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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Mesas de Abertura


Em grande parte dos congressos, seminários e eventos de qualquer natureza, em que existem autoridades públicas, existe um momento muito interessante (interessante no sentido de que oferece dados para reflexão, explique-se) chamado "Mesa de abertura". Ela tem várias funções, como se depreende da análise do seu ritual.

Parte 1.  Entrada do Porretão.

Tudo começa antes mesmo de qualquer um sentar à mesa, com o locutor oficial: "Senhores e Senhoras presentes, anuncio a chegado do Exmo. Sr. Ocupante do cargo tal". Todos então se levantam para aplaudir a entrada daquela que é considerada a maior autoridade presente (o Presidente, o Governador, etc.), seguidos por um extenso grupo de puxa-sacos sorridentes e orgulhosos. Temos a primeira função: dizer quem manda mais e quem é mais chegado nele.

Tempo: Dura uns 02 minutos, mas"o cara" sabe previamente que só precisa chegar, no mínimo, 30 minutos depois que o horário informado aos outros, para garantir que todos o admirem. Assim, são, no mínimo, 32 minutos.

Parte 2. Subida dos porretinhas.

É a composição da mesa. As demais autoridades são chamadas uma a uma. Quem é considerado mais importante é chamado antes e fica mais perto do primeiro homenageado. A exceção é dada pelo anfitrião, que mesmo quando sofre de complexo de inferioridade fica ali do ladinho do Bam-bam-bam, feliz e contente. A segunda função, portanto, é hierarquizar os demais participantes.

Tempo: Em média, leva uns 05 minutos, embora varie de acordo com o tamanho da mesa.

Parte 3. Cota de não porretas.

Uma pessoa estimada e simbólica para o público alvo (ou objeto) do evento é convidada para compor a mesa. Às vezes até fala. Sempre senta no cantinho. Quando sobe, é aplaudida pelos outros componentes da mesa, de forma caridosa. A função é disfarçar o caráter ritualístico do evento e passar a impressão de que porretões e porretinhas consideram os mortais como centrais, apesar de a sua localização mostrar o contrário.

Tempo: 30 segundos.

Parte 4. Menção aos semi-porretas.

  Fala-se para todos os presentes que algumas autoridades se encontram no recinto, embora não sejam tão importantes quanto os porretões e porretinhas, para ganhar um lugar no alto. São citadas nominalmente, assim como o cargo que exercem. Serve para amaciar o ego daqueles que estão ofendidos por não compor a mesa, bem como para mostrar ao público que várias autoridades se interessam por ele.

Tempo: 02 minutos.

Parte 5. Discursos.

Porretinhas e Porretão fazem discursos. A regra é começar saudando a mesa, "na pessoa do Porretão/anfitrião" ou citar nominalmente, com um papel na mão para lembrar, o Exmo. Porretão e todos os Exmos. porretinhas. O cotista é citado apenas como o companheiro/amigo do grupo tal (o nome normalmente é esquecido). A seguir são feitos rasgados elogios a todos e ditas palavras vazias, sugerindo que tudo está uma maravilha e o que não está já está se tornando. A função é permitir às autoridades que se louvem reciprocamente.

Tempo: Para uma mesa de 06 porretas, 80 minutos, sendo 40 de saudações, 30 de elogios aos outros e 10 de auto-elogios.

Parte 6. Aviso de Compromisso.

O Porretão informa que devido aos seus milhares de compromissos precisará se retirar e, infelizmente, não poderá acompanhar o resto do evento. A função é preparar a saída honrosa e demonstrar como ele é ocupado e trabalhador.

Tempo: 15 segundos.

Parte 7. Desfaz-se a mesa.

O anfitrião avisa que a mesa foi desfeita. O porretão vai embora, seguido por todos os porretinhas, semi-porretas e bajuladores. É feito um pequeno intervalo, para arrumar a mesa e para as pessoas que dormiram durante as falas modorrentas acordarem. Serve para permitir que as autoridades vão embora de fininho.
Tempo: 30 minutos. Durante 10, as autoridades se cumprimentam e nos outros 20, acontece o intervalo.

Parte 8. O aspecto invisível.
Esta parte não leva tempo nenhum e nem é anunciada. Ninguém vê ou fala nela. Na verdade, não falar é a sua essência. A mesa de abertura não permite questionamentos aos discursos. As autoridades dizem o que querem e não são confrontadas por ninguém. Serve para garantir que os porretas e os porretões saiam do local de forma asséptica, com a áurea de paz, harmonia e eficiência.

Tempo: 0

Tempo Total: 02:29:45

Conclusão.

