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sábado, 30 de abril de 2011

Paradoxos Penais

  O juiz e blogueiro potiguar Rosivaldo Toscano está escrevendo uma série de divertidíssimas histórias sobre a perplexidade que as leis penais causam, de vez em quando. São as aventuras de Legisnaldo Penagildo, um curioso estudante de direito que não anda sem seu Vade Mecum e sonha com uma carreira criminosa. 

Copiei o último capítulo (até agora). Acompanhe o resto no blog do autor.

"Da Série Paradoxos Penais - III


Milagrosamente livre do flagrante da prática do crime descrito no art. 273 do CP (vide postagem anterior aqui), o estudante de direito Legisnaldo por pouco não foi preso por desacato. Inicialmente, os policiais desconfiaram que ele fosse louco em se autoincriminar, mas diante do teste negativo com o reagente para cocaína, tiveram certeza de sua insanidade. Porém, para não ficar barato, deram-lhe um bom banho usando vários frascos do talco, antes de liberá-lo. Não perceberam, sequer, que aquele talco que trazia Legisnaldo era um produto adulterado destinado a fins terapêuticos, um crime hediondo.
Frustrado em sua tentativa de iniciar uma carreira criminosa, Legisnaldo finalmente aceitou o antigo convite do seu pai, um empresário de sucesso, para serem sócios numa grande fábrica de calçados. Contudo, logo encontrou um meio de realizar seus intentos criminosos:
- Pai, achei um ótimo atalho para incrementarmos os lucros da empresa. Esses empregados são uns manés. Olha só, todo mês temos que repassar para a Previdência Social cinquenta mil reais do INSS deles. Vamos embolsar uma parte desse dinheiro, pagar a prestação de um iate novo com a outra e, se um dia vierem cobrar, a gente deixa que botem na Justiça. Temos bons advogados, passarão anos na pendenga e depois, se for o caso, ou fazemos um acordo ou damos baixa nessa firma e abrimos outra!
- Esse meu filho é um empreendedor. Ele vai longe. Viva ao capitalismo! - exclamou o entusiasmado pai.
Meses se passaram, até que um dos empregados foi acidentado e descobriu que estava sem cobertura nenhuma da Seguridade Social graças à boa vontade de Legisnaldo e seu pai. Deu bode. A casa caiu. O Fisco e o INSS fizeram uma batida e constataram a apropriação indébita previdenciária, prendendo Legisnaldo em flagrante. Prejuízo ao Erário Público: trezentos mil reais.
Legisnaldo, algemado, entra na delegacia. Foi mandado a um xadrez lotado. Inventou que seu vade mecum era uma bíblia e entrou com ele na cela. Lá dentro, incrivelmente, descobriu que havia um homônimo seu preso por ter se apropriado de um televisor 14 polegadas do vizinho.
O pai - que não estava na empresa na hora da prisão -, logo que soube, acionou sua equipe de advogados. Poucas horas depois, chega um carcereiro diante da cela e pergunta:
- Quem é o preso aí de nome “Legisnaldo Penalício da Silva”?
- Sou eu! - Gritaram os dois jovens.
- É que um vai ser solto agora e o outro continuará preso, pois o juiz decretou a prisão preventiva. Bem, estou vendo aqui que são homônimos. Um é um síndico que se apropriou de um televisor emprestado pelo vizinho... e o outro um empresário que se apropriou de trezentos mil reais recolhidos dos empregados e não repassados à Previdência Social. Quem é cada um dos dois?
O pobre coitado que se apropriou do televisor berrava e se espremia enlouquecidamente nas grades da cela, jurando ser ele a pessoa que apenas se apropriou do aparelho usado do vizinho e que o que queria era, tão somente, assistir aos jogos do Flamengo. Enquanto isso, Legisnaldo rapidamente sacou seu vade mecum debaixo da axila e foi conferir.
- Um instante, por favor, seu guarda. Para responder eu preciso de um pouco de reza (abrindo o vade mecum).
Viu que em se tratando de apropriação indébita (art. 168, § 1º, do CP), mesmo que o televisor fosse restituído ao legítimo dono antes do recebimento da denúncia, seria condenado criminalmente. Teria apenas direito a uma diminuição da pena (art. 16 do CP). Após o recebimento, pior. Haveria, tão somente, uma atenuação (art. 65, III, b, do CP).
Viu também que em se tratando de empresário que se apropria do dinheiro do INSS dos seus empregados (art. 168-A, do CP), a lei exige uma representação fiscal, precedida da constituição do crédito tributário. E isso só poderia caber se não fosse possível o parcelamento do débito (art. 83 da lei 9.430/96). Tal peculiaridade tornara a prisão em flagrante de Legisnaldo ilegal. Viu também que o parcelamento poderia ser em até 15 anos (art. 1º da lei 11.941/2009) e que durante esse período sequer denúncia poderia ser oferecida (§§ 1º e 2º do art. 83 da lei 9.430/96) e, o melhor, extinguia-se a punibilidade quando o débito fosse todo pago (§ 4º, do art. 83).
Legisnaldo não pestanejou:
- Ei, seu agente! Não sei se o síndico bandido que ficou a televisão do vizinho é ele, mas o empresário sou eu!


