Translate

sábado, 25 de fevereiro de 2012

30 é pouco. Parte 2.


- Rapaz, estou revoltado!
- O que foi? Tenha calma, tudo se resolve.
- Minha namorada, aquela galinha, me largou. Disse que não tem mais volta!
- Cadela! O que você vai fazer?
- Não sei ainda. Minha vontade é de ir na casa dela, onde está fazendo um trabalho de grupo, manter todos como reféns por várias horas, atrair a atenção do mundo, das televisões, da polícia para, no final, matá-la.
- E por que não faz isto?
- Você é maluco? Eu posso ser preso!
- Sim, mas por pouco tempo.
- Pouco? Tem uns juízes doidos que podiam me sentenciar a 98 ou 99 anos!
- Mas, é um otário!
-O juiz?
- Não, você! Não conhece as leis, animal?
- Que leis?
- A sua prisão não duraria isto tudo.
- Não?
- O máximo que você ficaria preso seriam 30 anos.
- Só 30 anos??? 03 míseras décadas??? Tem certeza???
- Claro, ignorante!
- Hum... então, não é tão ruim, assim...
- Óbvio que não! Quantos anos, você tem?
- 20.
- Quando sair terá apenas 50.
- É mesmo...
- Vai durar só o mesmo tempo que uma vida e meia sua até agora. Passa rapidinho.
- E eu ainda vou sair mais experiente, mais vivido, maduro,conhecendo pessoas novas!
- E o melhor, ganhando casa, comida e roupa lavada de graça!
- Nem a comida, eu preciso pagar?
- Não! Tudo dado de presente pelo Estado!
- Então, é um prêmio!
- Pois é! Mata a vagabunda, rapaz!
- Não quer me ajudar?
-Eu? Não queria me intrometer...
- Faço questão! Você deu uma dica tão boa! Vamos compartilhar os frutos!
-Fariamos uma boa dupla lá dentro, não é?
-Claro! Vão ser as melhores férias de todos os tempos!
-Então, combinado! Mãe, vou tirar férias na Colônia Penal! Volto rapidinho!

30 é pouco. Parte 1.

Vamos supor que uma pessoa tenha entrado na prisão, em 24 de fevereiro de 1982 e saído em 23 de fevereiro de 2012.

Será que ela gostava de política?

Quando foi presa, era governada por Figueiredo. Não viu as Diretas já. Não viu a morte de Tancredo, não viu o governo Sarney e o Plano Cruzado. Nem sabe quem é Collor. Nunca poderá imaginar que aquele operário barbudo viraria presidente. Aliás, provavelmente, nunca votou para presidente. Será que ouviu falar em Dilma, aquela "guerrilheira terrorista e assaltante de bancos"? Certamente conhecia o ACM nato, mas não o filho e nem o neto, que era um lindo bebê.



E se ela gostasse das notícias internacionais?

 Foi encarcerada durante a guerra fria. Pode imaginar que a União Soviética acabou? Que um negro viraria presidente dos Estados Unidos? Aliás, ainda deve pensar que Saddam Hussein e Bin Laden são grandes aliados norte-americanos. Guerra do Golfo? China capitalista? A Rússia também! Dois Bushs presidentes? Inglaterra e Argentina estavam prestes a se engalfinhar pelas Malvinas


Mas, talvez, seu gosto fosse por futebol. 

Nesse caso, o grande craque do país era Zico. A democracia corinthiana ainda estava começando. O Bahia só tinha um título nacional. Bobô jogava o Intermunicipal por Senhor do Bonfim. Falando nisto, a torcida do Grêmio ainda não chamava o Inter de Municipal, pois não imaginava que ganharia o mundial de 1983. Rivelino ainda jogava. Romário, Dunga, Bebeto, Taffarel eram juvenis. Kaká nem tinha nascido. Neymar? Messi? Maradona era só uma promessa. O Vitória da Bahia não tinha sido campeão da Copa da Uva, nem vice da séria A, nem vice da série B, nem vice da série C e nem vice da Copa do Brasil. Bem, nem mesmo existia Copa do Brasil.



Seria tecnologia?

Nem todas as casas tinham telefones. Telefones fixos, fique claro, porque celular era coisa de ficção científica. Nem todas as casas tinham televisões e muitas delas, não eram coloridas. Controle remoto? Hein? O ano 2000 seria aquele em que todos colonizariamos a lua. Alguém tinha computadores em casa? Alguém usava Internet? Inter o quê? Nenhuma criança jogava Fifa ou Wining Eleven. Algumas já tinham Ataris, mas a maioria usava futebol de botão mesmo.



