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domingo, 17 de novembro de 2013

Rubens no Casório


Todos os dias, Rodrigo acompanha os ponteiros do relógio. Espera a hora de arrumar as coisas e sair do trabalho. O que importa é ir embora, após mais um longo dia em que, mesmo sem ter feito nada de útil, leva a sensação de ser produtivo. Sem paradas em bares e sem conversas, o destino é o lar. A família é a base da sociedade.

Em casa, antes de qualquer boa noite, segue apressado em direção à cozinha. Logo, volta, irritado, reclamando da esposa. O café está frio, a sopa está fria e o pão está frio. Apenas a televisão continua quente. Senta no sofá, pega o controle remoto e sintoniza no jornal. O apresentador anuncia as notícias de ontem e prevê um amanhã tenebroso, igual ao que imaginou ontem.

Popopopó...
A Galinha Pintadinha e o Galo Carijó...

A mulher se aproxima e tenta narrar o seu dia. Psst! Estou vendo o noticiário, interrompe Rodrigo. Felizmente, vai começar a novela. Disso ela gosta muito e senta com o companheiro. Para angústia dos dois, antes, vem o intervalo. Ninguém gosta das propagandas, mas já que elas existem, o casal assiste com atenção. Pela milésima vez no dia, passa a propaganda da loja de roupas.

A galinha usa saia
e o galo, paletó...

Rodrigo avalia se o seu vestuário continua respeitável. A esposa acha que seus sapatos estão velhos. Finalmente, tem início o último capítulo. É chegado o grande dia em que se confirmará aquilo que todos leram no caderno de novelas. O mocinho salvará e casará com a mocinha. O vilão morrerá ou será preso. Todos os personagens simpáticos acharão um par, ficarão ricos e serão felizes. Silêncio! Começou!

Borboletinha tá na cozinha
fazendo chocolate para a madrinha...

Que bobagem, diz o marido. A mulher chora, emocionada. Mas, não há tempo para lamentações e sensibilidades. Eles têm um compromisso. Festa de casamento do filho do colega de trabalho, que eles sequer conhecem, com a noiva de quem não lembram o nome. Mas, o presente foi comprado, através da lista do casamento passado.

Zelosa e respeitosamente, acompanham a cerimônia. No íntimo, ambos esperam a cerimônia e não veem a hora de degustar e falar mal dos mesmos salgadinhos, das mesmas bebidas, das mesmas músicas e das mesmas decorações de todos os casamentos, formaturas e festas de quinze anos do ano. Talvez, dos últimos quinze anos.

Mariana conta um
Mariana conta um, é um, é um, é
Ana viva a Mariana...

Os amigos repetem o jornal, comentam a novela, emulam os comentaristas de futebol e reproduzem as mesmas piadas que viram, ao mesmo tempo, em apartamentos iguais, nos mais diversos edifícios. O equilíbrio é quebrado com a chegada de Rubens no casório. O mundo de Rodrigo é constante, no agir e no pensar. O de Rubens é mais complexo. As verdades em que todos acreditam, para ele, parecem falsas. 

Rubens faz perguntas sobre o sistema econômico. Aponta números, faz comparações. Rodrigo e os amigos respondem, em coro:

Poti, poti
Perna de pau...

Rubens vê contradições nas religiões. Cita passagens bíblicas, lembra atos dos sacerdotes. Fala sobre bruxas, fogueiras e até Jesus. A turma se ofende e contesta, irritada.

 Mariana conta dois
Mariana conta dois, é dois, é dois, é
Ana viva a Mariana...

Rubens fala sobre racismo, prisões, cotas e critica os humoristas orgulhosamente politicamente incorretos. Lembra da escravidão, de Hitler, de Malcom X, cita Mano Brown. O coro reage.

O doutor era o peru (glu glu)
A enfermeira era o Urubu...

E a conversa segue. Rubens analisa feminismo, política de drogas, médicos estrangeiros, manifestações de rua, cinema, música.... O grupo responde com olhos, vidros, narizes e pica paus (paus, paus). Para alívio de muitos, até que em fim, estranho vai embora. 

Não gosto dele, é um intriguento, diz Rodrigo. Sempre vem com esse discurso bonito e faz parecer que o errado é o certo, ou que nós, os certos, somos tão errados quanto os errados. A mulher não responde. Está, estranhamente, reflexiva. Parece um pouco aturdida.