Condensando os aspectos do ritual, pode-se dizer que suas finalidades são:

1) Classificar as pessoas;
2) Afagar egos;
3) Simular democracia;
4) Permitir que as autoridades falem o que querem;
5) Permitir que as autoridades não ouçam o que não querem;
6) Garantir que os bajuladores cumpram o seu intento de bajular, sem necessitar discutir nada ou aprender nada;
7) Dificultar o aprofundamento das discussões, por tomar tempo com rituais ridículos. 
Sugestões

1) Se for para um evento, durma até mais tarde e perca a mesa de abertura. Seu sono vale mais.
2) Se organizar um evento, suprima a mesa de abertura. Distribua porretão e porretinhas em momentos diferentes, em que haja discursos críticos, e que permitam intervenções do público. O único problema é saber se algum deles terá coragem.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Reino das Cores


Era uma vez um reino muito, muito distante, chamado Reino das Cores. Lá, o povo colorido vivia de forma muito harmônica e solidária. Todos os habitantes, independente do matiz, tinham igualdade de oportunidades e eram tratado da mesma forma pelo Pintor que mandava naquelas bandas e por seus ajudantes. O Reino estava cada vez mais justo e democrático. Pelo menos, era o que dizia a propaganda do Pintor.

Na verdade, as coisas não funcionavam exatamente assim. Havia os habitantes brancos, os habitantes pretos e outros brancos, pretos de tão pobres, como disse um cantor. Os brancos mandavam em tudo e tinham dinheiro. Os pretos, que eram a maioria, eram sempre mandados e não tinham dinheiro. Os brancos queriam ser cada vez mais brancos. Alguns pretos também queriam ter dinheiro igual aos brancos e isto não dava muito certo. Eles eram considerados desordeiros e perigosos.

Para manter a convivência civilizada, o Pintor coloria de forma diferente algumas pessoas. Tornava umas neutras, uma mistura indistinta de todas as cores. Estas julgariam os conflitos, pra dizer quem tem razão. Outras viravam vermelhas e podiam acusar os outros, mas diziam que também eram neutras, pois defendiam indistintamente todas as cores da sociedade. Tinham também os verdes. Embora fossem muito poucos, eles deveriam defender os pretos das acusações sofridas e também os auxiliarem nas suas reclamações. Os brancos não precisavam dos verdes, pois tinham dinheiro suficiente para se defender sozinhos.

O Pintor e seus ajudantes sempre diziam que seus favoritos eram os pretos. Quando chegaram ao poder, houve uma grande esperança de que existiriam cada vez mais verdes, afinal de contas, os pretos, que precisavam deles, eram a maioria. Além disto, quem olhava as cores com mais atenção percebia que os vermelhos e os neutros foram quase todos brancos, antes de ganharem novas cores. Sendo assim, apenas viam os problemas pela ótica dos brancos. Aliás, pensando bem, só de faz de conta a mistura de todas as cores resulta em uma cor neutra. Na verdade, juntando tudo o resultado é sempre o branco. Pode fazer o teste com tinta guache! 

Os verdes também foram brancos, mas perto dos neutros e dos vermelhos pareciam que eram pretos. O Pintor e os seus ajudantes diziam que iam os ajudar, mas sempre queriam estar perto dos neutros e dos vermelhos. Os neutros e os vermelhos também adoravam estar perto do Pintor. Os verdes reclamavam disto, achavam discriminação. Eles também queriam estar perto do pintor, pois só assim, ajudariam mais os pretos. Era o que diziam.

Certo dia, algumas coisas estranhas começaram a acontecer. O Pintor e os seus ajudantes começaram a dizer que os pretos eram desordeiros porque gostavam de usar umas pedrinhas marrons. E que quem usava estas pedrinhas só poderia morrer ou ser preso. Era engraçado porque os brancos e alguns vermelhos, verdes e neutros usavam uma areia branca, de que era feita a pedra marrom, mas não eram tratados assim. Mais incrível era que o pintor, os vermelhos e os neutros diziam que os pretos que vendiam esta areia e a pedra é que eram o maior mal da sociedade.

Alguns pretos pediram ajuda aos verdes, para que contassem como o discurso do pintor, dos vermelhos e dos neutros era injusto. Mas, eles silenciaram. Não queriam discordar do Pintor, porque achavam que assim haveria mais tinta verde.

O Pintor criou um pacto, pactuado apenas por ele, os vermelhos, os neutros e os brancos (penso se bastaria dizer "apenas pelos brancos"...), que pedia a convivência pacífica entre brancos e pretos. Por este pacto, muitos pretos precisavam ser mortos ou presos. As suas casas seriam ocupadas por uns azuis, que diriam quem poderia entrar e sair e até mesmo a hora de dormir. 

Ora! Esqueci de falar dos azuis...Os azuis costumavam ter sido pretos e, apesar de muito maltratados pelo pintor, eram treinados para cumprir ordens e perseguir os próprios pretos. Eram desprezados pelos brancos, pelos neutros e pelos vermelhos. Sua palavra só tinha mais valor que a dos pretos. Se muita gente reclamasse contra algo que fizeram, a culpa era sempre deles, que voltavam a ser vistos como pretos, mas nunca de quem deu a ordem para que fizessem.

