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sábado, 29 de janeiro de 2011

O Tablado

“O céu é azul.
O mar é azul.
O tablado é azul.
A calça jeans é azul.

Só não é azul o azulejo, que é branco
e o quadro negro, que é verde.”

(Carlos Eduardo Medici, estudante do 1º ano do 2º Grau, em 1995)

No dia 24 de janeiro, o site Conjur publicou matéria sobre um surpreendente imbróglio, que acontece em São Paulo. O título da reportagem é “Juiz pede a suspeição de integrante do TRF-3” e, aliás, nem chega perto do cerne da questão. Se eu fosse o jornalista chamaria de “A Guerra do Tablado”.

Resumindo, foi o seguinte. Em algumas salas judiciais, o representante do Ministério Público e o Juiz ficam em posição de destaque, acima de todos os outros. A Defensoria Pública da União pediu para ficar no mesmo plano que eles. Um juiz, na sua vara, decidiu retirar o tablado e abolir a proximidade maior com quem quer que seja. Insatisfeitos, 16 Procuradores da República foram reclamar no Tribunal Regional Federal., através de mandado de segurança. Uma desembargadora, provisoriamente, deu -lhes razão e mandou reorganizar a sala, como antigamente.

  1. DECISÃO SÁBIA

Pela lei complementar 80/94, o Defensor deve estar no mesmo plano do representante que o Ministério Público. Este, por sua vez, também deve estar no mesmo plano do juiz. Diante da provocação da Defensoria, o Juiz tinha as seguintes opções:

a) Descumprir a lei e manter tudo como estava;
b) Descumprir a lei, mantendo o tablado e mandando os Procuradores descerem;
c) Manter o tablado, mas achar um cantinho para os Defensores;
d) Explodir o tablado e deixar todos no mesmo plano.

Boa parte dos defensores gostariam que ele escolhesse a terceira hipótese. Mas, o magistrado preferiu a última. Acabou com a cobertura e o porão. Foi sábio. Colocar o Defensor no alto manteria uma casta superior às partes e também aos advogados. A diferença seria apenas o ingresso de um novo sócio do clubinho. A decisão foi a mais democrática. Melhor ainda só se a mesa de audiências fosse redonda.

  1. POBRE JUIZ

Os procuradores, segundo a matéria, sentiram-se afrontados com a nova disposição, pois violaria um antigo costume. “Insatisfeitos com a iniciativa, um grupo de procuradores da República ingressou com Mandado de Segurança para ter restabelecido seu lugar no andar de cima. De acordo com o pedido, a cadeira à direita do juiz constitui uma tradição secular do funcionamento da Justiça e indica a singularidade das funções do Ministério Público.”

É estranho ver alguém se incomodar com um rito, aparentemente, tão sem sentido e importância. Lembra crianças brigando pelo banco da frente do carro, ou pelo lugar na mesa do jantar. Um amigo, Juiz, citando um colega, resumiu o problema: “doutor, se quiser, pode sentar até na minha cadeira, desde que não seja no meu colo”.  É mais maduro mesmo.

Isto sugere, entretanto, o quanto é difícil julgar. Por causa da tradição secular tão significativa socialmente, quanto o direito de Romário sentar na janela do avião, o pobre juiz vira notícia e são mobilizados16 Procuradores. Imaginem o que acontece quando ele tenta enfrentar a tradição milenar de punir os pobres com todo o rigor, mesmo contrariando as leis ou a tradição também milenar de seguir cegamente a jurisprudência?

Mas, são ossos do ofício. Se quer ser Juiz, precisa de coragem para decidir. Parabéns aos que têm.

  1. IMPARCIALIDADE

.Até mais ou menos o século XVIII, os processos penais eram inquisitórios. A mesma pessoa acusava e julgava. Aí, percebeu-se que quem acusa jamais terá a distância necessária, para julgar com imparcialidade. Assim, o réu sempre saía perdendo. Nasceu o sistema acusatório, em que, para haver justiça, uma pessoa acusa, outra defende e um terceiro, eqüidistante, julga.

