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sexta-feira, 29 de março de 2013

Que tipo de Jornalismo?


Em 25 de março, o programa CQC, da Rede Bandeirantes, exibiu quadro, anunciado como a primeira vez em que o Deputado José Genoíno falaria com a sua equipe. O parlamentar foi condenado pelo STF, no julgamento do "mensalão". Como até hoje o acórdão não foi publicado, assumiu o mandato para o qual foi eleito e conquistou vaga na Comissão de Constituição e Justiça. A situação é estranha e um campo rico para um bom jornalista elaborar profundos questionamentos sobre os nossos sistemas jurídico e político.

Por mais interessante que seja o tema, entretanto, ninguém é obrigado a dar entrevistas. Se até mesmo no processo penal, o réu tem direito ao silêncio, imagina quando chamado a dar declarações por um veículo de comunicação. Infelizmente, para a emissora, por alguma razão, o parlamentar não gosta do programa e se recusava a falar com ele. a negativa, todavia, foi contornada de maneira polêmica. O petista foi enganado e entrevistado por uma criança, sem saber que ela atuava para a Tv.

É muito claro que o garoto foi usado como ferramenta, para violar o direito que todos têm, inclusive os réus ou condenados, mesmo em casos de repercussão. Não foi só anti-ético, foi ilícito, passível de indenização. Algumas pessoas podem argumentar que isto faz parte do papel do jornalismo: investigar e trazer as notícias relevantes. Seria aceitável e até recomendável o uso de subterfúgios, para desnudar fatos relevantes. É uma boa tese, mas para justificar a hipótese analisada, precisava passar por dois filtros: a) O CQC é um programa jornalístico? b) Havia algum interesse público?

Não sou especialista no assunto, mas a própria Rede Bandeirantes, pronunciou-se sobre e respondeu a primeira questão: "o CQC é um programa com o foco acentuado no humor, não pretende ofender o público e sim entretê-lo. Mas, como toda atração que trabalha com esse gênero, corre o risco de desagradar algumas pessoas" (veja aqui ). Logo, trata-se de um humorístico. A função social do jornalismo, portanto, não o protege.

Entretanto, ainda que fosse uma atividade de imprensa, qual seria o interesse público ou a denúncia apresentada? Para descobrir, é recomendável analisar as perguntas feitas pelo comediante: 
1) Você veio aqui se esconder, porque lá na prisão é pior, tem menos bandidos, é mais fácil? 
2) Tá fazendo voto de silêncio? Vai ser bom na prisão, lá X9 se ferra. 
3) O senhor não está chateado porque o Maluf não foi preso, condenado e o senhor tá aí? 
4) Genoíno, você vai passar aonde o revellion? Na Papuda? Já sabe qual prisão? 

Nada é investigado.  Nenhum fato novo é apresentado. É bastante impróprio igualar isto a uma matéria em que, disfarçado, um jornalista comprova a existência de um esquema de propinas em cartórios, com a participação da polícia ( leia aqui). Neste caso, a microcâmera é um meio para desvendar uma rede de crimes e, quem sabe, iniciar uma apuração pela justiça. Naquele, o uso da criança para ludibriar Genoíno era um fim em si mesmo. Tinha como única intenção escarnecer dele.

O que programa da Bandeirantes fez pode ser comparado a outro tipo de utilização da Televisão, que também se diz jornalismo e tenta ser engraçado, mas tem o mesmo propósito: constranger e humilhar. A emissora conhece bem o assunto, porque, na sua filial baiana, demitiu uma funcionária que fez o mesmo tipo de perguntas. Ela somente não tinha a mesma fama e nem atraía tantos patrocinadores. Falar a um condenado que "na prisão X9 se ferra" não é muito diferente de rir de uma pessoa presa, porque ela não sabe falar "próstata" ( detalhes aqui ). As duas práticas são iguais e inaceitáveis.

sábado, 23 de março de 2013

Conluios


Joaquim Barbosa, durante sessão do Conselho Nacional de Justiça, afirmou que não havia nada mais pernicioso que o conluio entre juízes e advogados. Em resposta, o desembargador Tourinho Neto disse que não via nada demais na amizade dos julgadores e os causídicos. Lembrou que ele mesmo, quando magistrado no interior, bebia na casa de um ou de outro. Como o diálogo aconteceu durante julgamento de suposto caso de corrupção, presume-se que"conluio" não foi usado no mesmo sentido pelos dois. O segundo falava de relações fraternais, enquanto o primeiro de relações escusas.

