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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

João Grilo e as Simbologias dos Tribunais.



Uma das maiores obras da literatura, O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito originalmente para o teatro, ganhou diversas versões, para o cinema e a televisão. É uma obra, muito engraçada, que aborda as peripécias de dois pobres sertanejos, João Grilo e Chicó, tentando sobreviver com esperteza, em meio à pobreza geral à sua volta. O clímax acontece quando alguns dos personagens são julgados, por Deus. Além de risos, pode provocar reflexões. 

O filme, como de regra, faz com que nos identifiquemos e torçamos para os protagonistas. Assim, tudo é retratado pela ótica deles, inclusive o julgamento. E aí, começam os choques, para o público médio consumidor de cinema, literatura e até mesmo de seriados sobre crimes. Normalmente, a persecução penal é tratada com a visão da classe média ou da classe alta. No Auto, por sua vez, é imaginado um processo desejado pelo pobre, que, normalmente, é o réu.

Logo de início, a primeira diferença com o imaginário comum. O acusador é o diabo. A defesa é feita por Maria, a mãe de Jesus. Estamos acostumados a tratar os promotores como heróis, justos e corajosos e os advogados como corruptos, mentirosos. Mas, aqui, a lógica é invertida, brutalmente. Para não deixar dúvidas, João Grilo chega a constatar que o demônio é uma mistura de tudo o que ele não gosta:  "promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia".

Evidentemente, a obra não afirma que promotores e policiais são o retrato do mal, nem que defensores são santos. Mas, diz, sim, que na perspectiva de uma parcela considerável da sociedade, os primeiros são temidos. Não há, no filme, ou no livro, nenhuma sugestão de que João Grilo seja um réu habitual, portanto, esta parcela não é composta apenas por "presos" ou "criminosos", mas, sim, pelos pobres. Quem se sente ameaçado pela justiça seletiva sabe que muitas prisões são violentas, abusivas e que os acusadores podem ser muito cruéis e insensíveis aos seus problemas. E todo o pobre sabe que é um potencial alvo.

O acusador também não parece nada imparcial. É nítido que ele faz o possível para obter a condenação, mesmo esquecendo alguns princípios básicos de direito penal. Por exemplo, o diabo tenta aplicar a sanção e levar os réus ao inferno, mesmo sem julgamento. Lembra muito a prisão provisória. Depois, não se incomoda com o fato de que eles não tiveram "defesa técnica", até quando João Grilo convoca Maria para falar por eles. Na ótica dos pobres, não existe a figura do "fiscal da lei", neutro, praticamente um segundo juiz, que filmes, matérias sobre o crime e juristas ingênuos ou cínicos atribuem ao Ministério Público.

Aí, entra uma outra inversão muito significativa. Ao contrário do que acontece nos nossos tribunais, é a advogada de defesa, ou Defensora Pública, Maria, quem se posta no alto, ao lado do julgador. O acusador está lá embaixo, afastado. A troca de posições é importante para entender a reclamação quanto a geografia das salas de audiência, com promotores coladinhos aos juízes. O magistrado mantém, na estrutura do filme, uma notória cumplicidade com a defesa, enquanto trata a acusação de modo irônico, depreciativo e desconfiado. Em diversos momentos, antes de decidir, pergunta se a solução satisfaz Maria. Não é preciso muita experiência forense, para notar como a nossa prática é exatamente oposta.

Há ainda outros sinais de como seria diferente um julgamento, construído pela perspectiva dos pobres: o juiz é negro, já condenado e pobre. É capaz de se por na posição dos réus. Assim, Suassuna demonstra como o sistema judicial é composto de vários elementos, que criam um ambiente hostil aos réus e à defesa. E mostra, principalmente, que esta hostilidade se esconde tão bem atrás de togas, paletós, costumes, tradições, palavreados vazios, que é, cotidianamente, ignorada e reproduzida. Mais que isto, aqueles que a denunciam são considerados chatos e impertinentes.


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