E se gostasse de festas, cultura, arte?

Em 1982, Michael Jackson, vivo, negro,que nunca tinha sido acusado de pedofilia, lançava um novo disco de vinil (sim, os discos eram de vinil), que tocava em todas as vitrolas: Thriller. Nos cinemas, Indiana Jones e a Arca Perdida concorria ao Oscar. Carruagens de Fogo também! Naquele ano, entrava em cartaz o inovador filme ET, o extraterrestre. Donizetti estourava nas Rádios com Galoupeira eo jovem Evandro Mesquita com sua Blitz cantava "Você não soube me amar". Sem contar que Gretchen deixava todos boquiabertos com Piripiri e Sérgio Malandro com "Vem fazer Glugluglu". Raul Seixas, Tom Jobim, Vinícius de Morais e Luiz Gonzaga faziam shows.O Chiclete com Banana gravava o seu primeiro LP  há rumores de que Bel tinha cabelo.



Pensando nesta pessoa que ficou apenas 30 anos presa e nas pequenas mudanças que ocorreram no planeta, podemos chegar a várias conclusões. Porém, a mais impressionante é esta: "30 anos não são nada! Mal dá pra sentir passar! É uma pena muito curta! Temos que deixar de ser o país da impunidade! É hora de aumentar". Mas, parece que eles conseguiram isto: http://www.conjur.com.br/2012-fev-24/advocacia-judiciario-mp-pedem-aumento-penas-codigo-penal?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Banheiro de Laerte


Todo mundo conhece a sensação. A bexiga parece querer derramar e esquenta. O corpo sente calafrios. É fácil resolver, basta caminhar alguns passos, abrir uma ou duas portas e pronto. O som e o alívio lembram a liberdade. É uma das coisas mais simples e prazerosas da vida. Não há nada envolvido, além da natureza. Não precisamos pensar, filosofar, nem nada. Somente agir.

Após algumas pizzas e cervejas com os amigos, a bexiga alertava. Levantou-se. Em 07 passos, viu que precisava decifar um enigma. A esfinge imaginária perguntava: a porta com a pessoa de cartola ou a porta com a pessoa de vestido? Como usava um vestido, sentia-se uma pessoa de vestido e queria estar entre as pessoas de vestido, fez sua escolha.

Entrou, abriu mais uma porta, onde estava o vaso, e trancou-se lá dentro, para resguardar a privacidade. Ninguém podia ver o que se passava na sua intimidade ou no seu íntimo. Aliás, nada demais se passava, a não ser aquela deliciosa sensação de alívio, que acompanha o som dos líquidos se encontrando. Dada a descarga, tudo estava limpo. Dirigiu-se à pia exclusiva das pessoas de vestido. Lavou caprichosamente as mãos, com cuidado para não perder os aneis. Verificou a maquiagem, retocou o batom e voltou à mesa.

Ainda tinha fome, mas não conseguia se decidir. Naquele restaurante, as pizzas médias podiam ter dois sabores. As grandes, podiam ter até três. Assim, o alimento podia ser ao mesmo tempo frango com catupiry e portuguesa, toscana, camarão e palmito, à moda da casa, especial e presunto. A riqueza de opções permitia que cada um da mesa aproveitasse melhor aquilo que mais tinha vontade, sem obrigar ninguém a devorar o que não gosta, só porque a maioria prefere. Escolheu uma fatia mista e apontava os talheres para ela, quando o gerente, educadamente, interrompeu a desgustação.