Todos os juízes têm amigos advogados. Preocupante seria se não tivessem. Eu teria muito medo se soubesse que o meu problema seria julgado por alguém que, após 05 anos de faculdade de direito, não se dá bem com ninguém que virou advogado. Alguma coisa estaria errada em tamanha dificuldade de convívio. Logo, exigir o isolamento absoluto seria absurdo e impossível.

Isto não significa, entretanto, que seja natural o juiz do interior sair "bebendo na casa de um ou de outro", especialmente porque, em regra, conheceu a cidade e os advogados referidos, apenas por exercer o cargo. Ou o julgador é tão cego e vaidoso quanto o jogador de futebol que, cortejado pelas mulheres mais belas, pensa que fica mais lindo a cada gol, ou percebe que o assédio aumenta em razão da busca por influência nas decisões. Sob esta ótica, Barbosa teria certa dose de razão.

O Ministro esquece, todavia, que existe, quase sempre, uma amizade muito mais intensa que esta, também iniciada exatamente em função dos cargos que as partes ocupam. Sugiro que se pesquise, nas comarcas do interior, como as citadas pelo desembargador, quem é o melhor amigo do juiz. Não será nenhuma surpresa se em mais da metade delas a resposta seja a mesma: o promotor.

Normalmente, quem sussurra no pé do ouvido do juiz, até porque senta do lado dele, é o membro do Ministério Público. Quem almoça, viaja junto, bebe, liga para o telefone pessoal, toma cafezinho no gabinete e até divide casa com o magistrado não costuma ser o advogado. É muito mais comum, portanto, a influência nos bastidores, sem a outra parte saber, ser exercida por procuradores da república, como Barbosa sempre foi, do que por advogados.

Talvez, ele esqueça esse detalhe porque, apaixonado pela sua carreira de origem, alimente o delírio de que no Ministério Público todos são honestos, bem intencionados e, acima de tudo, justos. Assim,  jamais tentariam influenciar malevolamente uma decisão, porém, apenas fazer justiça. Em resumo, como um lado representa "o bem", não tem problema. Superada a ingenuidade e o maniqueísmo infantis, aprendemos a duvidar da bondade dos (que se acham) bons e a perceber que nem todos os males são feitos com más intenções. Além de notar que intenções escusas são encontradas entre advogados, entre juízes, entre defensores públicos, e, também, entre membros do Ministério Público.

Então, chegamos à segunda interpretação de conluio: não mais a mera influência de bastidores, mas a influência por corrupção. O Presidente do Supremo, talvez, identifique a compra de sentenças como o que há de mais pernicioso na justiça brasileira. Antes de mais nada, é preciso reconhecer que existem, sim, decisões suspeitas. Elas podem ser vislumbradas de maneira mais fácil do que se imagina. Pensemos, por exemplo, em decisões liminares, autorizando que construtoras procedam a derrubada de árvores, negada pelos órgãos ambientais, proferidas na véspera de um feriado. Antes mesmo que o Estado saiba e possa recorrer, a vegetação vai embora e se perde o objeto. Melhor apurar casos como esse que apontar o dedo indistintamente.

O erro de Barbosa é generalizar suspeitas, fazendo parecer que todos ou a maioria dos juízes e advogados são desonestos. Este caminho é fácil porque, em erro primário, repetimos que o grande problema de tudo é a "impunidade" e os "níveis alarmantes" de desvios. Segundo este pensamento simplista, a solução para tudo seria mais penas e penas mais severas. O herói seria aquele que parece mais duro e intransigente na luta contra os malvados. O maior legado que Joaquim Barbosa e Eliana Calmon poderiam deixar para a justiça brasileira seria o aprendizado, pelos juízes, de como é inadequado um julgador tendente à acusação.