*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD"

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Fato inusitado e a doutrina do yes effect

  

Grande texto de Manuel Sabino, o Defensor Potiguar.

Original .http://defensorpotiguar.blogspot.com/2011/04/fato-inusitado-e-doutrina-do-yes-effect.html

Fato inusitado e a doutrina do yes effect


Cheguei hoje no Fórum Varella Barca e fui de imediato à 1ª Vara Criminal da Zona Norte onde minha primeira audiência do dia estava para começar. Tráfico de drogas era a acusação. A prisão do acusado era recente, ocorrida em janeiro de 2011.

Liguei meu computador, conversei com os funcionários, relembrei o processo, tomei meu primeiro café... Saí da sala de audiências e conversei com os familiares do acusado, que compareceram em peso, explicando tudo o que poderia acontecer naquele dia (ou quase tudo, como ficou claro depois).

Como todos os dias vem acontecendo, devido à desorganização do Estado na condução dos presos às audiências, a audiência demorou para começar.

Quando a escolta chegou, colocando o preso no banco dos réus, a primeira testemunha, o Policial que teria abordado o acusado, com ele apreendendo certa quantidade de droga, já estava posicionado para ser ouvido. O juiz iniciou a gravação e, de cara, perguntou:

- Amigo, aproveitando a chegada do acusado, o senhor o reconhece como a pessoa que estava comercializando drogas naquele dia?

O Policial inclinou-se sobre a mesa como que para olhar bem nos olhos do preso e, sem maiores considerações afirmou categoricamente:

- É ele sim, Excelência. Ele é conhecido nosso da região, já o abordamos diversas vezes. Ele estava com diversas trouxinhas de "maconha" e "crack". Trafica na rua com um comparsa. O apelido dele é "cabeça".

Satisfeito, o magistrado, por força do hábito, quis apenas reforçar: - Tem certeza?

- ABSOLUTA - respondeu convicto.

Ao meu lado, o preso se contorcia todo, aparentemente muito assustado. O promotor também estranhou a reação do preso.

Neste momento, o agente que conduzia o preso, quebrando o protocolo, berra:

- Alto lá!!! Pára tudo!!! Tá tudo errado!!!

O agente continou resmungando em linguajar próprio enquanto todos, estupefatos, ficamos nos entreolhando. A gravação continuou registrando a inusitada intervenção. O juiz quis continuar os questionamentos, mas a situação era insustentável. A audiência virou uma bagunça.

Antes que o juiz pudesse repreender o agente, ele saiu da sala, gritou por um colega e trouxe outro preso, um rapaz jovem, alto, magro e de pele muito clara.

O agente apontou para o preso que estava no banco dos réus, um homem negro, baixo e forte, e disse:

- Este aí é acusado de "121"!!! A audiência dele é na 3ª Vara!!! O preso desta audiência é este outro!!!

***

O acusado da história verídica relatada acima - cujo apelido é "careca" e não "cabeça" - acabou sendo absolvido. Mas o inusitado e pitoresco "reconhecimento", que arrancou sorrisos de todos e deixou o Policial bastante constrangido, mostra como este tipo de prova é falho. O mais absurdo é que condenações baseadas unicamente no reconhecimento são muito comuns. E o pior: o reconhecimento é via de regra feito sem a observância das regras do Código de Processo Penal.

Sobre o tema, costumo tecer os argumentos abaixo, apontando as razões científicas para a cautela com este tipo de prova.