- Senhor, houve uma reclamação da sua conduta.
- Minha conduta, mas o eu que fiz?
- O senhor usou o banheiro feminino.
- E que mal tem isto?
- Uma freguesa se sentiu ofendida.
- Por que eu usei o banheiro?
- Sim. A filha dela estava lá.
- Mas, a filha dela não viu nada, senhor. Garanto que tranquei a porta.
- Ainda assim, viu um homem saindo do banheiro feminino.
- Novamente, que mal há nisto?
- Senhor, somente peço que da próxima vez, use o banheiro masculino.
- E o que os homens acharão disto?
- Perdão?
- O que eles pensarão ao me ver de vestido, batom, cabelos longos, depilada, em pé no mictório ao lado deles?
- Não sei senhora, mas terão que aceitar, afinal de contas, a senhora é homem.
- Obrigado.
- Por que?
- Pela primeira vez, me chamou de senhora. Parece óbvio que prefiro assim.
- Eu é que agradeço a compreensão e estou certo de que não voltará a usar o banheiro errado.
- Um minuto!
- Pois não, senhor?
- Foi bom enquanto durou, mas não importa. E eu?
- Perdão?
- E eu? O que eu sentiria em um banheiro cheio de homens visivelmente constrangidos, afastando-se, cochichando, talvez falando alto, talvez me xingando, talvez me batendo?
-Oi?
- Além disto, quem falou que sou homem?
- Com todo respeito, mas...
- O simples fato de eu ter um pênis define o que sou? Não há nada mais importante que isto?
- Senhor, não peço nada demais... falo apenas do banheiro. Não precisa tratar como luta política.
- Sim. Fala sobre o meu ato de defecar ou urinar. Realmente, não quero tratar como luta política. Só quero ter o direito de fazer xixi, onde me sentir mais confortável. Não sou eu quem está impondo a política. É você!
- Eu?
- Claro! Da minha parte, levantei, fiz xixi e voltei. Não fiz nada para chamar a atenção de ninguém. Até para isto, tenho que me enquadrar em um padrão estereotipado?
- Senhor, com todo respeito, mas só estamos tendo esta coversa, em razão do reconhecimento ao seu trabalho de várias décadas. Se fosse outra pessoa...
- Eu seria expulsa à tapas e pontapés.
- Não foi isto...
- Está bem, está bem. Vamos colocar as coisas em outros termos. Onde eu me sentiria confortável, uma mulher acredita que a minha urina destruiria a moral e a educação do filho dela. Onde você e ela gostariam que eu me sentisse confortável, eu me sentiria mal, além de correr risco de ser agredido. Você vê a diferença? De um lado, uma pessoa que quer apenas exercer a própria liberdade de orientação sexual, de escolha das roupas e de auto-identidade, preservando a própria dignidade, a própria integridade física e sem interferir em nada na vida dos outros. Do outro, um falso moralismo irracional. Eu quero apenas ser eu, não quero nada dela. Ela não se conforma em ser ela, quer também me impedir de ser quem eu quero, ou, pelo menos, que eu seja quem eu quero na frente dela. De que lado você vai ficar?
- Senhor, só tem uma solução.
- Eu sei. É tão lógico, não é?
- É melhor o senhor usar o banheiro da sua residência, senhor. 
 
- Por que não nasci pizza?




segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Passeio Noturno (Por Gabriel Divan)

Antes de mais nada, relato que sou uma pessoa assustada. Tenho medo de andar na rua, à noite, em Salvador. Fico olhando para os lados, provavelmente como você faz. Porém, me questiono sempre se esse medo é racional.

Recentemente, policiais militares baianos entraram em greve. Logo, surgiram boatos e mais boatos de que o mundo tinha virado um caos. Como resumiu um amigo meu, todo furto virou arrastão e todo roubo virou saque. Na cidade de Jequié, após 2 dias, nenhuma alteração de rotina. No terceiro, após as 12:00hs, todas as lojas fecharam. No dia seguinte, fui comprar um dominó e perguntei na loja qual a razão de fecharem as portas.

"Olhe, eu não sei porque foi, mas todo mundo começou a fechar, aí a gente não ia ficar sozinho, né?"

De posse dessa resposta, vale refletir sobre o texto de Gabriel Divan, genial gremista, andarilho, jurista e ciclista, cujo original está no seu blog (conheça  aqui)


Aproveitei a fraca lâmpada de um dos poucos quiosques desertos  iluminados do meu trajeto para mostrar a vocês que além dela eu enxergava aquilo ali mesmo que vocês estão vendo: nada. Absolutamente nada. Solitária companhia de meus pensamentos. 
Em meados do ano passado, decidi realizar um vídeo ilustrativo (juntamente com um texto) para mostrar para todos aqueles que me tachavam de ‘louco‘ por realizar um certo trajeto noturno à pé. O trajeto em questão foi e segue sendo minha rotina semanal: é o caminho entre meu apartamento de Passo Fundo (onde leciono) e a Rodoviária local, onde semanalmente (geralmente às sextas-feiras) pego o ônibus das duas da madrugada para Porto Alegre, onde ‘moro’ (morar – verbo/conceito indefinido na minha vida atual, mas vá lá).
Para mostrar não apenas que não havia todo esse alardeado ‘perigo‘ no trajeto (alarme desesperado que escuto desde que comecei a percorrer a rota – os últimos 4 anos) e, mais, para filosofar sobre o real (não) uso das cidades pelos sujeitos que nelas habitam, encorajando (ou tentando) pessoas a viver, sentir, cheirar e ‘tocar’ as ruas onde vivem compartilhei com todos minha caminhadinha tradicional na calada da noite – eis o texto e a filmagem, para quem quiser ver ou recordar:clique aqui.
Resolvi repetir a dose, com os mesmos propósitos, focalizando um problema semelhante que visualizo na orla gaúcha: tal e qual Porto Alegre – ao contrário de, creio, todas as cidades do planeta banhadas por quantidade igual de vias fluviais, ascidades praianas do Rio Grande do Sul, de um modo incompreensível, voltam as costas para a água no caso, o Oceano Atlântico. Bares, boates, comércio e infraestrutura esportiva estão ausentes da praia e arredores e se posicionam tradicionalmente em cantos extremados cada vez mais próximos das estradas de acesso.