Desta forma, seguimos nos limitando à caça de problemas conjunturais e esquecendo completamente a estrutura. O que há de mais pernicioso na justiça não são as amizades, nem os casos de corrupção. Muito piores são a estrutura ritualística, que faz do processo um labirinto. São as vestes que transformam os juristas em semi-deuses. É a linguagem pernóstica (que não tem nada a ver com técnica) que torna os conteúdos das decisões e das petições enigmáticas. É, principalmente, a distância entre a justiça e os pobres, que gera a incompreensão das suas famílias pobres, suas casas pobres, suas ocupações pobres, seus vocabulários pobres, suas educações pobres, suas aspirações pobres, suas perspectivas pobres para o futuro e as soluções pobres que precisam encontrar para suas tragédias. O que temos de pernicioso não é um sistema de justiça corrupto e sim um sistema de justiça elitista.


segunda-feira, 18 de março de 2013

Não Insista!

A loja estava aberta. E prosperava. Naquele momento, um policial fardado deixava o recinto, levando a sua mercadoria. O dono se orgulhava de ter excelentes relações com diversas autoridades: citava o promotor mais antigo da cidade, citava o prefeito, ex-prefeitos, deputados federais e estaduais, muita gente importante.

O cliente esperava na fila e não podia deixar de ouvir a conversa. Agora, tratavam do aumento da bandidagem. Era uma consequência da degradação moral, da ausência de família, da falta de religiosidade e, principalmente, das pessoas, cada vez mais vagabundas. Não havia mais respeito. Tudo era agravado pela impunidade.

As soluções eram claras: redução da maioridade, penas maiores e mais aflitivas, o fim das benesses que os acusados possuem. A lei era feita para que ninguém fosse punido. Era necessário, também, a internação compulsória dos drogados, grande chaga social. Se bem que o melhor era a prisão mesmo. Para traficante, pena de morte, pois era o pior vilão do século XXI.

O importante, diziam, era garantir a paz dos cidadãos de bem, cumpridores da lei, respeitadores da ordem. O proprietário se queixava por terem tirado dele o direito de se defender. Os honestos não podem usar armas, mas os marginais, sim. Fazia o possível para garantir a incolumidade do seu comércio. Para tanto, instalou câmeras, com a função de identificar os elementos que quisessem furtá-lo.

Explicava, com muita ênfase, que degenerados tinham o hábito de fazer pequenos desfalques. Surrupiavam pequenos objetos, enquanto ninguém via. Um único bem daquela espécie tem pequeno valor e parece insignificante, contudo, a soma dos desvios seria absurda e impediria o bom funcionamento da economia. Os vídeos, assim, evitavam esta tragédia, além de garantir o castigo dos safados.

Ao chegar à caixa, o cliente notou um cartaz colado à parede. Talvez, pudesse até ser visto por uma das câmeras. Certamente, foi notado também pelo policial que deixara o recinto, assim como pelos clientes célebres citados pelo proprietário. Era uma advertência, em letras garrafais, aos clientes da loja, para evitar aborrecimentos.

NÃO EMITIMOS NOTAS FISCAIS.
NÃO INSISTA!

Curioso, o cliente, fez-se de desentendido e pediu a nota fiscal. Para testar. Foi-lhe apontado o aviso, sem a necessidade de mais nenhuma palavra. A regra era clara e fixada previamente.

Pôde, então, respirar tranquilo. Esta é a vantagem dos cidadãos de bem: sempre respeitam as normas.


segunda-feira, 11 de março de 2013

O Calendário de 1938

Revendo petições antigas, elaboradas em outros tempos, quando trabalhava em outro local, encontrei esta. Talvez, seja um resumo do problema da mecanização da justiça. Talvez, seja um problema da sobrecarga de quem trabalha com ela. Talvez, seja um problema de falta de sensibilidade. Seja como for, é algo a se refletir.



EXMO(A) SR(A). DR(A). JUIZ DA...








******, já qualificado nos autos do processo *****, por intermédio do Defensor Público infrafirmado,  vem, respeitosamente, manifestar-se em relação ao despacho de f.15, determinando a manifestação de interesse no feito, em 48 horas, sob pena de extinção.

1. Interesse no Feito.

A parte autora jamais procurou a Defensoria para informar que desistia, de modo que, presume-se que permanece interessado no feito.

