Translate

terça-feira, 18 de março de 2014

Abri a Porta.



Há sete anos, sou defensor público. Quando falava na carreira que gostaria de seguir, costumava sentir estranhamento e até menosprezo.  O Estado pagava relativamente pouco e a profissão era considerada a mais trabalhosa e mais desprestigiada do meio jurídico. Alguns não escondiam outra causa de repulsa: trabalhava com os pobres. "O povo fede", foi uma frase que ouvi. Mais de uma vez.

Passei no concurso, mas não recebi o prêmio imediatamente. Ao lado de outros que fizeram a mesma opção e para quem a Defensoria não era um "concurso meio", precisei virar freguês da assembleia legislativa, das secretarias estaduais, dos programas de rádio e televisão. Sem pressão, não conseguiríamos ser nomeados. Certa feita, furamos até a segurança do governador, para entregá-lo um manifesto. Nunca vi os aprovados em outros concursos jurídicos passando pelo mesmo sofrimento. Tive inveja. Queria que vissem que eu era tão bom quanto eles.

Tomei posse e logo ouvi que, para ser tratado como eles, eu teria que ser igual a eles. Vista-se igual. Compre um carro igual, ainda que precise financiar em mil parcelas. Vá para os mesmos lugares. Exija ter tudo o que eles têm. Durante um certo tempo, fiz isto. Usava minha carteira funcional, para ser respeitado. Entrei no cinema, sem pagar, dizendo que se eles tinham gratuidade, eu também possuía o mesmo direito. Estava quase chegando ao ponto de ir ao estádio na tribuna de honra, porque descobri que assim eles faziam. Até que acordei.

Olhei para mim mesmo e senti nojo. Não foi para me tornar alguém assim que enfrentei tantos obstáculos. Eu estava fazendo a luta errada. Era só mais um porco na revolução dos bichos. Não quero sentar no alto. Quero que eles desçam e fiquem no mesmo plano que todos. Não quero ser doutor. Quero que eles sejam você, assim como eu. Não quero prioridade na fila. Quero filas menores. Não quero ir para a Tribuna de Honra. Quero sentar junto com o povo e sentir que faço parte dele. 

Não faço questão do seu cafezinho. Não preciso entrar pela sua porta. Tenho pena de quem tem tanto medo e insegurança que precisa criar portas cada vez mais exclusivas para se sentir melhor. Não tenho qualquer admiração por esse respeito arrancado à força, com autoritarismo. Não vale nada ser considerado bom, apenas porque se tem poder, ou se está perto do poder. A admiração que eu anseio conquistar é a decorrente de ajudar as pessoas a abrirem as portas que vêem sempre fechadas. O respeito que preciso é que respeitem quem eu defendo. 

Texto em homenagem a todos os que compreendem o que é Defensoria Pública e, especialmente, aos Defensores Públicos que trabalham no Fórum de Caucaia-CE.
     

domingo, 9 de março de 2014

Dia da Mulher: A Crítica do Elogio.



É difícil ver elogios às mulheres que não toquem de alguma forma no aspecto estético. Não é suficiente que elas sejam inteligentes ou que defendam causas importantes. Nenhuma homenagem parece completa se não vem acompanhada de odes à beleza, ou referências à vaidade física. As críticas também caminham na mesma direção: feiura, falta de maquiagem, roupa mal escolhida ou repetida. Tudo isto se não houver a referência explícita à frustração sexual, através da famosa expressão objetificadora:  "mal amada".

O tradicional apresentador do Jornal Nacional anunciara que, no dia 08 de março, aquela bancada estaria mais bonita, pois seria apresentada apenas por mulheres. No dia anterior, um colunista da mesma rede de comunicações publicou a informação de que a Presidenta da República havia repetido a mesma blusa. Uma editora brasileira anunciou uma promoção especial, "para o sexo feminino finalmente gostar" de um livro que compila leis: ele viria com capa de oncinha. Uma imagem que circulou nas redes sociais enumerava problemas enfrentados por elas e concluía triunfal que elas "ainda arrumam tempo para ficarem lindas".

Homenagens e críticas dessa espécie revelam desconhecimento ou descrença em relação à emancipação feminina, que vem sendo a cada dia conquistada. Não conseguir finalizar uma série de elogios sem chegar na beleza é não compreender que a mulher é mais que um corpo. Para a mulher gostar de verdade de um livro, ele precisa ter conteúdo e não capa. Elas não são necessariamente fúteis, assim como os homens também não são. As jornalistas apresentaram  o jornal nacional porque são boas jornalistas, ou porque a emissora teve que ceder à pressão e dar espaço a elas, mas não porque são mais bonitas que Bonner.

Justifica-se a existência de um dia da mulher pela violência que elas sofrem, pelo tratamento salarial desigual e pelas leis patriarcais. A data reafirma a sua imprescindibilidade pelas próprias manifestações atabalhoadas que gera. Em movimento circular, ao pedido da quebra dos estereótipos, responde-se com a adesão em massa de pessoas que, achando fazer um favor, reproduzem os mesmos estereótipos combatidos. Chamar alguém de "linda" no momento errado pode soar como cobrança de comportamento. Não difere muito de se espantar com a roupa repetida.

 Toda mulher pode vestir a roupa de oncinha que quiser, se quiser. Pode utilizar a blusa que desejar, quando desejar e quantas vezes desejar. Pode usar ou não usar maquiagem, ser mãe ou cuidar da casa, se tiver vontade. Mas, não é esta a essência do feminino. Mulheres devem ser respeitadas e louvadas pelo que pensam, dizem e fazem. É o que basta. Não é necessário fazer referência a padrões estéticos (bastante contestáveis e opressores, aliás). O 08 de março relembra a história de mulheres que, lutando por equiparação salarial com os homens, morreram carbonizadas. Se alguma delas usava batom ou salto alto, certamente não há nenhuma relevância.