A Plataforma de Atlântida vista do trajeto. Ou não-vista. Enfim.
E mais: proliferam-se condomínios fechados por toda faixa litorânea sulista, que simulam uma cidade de sonho suburbano de sitcom com a privatização total de elementos como a limpeza e a ‘segurança‘. Longe de querer ‘culpar‘ os proprietários de casas nesses condomínios fechados pelos males do mundo, gostaria apenas de ressaltar que com as cidades praianas abandonadas ao deus-dará, muito em virtude da ausência de pressão por melhorias de quem agora vive num little paraíso estadunidense em compota, a coisa tende apenas a piorar.
Decidi alterar a rota e o horário das minhas caminhadas diárias quando estou na praia para o período noturno (depois das 21:45) e me concentrei, por amostragem, em um dos trechos de maior população no período do verão: o eixo entre Atlântida e Capão da Canoa.

Levei minha lanterninha de dínamo de estimação para auxiliar. Búú.
Por alguns dias fiz o trajeto à pé, descalço, em uma média de 1 hora e alguns minutos entre ida e volta.
O que pude notar é que em total oposição à lógica e a algumas experiências positivas em balneários do resto do país (e mesmo de capitais como o Rio de Janeiro ou em cidades praianas do Nordeste) há um círculo vicioso em que estão envolvidos o Poder Público, o povo e o imaginário (em parte fantasioso) desse último no que diz respeito à violência-segurança-condições gerais para o aproveitamento noturno de lugares (praias, inclusive) pelas pessoas.
Primeiramente, não quero passar perto do equívoco simplista de propor que o mero ‘uso‘ dos espaços públicos pela população faria desaparecerem num passe de mágica problemas como a eventual criminalidade no local e/ou a sujeira. Mas é fato que o completo dar de ombros dos Governos quanto a certas áreas das cidades muito é (retro)alimentado pela própria falta de vontade das pessoas em ocuparem aqueles espaços. Um doce para quem adivinhar o que passa a ocorrer com o logradouro a partir disso…
Assim como há locais em que as pessoas vão apenas pelo fato de que outras pessoas vão (parques e bares de modas sazonais, por exemplo), existem os lugares onde ninguém vai…porque ninguém vai.
Certamente a primeira reação de muita gente quando soube que eu passei dias caminhando sozinho na noite escura na beira da praia foi questionar o quanto eu não sou corajoso/burro e o verdadeiro “milagre” de eu não ter sido assaltado/estuprado/morto/estripado/enterrado-vivo e congêneres.

Pelas tantas, cruzou por mim - por esquisitíssimas três vezes - uma Kombi sinistra. Decidi fotografá-la para fins de registro estilo Bruxa de Blair caso meu celular fosse encontrado dias depois enterrado na areia sem impressões digitais além das minhas.
Eu responderia a esses com as fotos que ilustram esse post.
Uma solidão melancólia e pesada, triste e opaca, um breu impenetrável. Isso foi tudo que eu vi. Nem jovens em festa, nem tentativas de violência sexual, nempessoas jogando vôlei próximas a bares de praia com música, nem mascaradossaindo da penumbra.
Simplesmente nada.
Nas vielas beira-mar, as casas convenientemente fechadas, lacradas, blindadas. Os quiosques todos abandonados e desoladamente cadeados. As casinhas de salva-vidas (vejam só) todas vazias. E o silêncio. De bonito, embora uma beleza frágil e lacrimosa, o barulho quase invisível das ondas quase invisíveis em meio à escuridão.
Acredito que políticas públicas que estimulem, valorizem e ajudem a colocar no topo a idéia de uso (literalmente, uso) de alguns espaços públicos tidos por ‘críticos‘ seria um bom começo de um outro projeto muito maior, que através da prioridade a uma espécie de ‘auto-estima’ das cidades enquanto cidades, começaria a enfim virar o jogo contra tanta podridão (lato senso) que vemos cotidianamente.
Não estou creditando a mim e a todos nós uma obrigação irrestrita de mea-culpa por problemas dos quais, ao contrário, somos em grande parte, vítimas.
Mas ‘se sentir preso’ e jamais se desarmar de grades (reais e metafóricas) em meio ao seu contato com o ambiente que o circunda (e consequentemente, com os outros) não ajuda em nada. Nada mesmo. E se a gente passasse a resmungar menos da violência que nos ‘impede’ de fazer certas coisas e simplesmente fizesse para ver que alguns ‘impedimentos’ existem (quando existem) em um grau muito menor do que aquele do bicho papão que nos vem pintado.