2. Paralização do processo por 05 anos, para provar que um ano foi bissexto.

O presente processo começou a tramitar em ****. Em síntese, o autor alega que sua certidão de nascimento informa que ele nasceu em 29 de fevereiro de 1938, quando ele, na verdade, nasceu em 28 de fevereiro de 1938. Diz ainda que em 1938 nem sequer houve o dia 29 de fevereiro.
10 meses depois, abriu-se vistas ao MP. O parquet pediu para que aparte autora provasse que no ano de 1938 não existiu o dia 29 de fevereiro “trazendo, aos autos, o Calendário do ano de 1938”(f.06).
Por incrível que pareça, a Exma Juíza deferiu o pleito (f.07), em ***** (quando o processo completara 01 ano).
Mais 11 meses depois, o processo foi ao MP, sem passar pela Defensoria. O MP reiterou para que se cumprisse o despacho, provando que o ano de 1938 não foi bissexto (f.08).
Em ****, mais 04 meses depois (02 anos e 03 meses no total), ato ordinatório assinado pelo escrivão determina que se intime a Defensoria Pública para fazer a prova (f.09).
Em ****, também de forma surpreendente, a Defensoria pediu a suspensão do processo, até a parte trazer o tal calendário (f.10).
Em ***, o processo foi suspenso (f.11).
O tempo passou e como era de se esperar, o autor, lavrador idoso e pobre, não encontrou nenhum calendário de 1938.
Hoje, 05 anos, 01 mês e 01 dia após a inicial, o kafkiano processo estancou no início, em uma surreal busca da prova de que um ano não foi bissexto.
Em tempo, o autor nasceu em 28 de fevereiro de 1938. Tinha, na época da propositura da ação, *** anos. Hoje, se estiver vivo, possui *** anos. E todas as instituições estatais que participaram no processo (Defensoria Pública, Judiciário e Ministério Público) serão responsáveis, caso ele tenha falecido ou venha a falecer, sem ter o pleito atendido.

3. Paralização do processo por 05 anos, para provar ano é bissexto.

É regra básica do nosso sistema probatório que o fato notório não depende de prova.
Art. 334. Não dependem de prova os fatos:
I - notórios;
II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;
III - admitidos, no processo, como incontroversos;
IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.
(Código de Processo Civil)

Como todos nós aprendemos no primário, só existe o dia 29 de fevereiro, nos anos bissextos. Ele é consequência do fato de que um ciclo de translação (que marca o ano) dura, na verdade, 365 dias e 06 horas. Para facilitar o calendário, convencionou-se, que o ano terminaria em 365 dias, mas de 04 em 04 anos (04 x 06 = 24 horas) haveria um dia extra, o 29 de fevereiro. Pode parecer que este parágrafo falou de coisas óbvias, mas, na verdade, falou de coisas notórias.
Para saber se o ano de 1938 foi ou não bissexto, há várias formas, que prescindem do calendário. A primeira delas, em tempos de internet, é pesquisar no Google (sugiro como chaves de pesquisa as expressões “como saber se um ano é bissexto” ou “1938 foi bissexto”). Este site, por exemplo, tem um programa só para determinar se qualquer ano foi bissexto: http://www.webcalc.com.br/frame.asp?pag=http://www.webcalc.com.br/datas/bissextos.html
Existe também uma fórmula, explicada no primário, que diz serem bissextos os anos divisíveis por 04 (por exemplo, 1936 ou 1940), exceto terminados em centenas, a não ser que divisíveis por 400 ( por exemplo 2000). É notório que 1938 não é divisível por 04 e não termina em centena divisível por 400.
Por fim, um método eficiente, para quem não lembrasse a lição da infância, seria pensar no ano bissexto mais próximo e ir subtraindo quatro. A sequência de anos bissextos regressivamente, então, é 2008, 2004, 2000, 1996, 1992, 1988, 1984, 1980, 1976, 1972, 1968, 1964, 1960, 1956, 1952, 1948, 1944, 1940, 1936. O ano de 1938 não está na lista, pelo fato notório de que não é bissexto.
Se 1938 não é ano bissexto, o que é notório, ele não pode ter o dia 29 de fevereiro. Isto também é notório. Se o registro de nascimento do autor diz que ele nasceu em 29 de fevereiro de 1938, é evidente que está errado e precisa ser retificado.
É hipótese, portanto, de julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330 do CPC.
Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
I - quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
II - quando ocorrer a revelia (art. 319). (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

4.  Idoso. Prioridade de Tramitação.

Por outro lado, é necessário ressaltar que o autor é, se continuar vivo após esses 05 anos, pessoa de 74 anos, conforme comprova o seu documento de identidade acostado aos autos, fazendo jus à prioridade do Estatuto do Idoso, nos termos abaixo colacionados:

“Art. 71 da Lei 10.741/2003: É assegurada prioridade de tramitação dos processos e procedimentos e na execução de atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância.”