***

O "reconhecimento" não seguiu o procedimento legalmente previsto pelo CPP:

Art. 226 CPP. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.


A Polícia falhou em cuidar, na medida do possível, da “neutralidade psíquica” do depoente. Desta forma, aumentou, ao invés de reduzir um dos maiores fatores de distorção dos atos recognitivos, que leva a testemunha a, sobretudo num ambiente de tensão, sentir-se constrangido a identificar positivamente alguém (o chamado yes effect).

O cuidado do legislador na regulação do ato de reconhecimento evidencia a importância, a relevância prática para a formação da convicção probatória e a falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções.

Vale salientar que, por óbvio, um reconhecimento inválido impede que aquela testemunha, no futuro, venha a confiavelmente reconhecer novamente o acusado como autor daquele fato. Isto se dá porque, agora que a Polícia já identificou o acusado, mostrando-o à testemunha, sua memória não pode ser apagada, sendo impossível se saber se ela o reconhece do momento do fato ou da Delegacia.

Ademais, a credibilidade conferida ao reconhecimento positivo tem sido contrariada pelos inúmeros estudos que nos últimos anos têm vindo a ser realizados em diversos países. O reconhecimento é um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos confiáveis, ainda que se tenha cumprido escrupulosamente o formalismo estabelecido na legislação. Tais trabalhos têm revelado:

a) Que a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, pois procura localizar a pessoa que mais semelhanças apresenta com o agente do crime por ela visualizado;

b) O fácil sugestionamento de que pode ser vítima a pessoa que deve realizar o reconhecimento, como através do comportamento da pessoa que orienta a diligência.

c) O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efetuada, segundo tais estudos, depende mais do comportamento corroborante do investigador e da confirmação da sua identificação por outras testemunhas, que da nitidez das suas recordações.

Assim sendo, não há como se confiar no reconhecimento realizado em desconformidade com o procedimento delineado no Código de Processo Penal.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Casa de Prostituição e Política Criminal

 

Texto de Paulo Queiroz. Original aqui. 

Casa de prostituição e política criminal

Recentemente o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar habeas corpus (HC 104467/RS, Relatora Ministra Cármen Lúcia) visando a trancar ação penal por crime de casa de prostituição, assim decidiu:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA TÍPICA. CONSTRANGIMENTO NÃO CONFIGURADO. 1. No crime de manter casa de prostituição, imputado aos Pacientes, os bens jurídicos protegidos são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância social a serem resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio da fragmentariedade. 2. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. 3. Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor. 4. Habeas corpus denegado.

No sentido contrário, é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

CASA DE PROSTITUIÇÃO. DESCRIMINALIZAÇÃO POR FORÇA SOCIAL. À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribuí para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como ´acompanhantes´, ´massagistas´, motéis, etc., que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, haja vista que tal conduta, já há muito, tolerada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não será as de origem mais modesta e mais deficiente economicamente. Apelação improvida. Unânime” (Apelação Crime n.° 70000586263, 5ª Câmara Criminal, TJRS, Rel. Des. Aramis Nassif, j. em 16.02.2000).

Subjacente a isso, além da questão moral, está a discussão sobre os limites do poder punitivo do Estado. A questão fundamental reside em saber, portanto, se o Estado, contrariamente à vontade dos próprios indivíduos que pretende proteger - indivíduos adultos e capazes -, pode criminalizar, direta ou indiretamente, certas práticas tidas como ofensivas à dignidade da pessoa humana, concretamente considerada.

Nélson Hungria, ao sustentar a legitimidade da intervenção penal no particular, afirmava:

Talvez se afigure, prima facie, que nos países, como o nosso, em que não se proíbe a prostituição em si mesma, seja injustificável a repressão dos lenões, pois, se tal ou qual fato é permitido ou penalmente indiferente, não se deveriam, coerentemente, incriminar os que lhe são famulativos ou acessórios (accessorium sequitur suum principale). Este raciocínio, porém, estaria abstraindo que a política criminal muitas vezes desatende à lógica, para seguir critérios de oportunidade e conveniência. A prostituição é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento e extensão dessa chaga social. Se a prostituição é um mal deplorável, não deixa de ser, até certo ponto, em que pese aos moralistas teóricos, necessário. Embora se deva procurar reduzi-la ao mínimo possível, seria desacerto a sua incriminação. Sem querer fazer elogio, cumpre reconhecer-lhe uma função preventiva na entrosagem da máquina social: é uma válvula de escapamento à pressão de recusável instinto, que jamais se apazigou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação até mesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais.1