O antigo e tristonho Farol do Capão no caminho de volta.
Sonho com o dia em que, em uma praia iluminada pelo luar e tranqüila, pessoas vão poder caminhar, fazer rodinha de violão, tomar um drink e namorar em paz. Isso tem mais a ver com o ato simples de você começar a parar de ter medo de andar na rua do que se pode pensar à primeira vista.
Vá para a rua. Nem sempre dói.
PS: para não dizer que não senti medo em nenhum momento, em um dos dias pela altura do Posto de n. 80 eu escutei uma melodia um tanto tenebrosa assoviada misteriosamente por ninguém. Olhei em 360 graus, para todas as direções, para o céu e para o mar e não enxerguei viv’alma. Confesso que foi um quê de tensão. Por favor se imaginem no meu lugar antes de rir. Mistério…
PS 2: leitura recomendada – “Confiança e Medo na cidade” – Zygmunt Bauman



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Sovina

Crônicas de um Juiz sem juízo: Marcelo Semer, o sovina. Original aqui.


As piores dificuldades são aquelas que nem sequer conhecemos







Sovina




Pretos, pobres e prostitutas.

Costuma-se dizer que os três Ps são os clientes preferenciais da justiça penal no Brasil.

Confesso que passei uma tarde assistindo a audiências no Criminal Courts Building em Nova York e a situação não me pareceu muito diferente por lá. Só vi negros e latinos sentados no banco dos réus.

Não vai aí nenhuma desonestidade atávica de classe ou racial. Tudo isso tem muito mais a ver com as prioridades da lei e a ordem que se escolhe defender, como a gente aprende um pouco na escola, e outro tanto no dia-a-dia. 

A propriedade é sem dúvida alguma a pedra de toque da tutela penal, e é mais protegida do que a liberdade, a saúde e, em muitos casos, do que a própria vida. E da fiscalização da polícia, difícil dizer que se distribua igualmente pela população. 

A forma como cada um encara e lida com essa pouca neutralidade do sistema muitas vezes define o padrão de comportamento de um juiz criminal, mais rigoroso ou, como a gente costuma dizer, mais liberal. As interpretações da lei dificilmente são separadas do juízo que fazemos dela ou do prestígio que conferimos aos princípios humanitários. 

Mas o certo é que todos nós nos acostumamos, uns mais outros menos, a lidar com um público preponderantemente carente e isso tem lá suas consequências.

Poucos dos nossos acusados chegaram a completar o ensino fundamental. Falam mal e compreendem menos ainda. Sem paciência, a comunicação é sempre deficitária. Quando pergunto a um réu se ele entendeu o que eu disse, nove entre dez respondem “entendeu”, sem que isso signifique muito mais do que um erro de concordância. 

Presos são sempre trazidos aos fóruns com o uniforme da penitenciária e os indefectíveis chinelos de dedo. Mas, se soltos, não lhe são permitidos chegar às audiências de forma tão precária. Existe toda uma patrulha do pudor que impede o ingresso nos fóruns de chinelos, bermudas e outros adereços assim casuais, reputados como ‘desrespeitosos’. 

Eu me lembro de um réu que passou a audiência toda com a mão no peito, o que me afligia enormemente. Ao final, indaguei a ele se estava com algum incômodo e se não era o caso, então, de fazer uma consulta no serviço médico. Ele me disse que estava se sentindo muito bem e respondeu coberto de vergonha:

-Minha camisa falta dois botões, doutor, sua secretária disse que não podia entrar com ela aberta.

Um mecânico, vindo direto do trabalho, recusou-se terminantemente a sentar na cadeira da sala de audiências, porque estava sujo de graxa e tinha medo de ser responsabilizado por estragá-la. Só concordou depois que a cobrimos de papel, e assim mesmo um tanto quanto ressabiado.