Uma declaração atribuída à Desembargadora, contudo, lança uma questão. “No Mandado de Segurança, a desembargadora Cecília Marcondes destacou que ´o Ministério Público tem como incumbência promover a defesa da ordem jurídica, não podendo ser considerado parte no strictu sensu porque não busca incondicionalmente, na Ação Penal, a condenação do réu, ao contrário, atuando na defesa da lei, age livremente na busca da verdade real, verdade esta também perseguida pelo Estado personificado na figura do juiz´".  

Vamos tentar destrinchar o raciocínio que, para ela, explica a posição privilegiada do Ministério Público. Este não buscaria a condenação do acusado, mas, assim como o Juiz, a defesa da lei. Eles teriam que estar mais próximos, pelo singelo motivo de que seriam mais próximos.

Sendo assim, eu me pergunto, por que os promotores são moralmente e psicologicamente superiores aos juízes? Historicamente se constatou que o Juiz era incapaz de acusar e ser imparcial. O Ministério Público é capaz? Indo além, por que, então, precisaríamos dos dois, já que ambos buscam o mesmo? Não bastaria um juiz inquisidor, cuja decisão pudesse ser revisada por desembargadores inquisidores?

Outra coisa a se refletir é onde vai parar a presunção da inocência, pedra basilar do processo penal, em qualquer regime democrático. A desembargadora acredita que o Ministério Público quer o mesmo que ela e está mais próximo dela que o Defensor ou o advogado. O processo penal começa com a denúncia, acusação, feita pelo MP (próximo do julgador). O Defensor ou advogado vão se contrapor ao que  ele disse. É difícil entender que, pelo pensamento da magistrada, a princípio, a denúncia esta correta? A presunção, então, é a culpa. O réu sempre sai perdendo. É assim que, inconscientemente ou não, agem todos os juízes que confiam mais no Ministério Público.

No fundo, parece que pouco importa o tablado, mas sim a idéia de identidade. Não é uma disputa por uma tradição, ou por um lugar na mesa, mas por um lugar no coração. Meu conselho para o pobre juiz: enquanto não sai a decisão definitiva, continue embaixo e bote um tabladinho só para o Ministério Público, no lado direito da mesa. Seria, pelo menos, curioso. Ah! E pense com carinho na possibilidade da mesa redonda.

(em tempo, link para a matéria do Conjur, aqui)

 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Só Extraordinários. ( Jardim Gramacho e Conceição do Coité)


Lixo é aquilo que pensamos não servir para nada. São coisas que queremos que desapareçam. Vik Muniz, talvez o artista plástico brasileiro mais conceituado no mundo, percebeu que há pessoas sendo tratadas assim. Notou que há quem se considere superior e, por tabela, considere que outros são inferiores. Os últimos não prestam para nada e devem sumir da vista.

Surgiu uma idéia: mostrar que tudo serve para algo e, principalmente, que todos podem fazer algo. Para quebrar o paradigma de que existiriam pessoas naturalmente inferiores e incapazes de qualquer coisa positiva, resolveu ir a um aterro sanitário. Usando o lixo como matéria prima, faria obras de arte. Com a participação dos que vivem do lixo.

O resultado, além de belas peças, foi o documentário “Lixo Extraordinário”, concorrente ao Oscar. Os catadores viraram ao mesmo tempo artistas, obras e admiradores da arte. Três preconceitos se quebraram ao mesmo tempo: eram capazes de produzir coisas admiráveis, eram capazes de ser objeto de admiração e eram capazes de admirar produções complexas. Não é um filme para ter pena, é um filme para romper paradigmas etiológicos.

Ontem, o Jornal Nacional exibiu matéria que aproxima muito mais esta revolução da realidade cotidiana. Falava da Orquestra de Conceição do Coité. A aproximação é maior porque se trata de iniciativa em uma pequena cidade do interior baiano, sem precisar do prestígio de um renomado artista profissional. De forma amadora e sem quase nenhum recurso, atingiu o mesmo objetivo.

Com a iniciativa de uma professora da cidade, Valdete, foi fundada uma Orquestra de crianças. O dinheiro é arrecadado em uma feijoada de igreja. O maestro Josevaldo é um autodidata. Os meninos e meninas vivem e ensaiam em um dos bairros mais pobres daquela cidade. Tocam desde música regional à música erudita, quase sempre de forma instrumental. E fazem sucesso. Coité também merecia estar no cinema, disputando prêmios. Aquelas crianças produzem música, são admiradas por todos e admiram algo tão rico e difícil, como a música clássica. Não devem nada a ninguém.

