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segunda-feira, 11 de junho de 2012

Linha Burra?



O habilidoso meia olha para um lado e para o outro, até que enxerga, na ponta direita, um companheiro disparando em diagonal. Se acertar o lançamento, vai deixá-lo na cara do gol. Tem que esperar o momento certo. Para funcionar, o passe tem que ser feito no momento exato em que ele estiver ultrapassando o último zagueiro. Nem um segundo a mais, nem um segundo a menos.

O bandeirinha observava o meia e, ao mesmo tempo, o atacante na ponta direita. Na verdade, como ele é um ser humano, olha um, depois o outro. Sua principal função é assinalar os impedimentos. Funciona assim: na hora em que o passe é feito, a pessoa que vai recebê-lo tem que ter, no mínimo, dois adversários entre ela e a linha de fundo. Normalmente, são o último zagueiro e o goleiro. Se esta regra não é obedecida, diz-se que o atacante está impedido.

No momento em que o meia lança, o bandeirinha rapidamente olha o zagueiro e o atacante. Mas, infelizmente, não consegue ter certeza. Ele estava um pouco à frente ou um pouco atrás? Na TV vão repetir mil vezes, de diversos ângulos, com recursos eletrônicos, para afirmar se o bandeira errou por 10 centímetros ou se acertou. Pessoas em situação bem mais cômoda vão julgar a sua marcação. Ele tem dúvidas e precisar decidir.

No futebol, o bem maior a ser protegido é o gol. A alegria de ver a rede estufando é o principal fundamento do esporte. É por causa dela que as crianças, e os adultos, narram suas próprias jogadas, no campo, no asfalto, na areia, com a bola de couro, com a bola de plástico, com a bola de meia, com a bola de papel, com a tampinha de garrafa, com a moeda, com a latinha, com o botão ou com o videogame. Em virtude disto, há uma recomendação da FIFA: na dúvida, o jogo deve seguir e não ser marcada a infração. Em juridiquês, seria o princípio in dubio pro gol.

A regra é clara. O Bandeirinha deve deixar seguir o jogo. Mas, ele não deixa. Ele sabe que se marcar o impedimento errado, Arnaldo, Wright e os torcedores podem reclamar na hora, mas depois esquecem. A jogada foi parada mesmo e ninguém sabe o que aconteceria.Podia ser que o goleiro defendesse. Porém, se deixar o jogo seguir livremente, o atacante pode fazer realmente o gol. No Fantástico só vão passar os gols da rodada, entre uma e outra piada. Se o jogador estava impedido, a imprensa vai repetir um milhão de vezes: "o bandeira errou e prejudicou a equipe". Se for decisivo, como o gol do título, ou um gol que selou um rebaixamento, então, a crítica poderá ser eterna.

Uma vez, em Natal, durante um congresso, tive a oportunidade única. Quem conhecer as figuras, sabe que deve me invejar. Sentei em uma mesa de bar com o juiz paulista Marcelo Semer (Blog Sem Juízo), o mítico defensor brasiliense, Fernando Calmon (Blog Indefensável), outro futuro mítico defensor baiano, Daniel Nicory (que não tem blog porque é preguiçoso), entre outros. Os anfitriões eram o ilustre Defensor potiguar Manuel Sabino e papai de Davi (Blog Defensor Potiguar) e o não menos ilustre juiz potiguar, Rosivaldo Toscano (Blog Rosivaldo Toscano Jr). Na TV, passava um jogo do Flamengo. Após algumas palavras sobre a situação do campeonato brasileiro, gols e impedimentos, como bons chatos, descambamos para as histórias e discussões sobre o direito e os processos.

Em dado momento, eu explicava porque não entendo birra de defensor com promotor. Para mim, o promotor estava lá era para acusar mesmo e fazia bem o papel dele. Me incomodava era o juiz acreditar que ele é imparcial, "fiscal da lei", no processo penal. Em razão disto, eu pensava, o julgador sempre dava mais crédito à palavra de quem acusa. Logo, a presunção é de culpa, quando pela lei deveria ser de inocência e o princípio que vale é o in dubio contra o réu.

Marcelo Semer, com seu jeito sereno e amistoso de falar, respondeu mais ou menos assim: "Não é isto que acontece. O juiz não acha que o promotor é imparcial. Ele pode fingir, mas, sabe que é parte, igual à defesa. Acontece que muitos juízes têm medo da liberdade. Sim, da liberdade, porque quando a pessoa é livre, pode fazer qualquer coisa. Pode ser que cometa um (talvez novo) crime. Se isto acontecer, a imprensa criticará duramente o juiz que soltou "quem não devia". Podem culpá-lo e ele pode se culpar. Se acontecer o contrário, contudo, e for preso quem não devia, ninguém vai comentar. Vai ficar esquecido. É muito mais confortável para o juiz seguir o Ministério Público".

Foi aí que tudo fez sentido. Hoje em dia, é até burrice pensar que o promotor é neutro.O juiz que despreza a proteção da liberdade como calor preponderante não o faz porque é burro, mas porque se comporta como um bandeirinha de futebol. Sem tirar nem por. Quer dizer, tem umas coisinhas para tirar e por. Por exemplo, o bandeirinha não tem vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. São garantias que o magistrado tem (e precisa ter, para o bem do povo), exatamente para que, ao contrário do bandeirinha, consiga decidir sem ceder a pressões externas. 

A diferença mais importante, entretanto, é que quando o bandeirinha contaria o princípio do seu jogo, decide que mais vale o seu conforto que um eventual gol alheio (é só um jogo). Já o julgador, quando escolhe contrariar os princípios constitucionais, determina que o seu conforto é mais importante que a liberdade de alguém (é só uma vida). O fim de não ser amolado por jornalistas incovenientes justifica que se mantenha alguém em delegacias ou penitenciárias superlotadas, sujas e violentas. Para evitar ser criticado, não importa se a prisão é ou não injusta, ela é certa.

Pode isto, Arnaldo?