Mas as piores dificuldades são aquelas que nem sequer conhecemos. 

A mais cruel é supor que o réu pode se ausentar de uma audiência, que muitas vezes provoca até sua prisão, por falta de dinheiro para o transporte ao Fórum. Quem vai nos dizer isso?

Fui apresentado ao problema por Orlando. 

Um réu acabrunhado que negava o furto que lhe era imputado com uma dificuldade enorme de comunicação. Narrava como fora “abortado” pela polícia, levado à delegacia só porque tinha “passagens” e clamava de forma meio tosca pela inocência, implorando, enfim, para não ser condenado. 

Após o encerramento da audiência, ele já estava na porta da sala, quando resolveu retornar. Olhou para nós por alguns momentos sem nada dizer, como se avaliasse a conveniência de sua pretensão, mas acabou soltando, sem jeito, seu pedido em forma de cobrança:

-E o dinheiro que me prometeram?

Eu não conseguia entender a que exatamente ele se referia, já que estava ali para responder a um processo, não para exigir qualquer crédito. Na situação em que veio, o máximo que podia querer era mesmo sair de mãos abanando, sem algemas.

Diante da incompreensão, demonstrada pela persistência do nosso silêncio, ele não teve outra alternativa, senão se explicar:

-O moço que me chamou para essa audiência. Eu disse a ele que estava sem dinheiro pra vir. Ele me deu a passagem de ida e falou que eu ia receber aqui a passagem de volta.

Foi só nesse momento que eu soube da prática discreta do solidário oficial de justiça, que era quem primeiro tinha contato com réus e testemunhas. Intimando-os em seu próprio habitat, ele devia ter condições de saber que aquilo não era apenas uma desculpa. Só achei estranho que não nos tivesse preparado para essa inusitada situação.

Eu perguntei ao réu quanto precisava para a condução, tirei uma nota de cinco reais e lhe entreguei. Ele ficou meio sem jeito de recebê-la diretamente de mim, mas agradeceu e se foi, para esperar em casa a sentença que viria em duas semanas.

O assunto foi o comentário do dia entre os funcionários, que se dividiram em um misto de respeito e pilhéria pelo oficial e mais ainda por mim.

Só no dia seguinte, o auxiliar judiciário, que tem mesa na porta da sala de audiências, percebeu que no fundo de sua gaveta havia um pequeno envelope com o nome do réu. Ele veio me trazer correndo e contou, displicentemente, que talvez tenha sido o oficial quem deixara, mas não lembrava muito bem.

Quando abri o envelope, estava lá uma nota de dez reais para ser entregue ao réu.

Fiquei com fama de sovina.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

T.G.I. (Teoria Geral das Ilegalidades)



O Policial pode dar uns cascudos no suposto ladrão. Faz bem, pois, vagabundo tem que morrer. Direitos humanos, para humanos direitos. É legítimo.

Quando são feitas as prisões em flagrantes, eles podem, escancaradamente, fazer um só depoimento e colocar outros dois colegas, para assinar como testemunhas perfeitas. Podem também combinar os depoimentos nas audiências. Fingimos que não percebemos a fraude. Isto facilita a condenação, portanto, também é legítimo.

Capitão Nascimento humilha os colegas, mata e tortura os outros, sem piedade. "Traz o saco!" Pega a vassoura". É um herói. O que faz é legítimo. Se todos fossem como o Bope, não haveria crime.

Desocupações com bombas de gás e balas de borracha também podem ser feitas. São extremamente  legítimas.

Muitas atitudes violentas e ilegais dos policiais militares, quando atingem pobres e defendem patrimônios, são ,todos os dias, legitimadas, apoiadas e idolatradas por jornalistas, donas de casa, promotores, vendedores, engenheiros e juízes. Tudo é legítimo.

Um dia, provavelmente, após ver Tropa de Elite e receber os vergonhosos contra-cheques, os PMs pensam:

"Espera um pouco. .. eu salvo o patrimônio de todo mundo, mas recebo uma porcaria em troca... Eu salvo o dinheiro dos outros, mas ninguém nem se importa com o meu... Quer saber, vou me revoltar".

PM fazer greve é ilegal, mas eu sempre cometo ilegalidades e elas são legítimas.

Fechar ruas é ilegal, mas ensinaram que as minhas ilegalidades são legítimas.

Espalhar ondas de pânico é ilegal, mas aprendi que, desde que os fins pareçam justificar os meios, minhas ilegalidades são legítimas."