5. Pedidos.

Diante do exposto, requer

a) a prioridade de tramitação, nos termos do art. 71 da Lei 10.741/2003;
b) o prosseguimento do feito;
c) seja o autor dispensado de trazer aos autos o calendário de 1938, pois o fato a ser provado com ele é notório;
d) o julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330, I, do CPC;
e) a retificação do registro do autor, nos termos pedidos na inicial.

Neste Termos. Pede Deferimento.

********************.

RAFSON XIMENES
DEFENSOR PÚBLICO 

segunda-feira, 4 de março de 2013

O Inferno são os outros. Agora, em garrafas.


Varonil chegou apressado, mas se tranquilizou ao olhar o relógio. Embora o coro lá estivesse há um bom tempo, ensaiando para a abertura, cumpria o horário. Felizmente, o estacionamento era adequado para a grandiosidade da celebração. Existiam cerca de 400 automóveis no local, o que já era esperado, pois o público e os organizadores, juntos, somavam quase 500 pessoas.

Pensou na importância de se verificar antecipadamente o espaço destinado aos veículos. Hoje, qualquer empresa ou instituição que se preze precisa tomar certos cuidados. Na sua antiga faculdade, por exemplo, reinava o caos. Os estudantes eram obrigados a chegar bem mais cedo, ou a se arriscar, parando o carro muito longe. Imprudência da direção, afinal, onde existem 600 docentes, não podem haver apenas 300 vagas. Não é óbvio que 300 sempre sobrarão?

Nem tudo são flores, todavia. Se no estacionamento, os organizadores foram muito felizes, em outros aspectos foram deploráveis. O horário foi completamente inadequado. Plena hora do rush! É impossível chegar em qualquer lugar, sem se estressar. É até mais rápido ir a pé. O pior de tudo é olhar o velocímetro e notar que a máquina projetada para atingir 250 quilômetros por hora não consegue passar de 20! Pelo menos, não há risco de multas, que seriam inevitáveis, uma vez que, no país, não existe nenhuma via que admita aquela velocidade.

Mais sorte teve o Otávio. Pelo menos, desta frustração se livrou. Com o carro na revisão, saiu com o da esposa, que tem o motor 1.0. Porém, esta vantagem não é reconhecida por ele. Além de lamentar o preço cobrado, sente-se meio exposto e envergonhado, em um carro pequeno. Preferia pegar emprestado o que comprou para o filho, quando ele completou 18 anos. Mais potente, maior e mais másculo. O que se chama de "carro de patrão"! Contudo, o menino precisava dele para ir à academia. E, hoje, especificamente, não poderia pegar carona com a irmã, pois pretendia caminhar 30 minutos a mais, na esteira.

Durante a viagem, esforçava-se para esquecer o vexame. Era melhor se concentrar na estratégia de sobrevivência no asfalto que Carlos, outro colega, o ensinara. Consistia em pular de um caminho a outro e dançar entre as faixas, em busca de uma via menos lenta. Há algum tempo, desconfiava que não funcionava bem, quando praticada sem método. Corria o risco de somente aumentar as distâncias, trocando um congestionamento pelo outro. Por isto, ouvia sempre o rádio, à espera dos informes sobre o trânsito, para facilitar.

Érica não pensava do mesmo modo. De que adianta falarem do tráfego se sempre o conteúdo das notícias é o mesmo? Todas as vias estavam engarrafadas, em qualquer horário de qualquer dia. Optava por ouvir música. A mais tranquila possível, pois se escutasse algo agressivo, xingaria todos os outros que estivessem no caminho. Lamentavelmente, sua tática era tão ineficaz  quanto a do amigo. Por mais que João Gilberto entrasse pelo seu ouvido, era Metallica o que saía pela sua boca. O barquinho pode até ir, mas quando a tardinha cai, o carrinho está parado. Matem eles todos, pensava.