O catador Sebastião, que leu Maquiavel e Nietzsche, encontrados no aterro, disse que não trabalhava com lixo, porque lixo era o que não se aproveitava. Está certo. As produções de Vik Muniz, Valdete e Josevaldo só deram certo porque as crianças como Iris, do violino, Micaela, da flauta; Letícia e André, os irmãos que explicaram ao pai a beleza do viloncelo; e os catadores como Zulu, Isis e Sebastião são pessoas, assim como eles e você, extraordinárias.





terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Surdez seletiva

Pesquisas no mundo inteiro não se cansam de mostrar que a política proibicionista de drogas não reduz o consumo, lota as cadeias e causa muito mais mortes. O Secretário Nacional dá uma declaração muito tímida , defendendo a desprisionalização (e não a descriminalização) dos pequenos traficantes. O Ministro da Justiça se chateeou, mas não com a timidez. Se irritou com a simples ideia de mudar a política genocída. Resultado: Demissão.

Por mais que se estude o tema, ninguém quer ouvir.




segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ninguém?

A elite soteropolitana pode respirar tranquila. Neste fim de semana, chegaram 14 flagrantes na Defensoria, em Salvador, e apenas um ocorreu em um bairro de classe média ou classe alta. As outras todas foram no subúrbio. Vejamos o que houve.

Segundo a polícia, houve 02 tentativas de homicídio. Em uma, dentro de casa, pai e filho brigaram, um com um pau e outro com pedra. Na outra, dois homens brigaram na rua e um puxou uma faca, mas nem chegou a usar.

Tráfico de drogas, a grande praga do milênio, que corrompe toda a juventude do país, motivou 04 flagrantes. Mas calma, minha senhora! Nenhum foi perto da sua casa!Em um deles, um casal negro caminhava e o policial resolveu abordá-los. Por que? Porque sim. O homem tinha algumas pedras de crack e disse que era usuário. Não tinha nem dinheiro com ele, mas o policial concluiu que era um traficante. Na dúvida prendeu logo os dois!

Outro também foi legal. Houve uma denuncia anônima de que se consumia drogas em uma festa. A polícia deu uma batida, encontrou drogas no chão e raciocionou. "Se há uma festa e tem pessoas consumindo drogas, todos são traficantes, ou, no mínimo, o organizador é". Zeloso da redução de danos, prendeu só o cara! Imaginei alguém algemando Ivete Sangallo, porque os foliões do seu bloco se drogavam. "Pera aê, pera aê, pera aê! Tá pensando o quê? Tá pensando o quê?" Até parece... não prenderam ela por vestir a camisa do Vitória, vão prender porque outros cheiravam  lança-perfume?

Roubo foi uma só tentativa  em uma loja de cabelo(!). Porte de arma, um também. Ah! Teve o cara que dirigia depois de beber. Dois homens presos por ameaçar as companheiras. Um deles, no momento da prisão, estava sentado na mesma calçada que ela. Se a memória não me engana, todo o resto foram furtos. Até um macaco hidráulico foi levado! Entre eles, estava a única ocorrência em bairro nobre: uma tentativa de furto de som de carro.

Nenhum pai jogou a filha pela janela, nenhum goleiro matou a namorada, ninguém vendia drogas para crianças, ninguém decapitou os outros, ninguém fez sequestros em shoppings, nenhum "jovem de bem" foi corrompido, não teve sequer um estupro! Não teve um crime  de colarinho branco também, lógico. Mas, como? E as notícias?