Aí, o governador, que cria o absurdo baralho do crime, que lançou o sugestivo slogan "Cadeia ou caixão" e que apoiou a greve da polícia de 2001, quando era oposição, diz que os policiais são bandidos, que a greve é ilegal e que não negocia.

Aí, a sociedade que pede mais Capitães Nascimentos executando e torturando os traficantes, brada contra os policiais que não cumprem seu papel de defender a lei e a ordem.

Aí, jornalistas que vivem de espalhar o terror, vivem de criar ondas de pânico, que vivem de lançar boatos e defender que o mundo é muito inseguro, além de aproveitar para espalhar mais boatos assustadores, malham sem dó os policiais marginais.

Como esse mundo é complicado! Sugiro que nos próximos cursos de formação dos policiais, seja ministrado um novo curso. Afinal de contas, o problema é a formação incompleta e o baixo nível instrutório dos soldados. Um ciclo de matérias obrigatórias, poderia acabar com este problema:

Teoria Geral das Ilegalidades. (para definir o que é descumprir a lei)
Ilegalidades permitidas pelos hipócritas I. (para ensinar que muitas vezes, é permitido descumprir a lei)
Ilegalidades permitidas pelos hipócritas II.(são muitas vezes mesmo, não cabe só em um semestre)
Ileglidades proibidas pelos hipócritas. ( para que os batalhões cometam ilegalidades, mas saibam se por no seu lugar)
Temas complexos da ilegalidade. ( Talvez, pudesse ser uma pós...)

Quem sabe assim, não vamos ter exatamente a polícia que parecemos querer?


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

CNJ e o Pinheirinho ( Jean Davi e Eliana Calmon)


Durante a faculdade, em uma aula sobre contrato de locação, a turma, formada majoritariamente por pessoas brancas, de classe média, com vinte e poucos anos, como eu, estava visivelmente insatisfeita. Cada vez que o professor falava sobre alguma norma que dificultasse o despejo do locatário inadimplente, o volume das reclamações aumentava. Aparentemente, apenas uma pessoa não estava de acordo com as críticas: Jean Davi, negro, com mais de 35 anos, funcionário público, casado e que criava, salvo engano, 3 enteados. Em dado momento, surpreso com as reações da turma, ele deixou escapar o seu pensamento alienígena: " Parece que nunca alguém aqui alugou casa! Todo mundo só vê as coisas pela ótica do proprietário!"

Mas, são tempos de CNJ e de Pinheirinho. Eliana Calmon se tornou heroína nacional, por fazer uma grande campanha contra os "bandidos de toga". A sociedade aplaude e pede punições aos juízes corruptos, cheios de regalias, que parecem estar em todas as esquinas, ou em todos os cartórios. As manifestações de apoio à corregedora estão em todo o lugar. Não importa se o que ela faz é legal ou não, o que importa é punir rigorosamente os culpados, afinal, quem não deve não teme. Muitos, provavelmente a maioria, dos ativistas dos Direitos Humanos estão com ela (o que, aliás, demandava um texto exclusivo, sobre as repercussões trágicas desta lógica sobre as minorias ).

Os juízes, por sua vez, reclamam que estão sendo perseguidos e que não se respeita a sua presunção de inocência e as garantias que todos os cidadãos possuem, inclusive eles. Dizem que todas as suas prerrogativas são absolutamente necessárias, pela natureza do seu cargo, que impõe inúmeras restrições que o cidadão comum não possui. Falam que têm uma carga de trabalho desumana e que trocariam tudo, pelo respeito à carga horária de 08 horas diárias, com direito a hora extra, que todo mundo tem. Concluem que ninguém mais quer ser juiz e todo mundo prefere exercer outros outros cargos. Pensam até que ganham pouco.

É claro que existem juízes corruptos, assim como existem corruptos em todas as categorias, inclusive a dos escritores e leitores de blog. É óbvio também que os juízes não ganham pouco ( porém não ganham mais do que merecem), não tem um trabalho mais pesado do que a maioria e que não falta gente querendo ser magistrado. Aliás, basta acompanhar a movimentação de pessoas nas carreiras jurídicas, para perceber que  muita gente deixa de ser advogado da união, defensor, promotor, procurador de qualquer coisa para ser juiz, mas é raríssimo  acontecer o contrário. Todavia, a verdade é que não é a corrupção e nem são os 60 dias de férias (que não só os juízes mas, defensores, como eu, e promotores têm) o problema fundamental, do judiciário.