Desconfiava da razão do problema: Hoje, todo mundo tem carro. O porteiro do prédio dela vai ao trabalho dirigindo. O mestre de obras tem carro. Quando o presidente reduziu o IPI, tudo se agravou. Além dos financiamentos já serem acessíveis, os preços ainda baixaram. Chegava a ser quase uma irresponsabilidade esta política que facilitava a aquisição de automóveis. Apenas não a odiava por completo, porque sem ela não conseguiria comprar o seu segundo veículo. 

Lembrou, então, de culpar a faixa exclusiva para ônibus. Era inadmissível que as pistas, já estreitas, possuíssem um espaço reservado para o transporte coletivo. Para piorar, os motoristas invadiam as faixas restantes, tumultuando ainda mais a rua. Logo, devido a esta política, agora sim, sem dúvidas, irresponsável, os ônibus, espertinhos, andam depressa, enquanto os condutores, que pagavam os mesmos impostos, ou mais, são prejudicados. É o bolsa-buzu, puro populismo!

 Assim como Érica, Solano também concluíra que o governo favorecia quem andava de ônibus. Ele mesmo,  acharia melhor andar de coletivo, entretanto, todos sabem que isto é impossível nos dias de hoje! É verdade que a maior parte da população não possui carro, mas, convenhamos, não dá para comparar. Cada extrato social tem as suas peculiaridades e é capacitado para sobreviver a situações diversas. Pobre suporta ônibus. A classe média suporta os engarrafamentos. Assim como peixe nada, cachorro anda e ave voa. Sorte dos ricos, que usam helicópteros.

E ainda tem a questão da segurança. Quem tem coragem de andar na rua? Vejam as calçadas, totalmente desertas! Como todos acompanham os jornais, todos sabem que, ao sair a pé, você corre o risco, aliás, quase uma certeza, de ser assaltado e sequestrado. Isto se não for estuprado e assassinado, em plena luz do dia. Os bandidos são muito ruins. Mesmo que a violência sexual  e morte não ocorram, será muito difícil seguir a vida sem aquela nota de cinquenta que estava no bolso. Ou, pior ainda, sem o celular. São perdas irreparáveis. Como todos são prevenidos, todos ficam nos carros. Se todos estão nos carros, ninguém está na rua. Só caminham por aí o medo e os marginais.

Os amigos se encontram, felizes por terem comprado seus carros e mais ainda por serem visto com eles, mas infelizes sempre que os usam anonimamente. Contrariando as expectativas, ainda têm um tempinho para conversar, antes do início das atividades. Em frente ao espelho do saguão, apontavam, irritados, justificativas para os seus terríveis dramas existenciais. Após as reclamações de praxe, alguém pergunta como estava aquele rapaz que deixara a firma, há alguns anos. Solano rindo, comentou que ele, agora, usava uma bicicleta para ir ao trabalho.

Varonil estalou a língua, sucessivamente, no céu da boca. 
Otávio balançou a cabeça, com desprezo. 
Carlos mirou o céu, enfadado. 
Érica se repreendeu, mentalmente, por ter se envolvido em um breve romance com ele.
Solano teve a honra de finalizar o assunto, com a unânime e entusiástica aprovação dos demais:

- Paciência, companheiros. A esta altura, o pé deve ter se transformado em um grande calo. E ele pensa, seguramente, que é um monarca, como Luis XVI, ou até Napoleão. Não percamos tempo com malucos.


sábado, 2 de março de 2013

Ócio Criativo


Há alguns anos, as mulheres não trabalhavam. Hoje, trabalham. O percentual da população economicamente ativa, então, dobrou, certo?

Há alguns anos, não dispunhamos de muitas inovações tecnológicas que auxiliam o trabalho de hoje. A produtividade de cada pessoa economicamente ativa, então, expandiu-se, certo?

Há alguns anos, a jornada de trabalho era de 08 horas diárias e as férias de 30 dias. Hoje, com maior proporção da população economicamente ativa e com maior produtividade por pessoa, todavia, nada mudou.

Não dá para intuir que alguma coisa não fecha nesta equação?

E apesar da contradição ser tão clara, vemos tantos empregados, quase que com fanatismo religioso, apontando como problemas sociais o "excesso de feriados", ou a "preguiça" (dos outros), que trabalhariam muito pouco.

Acho que alguém ganha com isto. E não é você.

" A cultura americana usou os docentes de administração como a cultura cristã usou os pregadores, os missionários".