Em termos semelhantes, e com uma argumentação um tanto curiosa, dizia Magalhães Noronha:

Enquanto a casa paterna e das famílias se fecharem para a donzela seduzida; enquanto a mulher viver na dependência econômica do homem e enquanto todos os adultos não casarem – aliás, bem cedo -, haverá prostituição. Pode ela variar de forma, tomar diversos aspectos – de portas abertas, clandestinamente etc. - mas existirá sempre. Imagine-se se hipoteticamente conseguisse o Estado asilar e acolher em estabelecimentos de assistência social todas as infelizes, qual a situação dos milhares de milhões de homens solteiros e viúvos? É visível que mais que nunca o homossexualismo campearia e se multiplicariam assustadoramente os atentados contra a honra das famílias. De uma coisa podemos estar certos: não é pelo fato de considerá-la crime que desaparecerá.2

Enfim, o discurso punitivo é essencialmente o mesmo: embora a prostituição seja inevitável e até necessária, ela é em si mesmo um mal, uma atividade imoral e repugnante, que não pode ou não deve ser criminalizada. No entanto, a criminalização de quem explore a prostituição está plenamente justificada.

Temos que semelhante discurso, além de grandemente hipócrita, é insustentável político-criminalmente.

Em primeiro lugar, porque as pessoas (homens e mulheres adultas) são, em princípio, livres para disporem de seus corpos como bem entenderem, podendo fazê-lo gratuita ou onerosamente. E o Estado (penal) não pode nem deve pretender proteger pessoas adultas e capazes contra suas próprias decisões, como se fossem crianças indefesas.

Em segundo lugar, porque, contrariamente ao que pretende o discurso punitivo, aquilo que não pode ou não deve ser proibido/criminalizado pela via direta (v.g., uso de droga, prostituição etc.), não pode nem deve (como regra) ser proibido/criminalizado pela via indireta. Consequentemente, também a conduta do sujeito/empresa que explore a prostituição não pode nem deve ser tipificada, razão pela qual a atividade deve ser autorizada e legalmente explorada.

Em terceiro lugar, porque proibir a casa de prostituição não é controlar nem prevenir, mas simplesmente remeter a atividade proibida para a clandestinidade, onde não existe absolutamente nenhum controle (oficial), razão pela qual a intervenção penal é no particular absolutamente inadequada e contraproducente, pois cria mais problemas do que resolve.

Em quarto lugar, porque, uma vez regulamentado o exercício da prostituição, poder-se-ia exercer um controle mínimo por parte do Estado, visando a proteger clientes e prestadores de serviço, assegurando-se-lhes, inclusive, como toda atividade legal, direitos trabalhistas, previdenciários etc.

Em quinto lugar, porque, a pretexto de proteger, por meio da criminalização, a dignidade da pessoa humana, tais indivíduos ficam, em verdade, absolutamente desprotegidos e vulneráveis, e submetidos a toda sorte de violência e constrangimentos ilegais. E, mais, a pretexto de tutelar a dignidade da pessoa humana, o Estado acaba por negá-la e violá-la manifestamente, tratando tais indivíduos, não como sujeitos de direito, mas como simples objeto, negando-se-lhes a liberdade de decidirem por conta própria.

Em sexto lugar, porque a casa de prostituição é, em princípio, um crime sem vítima (exceto quando envolva incapazes). E eventuais crimes (maus-tratos, sequestro ou cárcere privado, extorsão etc.) contra prostitutas (ou clientes) já são autonomamente puníveis.

Finalmente, não é preciso muito esforço para imaginar atividades que, embora legais, sejam mais indignas ou penosas do que o exercício da prostituição, especialmente em razão das condições degradantes, desumanas etc. Nem cabe ignorar que a prostituição está presente em todos os lugares: jornais, televisão, cinema, internet, outdoor, casas de massagem etc., a demonstrar uma evidente incompatibilidade entre a tolerância real e a intolerância legal.

Enfim, quanto à prostituição e outras tantas atividades, embora o Estado possa intervir por outros meios mais adequados e menos lesivos à liberdade, não está minimamente justificada a criminalização, quer direta, quer indiretamente, motivo pelo qual a pena pública constitui uma violência absolutamente despropositada.


1Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 169/170.
2Direito Penal. S.Paulo: Saraiva, 2003, p. 213.


quarta-feira, 13 de abril de 2011

Unzinho, pra relaxar.



Certo dia, em Salvador...

Poucos minutos antes da audiência, a Defensora conversava com o seu assistido. Ele era acusado de tráfico de drogas. Ela estranhava o odor na sala. Pensava que estava ficando maluca, devido ao excesso de trabalho. Não podia estar sentindo o cheiro que parecia sentir. Olhou para a porta, imaginou que talvez viesse de fora, mas não estava muito próximo. Não tinha jeito, precisava perguntar.

- Amigo, você faz uso de substâncias psicoativas?
- Eu? Não, doutora!
- Fale a verdade, rapaz... eu sou sua defensora!
- Ok, eu uso, doutora, mas só maconha.
- Quando você usou pela  última vez?
- Na verdade, faz pouco tempo...
- Foi hoje?
- Foi, doutora, um pouco antes de vir pra cá...
- Rapaz, você é louco?? Como é que você vai fumar maconha antes de uma audiência na Vara de Tóxicos?
- (...)
- Você tem noção da importância desta audiência para você? Você sabe que a sua liberdade está em jogo? Você tem consciência de que toda a sua vida pode mudar, hoje?
- Claro que tenho, doutora...
- Então?
- Foi justamente por saber que era importante. A senhora já penso no meu nervosismo? Já pensou no medo que eu estou sentindo? Eu estava tão tenso, mas tão tenso, que não teria coragem de vir, se não fumasse unzinho, pra relaxar.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Um Espelho


"Primeiramente, deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem luvas..." 
Wellington Menezes de Oliveira

É realmente trágico o que aconteceu no Rio de Janeiro. A violência já é terrível. Uma chacina de crianças é o fim. Muito se discutirá sobre o fato de o rapaz ser "estranho" e sobre a necessidade de segurança nas escolas. Por acaso, ou por conveniência, todos falam sobre medidas que agradariam as empresas que vendem "proteção", mas poucos falam sobre medidas que desagradariam empresas que vendem as armas.

Wellington separava o mundo entre puros e impuros, entre bons e maus, entre cidadãos de bem e bandidos. A sua visão era claramente maniqueísta. Ele, religioso e seguidor dos bons costumes, obviamente, estava entre os superiores e achava que devia combater os inferiores. Precisava melhorar o mundo e defender os bons valores, eliminando os selvagens, infiéis. Para tanto, poderia comprar e usar armas de fogo.

É difícil descobrir a razão da opção pelo ataque a garotos na escola. Vislumbro pelo menos três possibilidades. Talvez, ele imaginasse que as crianças eram impuras e, por isto inimigas, que deviam ser afastadas da sociedade. Quem sabe, acreditasse que elas deviam ser punidas, para dar o exemplo e prevenir que outros se tornassem impuros. Quiçá, pensasse que a morte seria um bem para os jovens, apesar de eles não saberem.

O atirador reproduziu, à sua maneira, a defesa social, o direito penal do inimigo, a prevenção geral negativa, a prevenção geral positiva, a prevenção especial negativa e a prevenção especial positiva. Imitou ainda o discurso conservador e vazio sobre religiões, sexualidade e família. Imaginava que era tão bom que tinha o direito, talvez divino, de decidir o futuro daqueles que não se ajustariam ao seu modelo, dispondo dos seus corpor, punindo-os severamente (ainda que para o seu bem). 

No fundo, Wellington não era uma simples aberração; era um espelho. Mais útil que tentar descobrir a "doença" dele é atentar para a nossa.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Livro de Alexandre Morais da Rosa



O Direito seria muito mais direito se todos os juristas tivessem a capacidade, a coragem e a sensibilidade de Alexandre Morais da Rosa, professor, juiz, e homem desprovido da covardia e da preguiça que leva à subserviência cega à jurisprudência e ao sensacionalismo, bem como da arrogância que frequentemente faz com que os "doutores" achem que os paletós, gravatas e insígnias os tornem imunes a críticas. 

Acaba de sair a 2ª Edição do seu Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. Recomendo, mas só para quem estiver disposto a pensar.

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