Voltando ao pacto, se aquilo (morrer e ser presos) cabia aos pretos, aos brancos cabia apenas aplaudir. Alguns pretos pediram aos verdes que fizessem alguma coisa, que dissessem que os pretos não concordavam com aquilo, que dissessem que os pretos estavam sofrendo. Mas, os verdes não disseram nada. Pelo contrário, entravam mudos e saiam calados das reuniões sobre o pacto, de modo que o pintor podia dizer que concordaram com tudo. Não queriam discordar do pintor, porque achavam que assim haveria mais tinta verde.

E as coisas seguiam assim. Até um um jogo de cartas que apresentava pretos, e só pretos, como monstros, o Pintor criou. E os verdes nunca falavam nada. Dizem que os verdes que tentavam falar ou fazer alguma coisa ficavam mal vistos. Sejamos justos, entre os vermelhos e os neutros também havia uns gatos pingados desses, igualmente mal vistos. Um dia, chegou a hora de o Pintor escolher quanto mais de cada tinta haveria no reino. Com muita pompa,ele anunciou:

- Nobilíssimos Soberaníssimos Justíssimos senhores Neutros, que já têm 20 baldes de tinta, passarão a ter ...       30!
(Vivas!!! Meu bom pintor!!!)
- Nobilíssimos Soberaníssimos Justíssimos senhores Vermelhos, que já têm 15 baldes de tinta, passarão a ter...      25!
(Vivas!!! Meu bom pintor!!!)

E chegava a hora mais esperada. Ele diria, no fim, quanto de tinta os verdes ganhariam (os verdes sempre vinham no fim). Eles estavam muito confiantes na bondade e generosidade do pintor, que saberia retribuir a sua docilidade e o seu silêncio:

- Senhores verdes (os verdes não eram tratados por Nobilíssimos Soberaníssimos Justíssimos senhores Neutros), tão bonzinhos(os verdes, principalmente se dóceis, são sempre chamados de bonzinhos), que já têm 1 balde de tinta, passarão a ter...                                o mesmo balde!!!

(Vivas!!! Meu bom... o quê? como?)
- Mas, Pintor... precisamos de mais...
- Infelizmente, não tinha como ser mais. De onde eu tiraria mais tinta?
- Mas, os vermelhos e os neutros...
- Os Nobilíssimos Soberaníssimos Justíssimos senhores Neutros e vermelhos já tem mais tradição. Vocês , tão bonzinhos, chegarão lá, quando forem iguais a eles.
- Mas, nós somos iguais...
- Chega! Quer que eu diminua para meio balde? Tá cheio de gente querendo...

Os verdes não acreditavam. Sentiam-se impotentes. Só havia uma solução. Era a hora de os pretos os defenderem. Mas, os pretos silenciaram. Um verde perguntou a razão e ouviu a resposta:

- Vocês é que deveriam nos defender, mas resolveram agradar os que nos oprimiam. Não foram capazes de reclamar do que faziam conosco. Foi então que percebemos:  no fundo, vocês continuam brancos, pensando como brancos e para os brancos.

- Não é verdade! Precisamos de mais tinta para representar vocês melhor. A luta sempre foi por vocês. Mesmo o silêncio servia para acumular forças e preparar o contra-golpe futuro.

- Já conhecemos esta história de acumular forças com a submissão. Parece com a de crescer o bolo para depois dividir. Esta força vicia e ninguém quer largar. E o preço dela é cada vez mais silêncio.Vocês seriam cada vez menos amigos nossos e mais amigos do pintor, assim como os neutros e os vermelhos, tirando poucas exceções.  A força só tem valor se conquistada, nunca se comprada pelo silêncio. Aliás, vocês reclamavam da discriminação por nós, ou porque queriam ser iguais aos neutros e vermelhos?

- Mas, nós não podíamos esperar isto deste Pintor. Ele sempre defendeu os pretos...

- Todo Pintor é branco. Olhem com atenção a cor da sua barba ou do seu cabelo. Se for preto, é só por fora. Se um dia um grupo de pretos tomar o poder, eles se tornarão brancos. O poder é branco! Enquanto existirem brancos e pretos, os atos dos pintores tendem a ser contra os pretos. Os verdes são discriminados porque são associados aos pretos, mas a única forma de ganharem o respeito do pintor, ou de qualquer um, é percebendo isto. É defendendo os pretos, com unhas e dentes, até mesmo do próprio Pintor. Vocês precisam definir o seu lado e saber de onde vem a sua força.

Humilhados pelo Pintor e sem o apoio dos pretos, os verdes precisavam refletir. Até que ponto os pretos tinham razão? Será que haviam sido omissos? Será que haviam sido ingênuos? Será que haviam sido vaidosos, arrogantes? Será que realmente só queriam ser tratados como vermelhos e neutros? Será que tinham esquecido da sua missão de defender os pretos?

Alguns verdes preferiam que permanecessem submissos ao pintor até que este os fortalecesse, por gratidão ou bondade. Achavam que a estratégia estava certa. Bastava esperar. Outros preferiam que eles agissem com independência, pensando em primeiro lugar nos pretos. Não se sabe que grupo prevaleceu ou que grupo prevalecerá. Só se sabe que isto é apenas uma história e sendo assim, será sempre reversível, porque a história não tem...

FIM