Mas, o que isto tudo quer dizer? Talvez, nada. Talvez, que haja uma grande seletividade na abordagem da polícia. Talvez, que o clima de insegurança é muito maior do que a própria insegurança. Talvez que os presos não sejam monstros, mas apenas pobres. Talvez, que os fatos bizarros repetidos à exaustão e que justificam as campanhas pelo maior rigor das penas, sejam exceções. Talvez...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Como nossos Pais ( O Desafio das Defensorias)

A Defensoria Pública da Bahia está em período eleitoral. Como acontece em todo lugar, é uma época de debates, confrontos de ideias e fofocas. Sobre o que se espera do próximo gestor, não vou falar do óbvio: que precisará lutar pela melhoria estrutural e pelos aumentos do quadro e da remuneração. Nem, que precisará assegurar as sempre ameaçadas e incompreendidas prerrogativas dos Defensores. Falarei do maior desafio e o mais difícil de vencer, válido para todos os Estados e para a DPU.

Uma instituição voltada diretamente para a defesa dos excluídos precisa ser uma instituição de ruptura. Para começar, precisa ter bem claro para quem ela trabalha. Os pontos de vistas a serem defendidos são os do pobre, os do analfabeto, os do negro, os da mulher, os do homossexual, os do consumidor de crack, os do desempregado, os do apenado, os do réu, em fim, os das "minorias". Toda a estrutura tem que se voltar para o atendimento deles e não para a imitação do polo oposto.

O rompimento precisa, então, atingir a linguagem. O uso dos "Doutores" e "Excelentíssimos" não servem para nada, além de impor uma barreira, em relação ao público. O latinório complementa o vestuário, afinal, o paletó e a gravata são meras fantasias de deuses que os juristas usam para definir quem é quem. Uma instituição que defende o lado de baixo não pode sustentar o arsenal simbólico que reforça a predominância do lado de cima. Se a Defensoria tem lado, ela precisa assumí-lo, seja em relação aos seus membros, seja em relação aos seus assistidos.

O maior desafio da Defensoria é conquistar o seu espaço, enquanto instituição jurídica, fugindo do narcisismo tão comum entre os juristas. É pouco entender que o juiz e o promotor não são melhores que o defensor. Deve-se, também, compreender que os defensores não são melhores que os assistidos. Só extirpando a vaidade comum dos juristas, é possível extirpar a vaidade positivista. Só se livrando da vontade da idealização dos operadores do Direito, é possível deixar de idealizar os Tribunais Superiores. E não dá para lutar de verdade pelos excluídos com mentalidade positivista ou com a reverência subserviente ao pai tribunal.

Esta é a encruzilhada. Obviamente, é urgente o fortalecimento. Mas, não pode haver o complexo de inferioridade que resulta na tentativa de se igualar. O quadro tem que ser igual ao das outras carreiras, assim como a remuneração. Mas, a instituição e os profissionais precisam ser diferentes. Não há necessidade de novas excelências vaidosas de paletó, mas de pessoas que ajudem os pobres a se proteger e se libertar das excelências de paletó. Se queremos uma Defensoria que funcione como instrumento de transformação social, precisamos de Defensores que se transformem. Hoje, infelizmente, nosso ídolos ainda são os mesmos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Mora na Filosofia

Texto interessantíssimo e de uma sinceridade comovente, de autoria de admirável magistrado potiguar. Ensina muito sobre a falibilidade do julgador e a humildade. Mostra também a importância da igualdade de tratamento para acusação e defesa. Por fim, além de ilustrar a dificuldade de decidir, reflete também como, ao contrário do que se faz usualmente, a opção por punir mais exige muito mais cautela que a contrária.

Retirei do Blog do autor, Rosivaldo Toscano Jr. O original está aqui. Vale a pena visitar os outros (excelentes) textos de lá.