Podemos ter uma ideia da mazela real, quando um juiz vai a uma rádio, para falar sobre as prisões provisórias e afirma que sabe que as teses defensivas são irrefutáveis tecnicamente. Apesar disto, ele prefere não utilizar os critérios legais e sim os dele, particulares, que "são, aliás, muito mais justos". Os mesmos magistrados que se revoltam com o CNJ violando as garantias processuais deles, não se importam de violar as garantias processuais dos seus jurisdicionados. Para punir os pobres, tudo é válido, pois precisamos resguardar a segurança pública. O que importa é punir os culpados e quem não deve não teme (lembrou dos apoiadores de Calmon?).

O problema do judiciário pode ser visto no Pinherinho. No conflito entre o direito de propriedade de uma massa falida e  milhares de pessoas, que ocuparam um terreno, há 08 anos, decide-se pela expulsão de toda aquela população, incluindo mulheres, idosos e crianças, com milhares de policiais, bombas e balas de borrachas, de surpresa, às 06:00hs de um domingo. E, não vamos esquecer, sem qualquer preocupação sobre o destino daquelas pessoas.  Aliás, a julgadora que determinou a desocupação disse que se surpreendeu positivamente com a atuação da polícia. Em outras palavras, se você achou que foi triste e bárbaro, saiba que quando decidiu, ela não só esperava aquilo, como esperava algo muito pior.

Quando começaram os protestos, todos os juízes que eu vi (falo apenas dos que eu vi) se manifestarerm sobre o caso, exceto os filiados à AJD (Associação dos Juízes pela Democracia), posicionaram-se a favor da ação. Atacaram quem se manifestava em sentido contrário, classificando-os de politiqueiros, filiados ao PT (como se fosse errado se filiar a algum partido), comunistas (voltando à década de 1950), "democratas" (sem comentários), sociólogos (porque só sociólogo se preocupa com o social) e poetas (bem, aqui o alvo era um só, o homem que mostrou que Belchior estava certo e as palavras são navalhas, leia aqui.). Já os ocupantes, eram invasores, folgados, criminosos, arruaceiros, traficantes. Transcrevo os adjetivos ou apelidos, porque a escolha das palavras diz muito sobre a mentalidade.

O problema do judiciário é aquele percebido por Jean. "Todo mundo só vê as coisas pela ótica do proprietário!" Assim, os pobres vão sendo punidos, através dos processos penais e dos processos civis, porque a propriedade, de fato um direito, torna-se um direito absoluto e urgente. Vale mais do que a moradia, a dignidade da pessoa humana e a vida de quem não a tem. Decisões são prolatadas, pela violência, argumentando que o particular proprietário não pode pagar pelo descaso do poder público. Mas, os particulares não proprietários podem e devem arcar com todo o descaso, diariamente e eternamente. Calados, sem ter onde dormir e comportados, sem se drogar.

O CNJ fala em resolver o problema carcerário com mutirões que só enfrentam questões infra-constitucionais e todos aplaudem. Falam em punições rigorosas para os magistrados, como soluções e todos aplaudem mais ainda. Enquanto isto, o judiciário e o CNJ continua utilizando suas togas, para se diferenciar do cidadão comum. Os juízes, inclusive do CNJ, continuam achando que não podem frequentar qualquer lugar, para não serem confundidos com o povo e, assim, desmoralizados. Os fóruns e o CNJ continuam exigindo o uso de calça, sapato e, às vezes, até paletós, para deixar bem claro que ali é lugar de gente arrumada. A linguagem continua sendo inacessível. E o mais importante, os tribunais continuam analisando todos os conflitos pela ótica elitista. 

Sentenças criminais, aplicam penas mais graves porque, no furto, o réu visava o "lucro fácil". Prisões são decretadas porque "o réu não comprovou ter residência fixa". Sentenças cíveis parecem acreditar que alguém opta por morar em uma invasão, buscando o mesmo "lucro fácil" e não porque não conseguem outra "residência fixa". Assim, todos acreditam que são doutores, contribuindo para o nosso belo quadro social. 

Os juízes tendem a estar próximos da elite e longe do povo. Isto o CNJ nem mesmo enxerga como algo a combater. E ainda tem quem acredite que o STF decidir favoravelmente ao poder investigativo originário do CNJ vai melhorar muito a vida da população. Ainda tem quem pense que cobrar produtividade e não qualidade, além de respeito às sumulas e a jurisprudência dos tribunais, em vez de reflexões profundas e complexas, para problemas complexos vai favorecer o povo.  Espero que um dia ainda enfrentemos as questões verdadeiras. Ah... como eu gostaria de ver Jean Davi comandando esse processo...