí, a gente aprova aumento de pena para isto e novo tipo penal para aquilo. Aí, a gente pede redução da maioridade penal. Aí, a gente amarra o garoto no poste. Aí, a gente reclama dos direitos humanos. Aí, o mutirão acaba e o estabelecimento continua com mais gente do que é capaz de suportar. Aí, a gente simplesmente esquece e tudo volta ao normal. As águas passam, as pedrinhas ficam. Afinal, na guerra do rochedo com o mar, sempre sobra para o siri. Ainda mais se o siri for daqueles mais escuros.