"Nosso Rol Secreto de Arrependimentos


Estava numa comarca do interior, no início de carreira. Deparei-me com o caso de um acusado que, juntamente com um desconhecido, ingressou numa padaria, anunciou um assalto, levou o dinheiro do caixa e, durante a fuga, tomou a moto de uma mulher, fugindo em disparada. A motocicleta foi largada um quilômetro depois.
A tese do Ministério Público era de tinha havido dois roubos – o da padaria e o da moto, o chamado concurso material de crimes. A tese da defesa era de crime continuado., em que se condena por um só crime, com um pequeno aumento pelo segundo.
Quando fui fazer a sentença, veio à cabeça uma dúvida não aventada pelas partes: se a moto foi subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela foi encontrada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda inexperiente e inseguro, faltou coragem para rechaçar a pretensão do Ministério Público naquele momento, pois temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui me aconselhar sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o amigo e combativo promotor de justiça, que também chamamos de Parquet. Obviamente, como era parte na causa ele reiterou sua tese e procurou rechaçar as teses de crime continuado e de post factum impunível. Destacou que o acusado era reincidente e que também respondia por um furto cujo interrogatório já estava aprazado.
Informalmente, e sem perceber, aquele diálogo com o Parquet terminou sendo mais importante para a formação de um juízo sobre o destino da causa do que a leitura fria das razões das partes.
Um juiz deve perder tudo, menos a isenção. Por dar tratamento privilegiado ao Parquet em relação à defesa, foi exatamente isso que me aconteceu naquela tarde. Resultado: condenei o réu duas horas depois, amparando na íntegra a tese do MP de dois roubos qualificados, a uma pena de uns treze anos de reclusão.
O inconsciente, contudo, não me absolveu. Algo estava fora do lugar. Procurei, no início, racionalizar e justificar que aquele homem merecia a pena maior porque era degenerado. Mas depois passei a sentir um certo desconforto ao pensar no caso nos dias que se seguiram à assinatura da sentença. Ele foi crescendo. Até esperei um recurso da defesa, mas ela silenciou. Houve o trânsito em julgado e, assim, a decisão se tornou imutável. Não havia mais o que fazer. Logo depois me arrependi conscientemente da decisão. A angústia era sintoma de que havia cometido um grave erro: transigido com as minha próprias convicções. Senti a angústia em silêncio, na solidão da toga.
Dias depois veio o interrogatório do acusado no segundo processo que o envolvia. Era um furto cometido por ele na mesma época. Confessou tudo. Encerrada a audiência, ele pediu humildemente para falar comigo e disse, com olhos rasos d’água, exatamente o que eu não queria ouvir:
- Doutor, o senhor cometeu uma grande injustiça comigo naquele outro processo. O senhor me condenou por dois roubos, mas só peguei a moto para fugir! Eu depois a larguei com a chave na ignição.
Poderia ter me escondido por trás de uma resposta fria e ratificadora da decisão já tomada. Até me veio isso. Poderia simplesmente repetir os fundamentos do parquet. Mas não seria honesto com ele. Foi duro dizer, mas respondi:
- Você tem razão. Eu errei. Na época não avaliei bem. Analisando melhor hoje, não o condenaria pelo roubo da moto. E o pior é que não há nada a fazer em relação a esse caso. Já até estudei uma revisão criminal. Seria uma espécie de reavaliação do seu caso. Mas nem isso cabe porque embora concorde com você hoje, a tese do Promotor está juridicamente embasada e só caberia uma revisão se fosse uma coisa absurda.
Eu sabia que quando respondesse à primeira pergunta, seria fatalmente feita uma segunda. E já sabia até seu teor:
- Dá pra dar um jeito em relação a essa acusação de agora? Sei que vou ser condenado de novo.

- Saiba que se fosse possível, o faria, mas infelizmente não é possível compensar as penas. Cada caso é um caso. Saiba também que irei carregar comigo essa culpa.
O leigo não percebe, mas a função de julgar é, muitas vezes, indigna. Um ser repleto de imperfeições julgando o outro...
Foi duro, na posição de juiz, admitir o erro para o próprio acusado, mas acho que ele merecia essa consideração. Foi uma medida de respeito à sua individualidade. E essa abertura para com o outro me permitiu tirar uma lição a partir desse caso: o juiz deve sempre dar paridade de armas às partes.
Acho que essa experiência também me fez um juiz muito mais reflexivo, isento e atencioso com as partes e com as causas, respeitando as regras do jogo. A isonomia de tratamento das partes e a cautela para evitar prejulgamentos são as bases que que alicerçam uma decisão justa.
Agindo assim, diminuí, acredito, a probabilidade de novos erros. Mas não há como evitá-los de maneira absoluta: os tropeços fazem parte até mesmo das melhores trajetórias de vida. Saibam: somente os juízes absolutamente inexperientes não tem seu rol secreto de arrependimentos. E para alguns, inconfessáveis até para si próprios.
É como digo na chamada do blog:

“Por trás da magnificência de uma toga há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro, repleto de anseios, angústias, esperanças e sonhos.” "



segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Coro das Velhas ( ou 07 ondas)


Manhã do dia 1º de janeiro de 2011. Eu e um primo (na verdade, marido de uma prima, mas parente socio-afetivo) saíamos do mar, em uma praia vazia. Uma senhora, que aparentava seus 70 e poucos anos, gritou:

- Não saiam! Não saiam! Por favor!
- O que houve?
- Eu só mergulhei em 03 ondas. Ainda faltam 04! Se vocês saírem, ninguém poderá me resgatar.

Eu conhecia a história de pular 07 ondas, mas não de mergulhar. De qualquer modo, ficamos por lá. A água batia na minha canela. Ela pulava e quando erguia a cabeça, sempre tinha uma marolinha a uns 5o metros. Em vez de levantar, ela gritava até a marola chegar e jogá-la, às cambalhotas, alguns metros atrás.

Corriamos para acudir e, enquanto a punhamos de pé, ela falava.

-Ai meu Deus! Assim, mata a velha! Só faltam 03!

Assim foi, até o final, quando após os últimos "ai, Meu Deus!, assim, mata a velha", fez o comentário definitivo:

- Mas, que merda de 07 ondas! Não sei quem foi que inventou esta porra!

É isto mesmo, senhora. Ainda que o queiramos pareça simples, temos que enfrentar várias ondas. Ao contrário do que ocorre no mar, elas não vem só da nossa frente, mas de todos os lados. De onde menos se espera pode ser gerado um tsunami, só para matar uma velha teimosa.

Que bom que existem as senhoras que, mesmo sabendo que não evitarão a queda, engolem água, mas não desistem.



O Coro Das Velhas
Sérgio Godinho


Ia eu pelo concelho de Caminha
quando vi sentada ao sol uma velhinha
curioso, uma conversa entabulei
como se diz nuns romances que eu cá sei

Chamo-me Adozinha, disse, e tenho já
os meus 84 anos, feitos há
mês e meio, se a memória não me falha
mas inda vou durar uns anos, Deus me valha

Com esta da austeridade, meu senhor
nem sequer da para ir desta pra melhor
os funerais estão por um preço do outro mundo
dá pra desistir de ser um moribundo

Rabugenta, eu? Não senhor
eu hei-de ir desta pra melhor
mas falo pelos que cá deixo
não é por mim que eu me queixo

Ó Felisbela, ó Felismina
ó Adelaide, ó Amelinha
ó Maria Berta, ó Zulmirinha
vamos cantar o coro das velhas?

Cá se vai andando
c'o a cabeça entre as orelhas

Não sei ler nem escrever mas não me ralo
alguns há que até a caneta lhes faz calo
é só assinar despachos e decretos
p'ra nos dar a ler a nós, analfabetos

E saúde, eu tenho p'ra dar e vender
não preciso de um ministro para ter
tudo o que ele anda a ver se me pode dar
pode ir ele p'ro hospital em meu lugar

E quanto a apertar cinto, sinto muito
Filosofem os que sabem lá do assunto
Mas com esta cinturinha tão delgada
Inda posso ser de muitos namorada

Rabugenta, eu? Não senhor
eu hei-de ir desta pra melhor
mas falo pelos que cá deixo
não é por mim que eu me queixo

Ó Felisbela, ó Felismina
ó Adelaide, ó Amelinha
ó Maria Berta, ó Zulmirinha
vamos cantar o coro das velhas?

Cá se vai andando
c'o a cabeça entre as orelhas

E se a morte mafarrica, mesmo assim
me apartar das outras velhas, logo a mim
digo ao diabo, não te temo, ó camafeu
conheci piores infernos do que o teu

Rabugenta, eu? Não senhor
eu hei-de ir desta pra melhor
mas falo pelos que cá deixo
não é por mim que eu me queixo

Ó Felisbela, ó Felismina
ó Adelaide, ó Amelinha
ó Maria Berta, ó Zulmirinha
vamos cantar o coro das velhas?

ps: tem uma versão de Zeca Baleiro, com o próprio Sérginho Godinho, mas não achei o vídeo.
ps2: pulei 07 ondas. É melhor não arriscar.