No dia seguinte, o casal assiste o primeiro capítulo da nova novela, que lembra muito o último da velha. O silêncio dos anos anteriores parecia destinado a durar até a eternidade. Mas, ela ainda ouve a conversa de Rubens. De repente, Rosa, desafiadora, olha para o marido e dispara: Por que é justamente a borboletinha que está na cozinha? Por que o Urubu pode ser enfermeira, mas não médico? Por que Mariana conta, conta e não faz nada?

Rodrigo sabia que isto podia acontecer. Por isto, odiava e temia Rubens. Rubens sabia que isto podia acontecer. Por isto, desprezava e enfrentava Rodrigo. Ele tinha consciência de que não estava sozinho e que muitas Rosas despertam a cada minuto. Tranquilo, lembra dos preconceitos e do conformismo de Rodrigo e seus seguidores. Pensa, então, com sigo mesmo:

Não, vocês não passarão. 



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Graça e Piedade



Ondina, 1989.

Sinal fechado. O menino, animado, falava das suas boas notas e tentava convencer a mãe a premiá-lo com um gibi. Mônica, Cebolinha, Cascão, tanto faz. Presente sempre é bom! A mulher fingia protestar, mas não disfarçava o sorriso. Adorava ver o filho indo bem na escola e, mais ainda, querendo ler. Verde, abriu. Vamos ver se a banca de seu Costa está aberta, hoje pode haver uma surpresa...

Graça, 2010. 

Os amigos conversavam no apartamento. Na verdade, discutiam, mas com amizade. Qualquer um poderia cometer um crime? Não, dizia o médico. Eu jamais praticaria nenhuma infração. Não desejo machucar ninguém. Em nenhuma eventualidade, tentaria matar outra pessoa. Para fazer isto, as pessoas precisam ter muita maldade. Ele era sincero, se achava bom. Alguém pediu para mudar de assunto e falou mal de outra pessoa.

Ondina, 2013.

Amanhecer chuvoso. Após discussão no trânsito, uma médica, branca, persegue um motociclista, branco, e sua companheira, branca, que socaram o seu carro. Há um choque. O carro roda e para em um poste. A moto se estatela no chão, as pessoas ela levavam morrem. Eram irmãos. A motorista vai para o hospital e é acusada de homicídio. Assunto de todos os jornais.

Piedade, 2013.

A família inteira grita. A médica quis matar os motociclistas. A médica não quis matar os motociclistas. A mãe arrematou: se ela correu atrás deles, é claro que queria matá-los. No mínimo, assumiu o risco. Após, segundos de constrangimento, o filho indagou: mas, mãe, você não lembra daquele dia?

Graça, 2013.

Todos comentam estupefatos, a tragédia do dia anterior. O médico, que estava de plantão, apenas agora, conhecia os detalhes. Ouvia em silêncio, com os olhos cada vez mais abertos. Após alguns minutos, sem lembrar que era segredo, soltou as primeiras palavras: meu Deus, igualzinho ao que aconteceu naquele dia...

Ondina, 1989.

Ao passar no cruzamento, com o filho falando sobre histórias em quadrinhos, ela sentiu a pancada violenta. Um bêbado não obedeceu a sinalização. Para piorar, não parou. A mãe soltou um palavrão, na frente da criança, e disparou à toda velocidade, buzinando e ultrapassando perigosamente cada  veículo da frente. Felizmente, o fugitivo encostou, em frente a uma delegacia. O menino não esqueceu. Ela não lembrava.

Ondina, 2010.

O médico, cansado, volta do hospital. Assustou-se com um barulho de vidro quebrado. Era um pé, no seu retrovisor. Uma moto seguia em frente. Imediatamente, ele usa, pela primeira vez, toda a potência do motor do carro. Corre atrás do agressor pela cidade, fazendo manobras arriscadas. Por sorte, não chovia. O motoqueiro esgueirou-se, após passar um ônibus e escapou. Esqueceu o assunto. Até chegar a hora de lembrar.

Piedade, 2013.

Todos voltaram-se para a mulher: Mãe, você tentou matar aquele homem? Ao persegui-lo, pensou que assumia o risco de matar alguém? Ou foi apenas imprudente?

Graça, 2013.

Todos voltaram-se para o médico:  Você tentou matar aquele homem? Ao persegui-lo, pensou que assumia o risco de matar alguém? Ou foi apenas imprudente?

Brasil, 2013 em diante.

Muitos brancos e pretos mataram muitos pretos, mas não saiu no jornal. Poucas médicas brancas foram acusadas de matar motociclistas brancos. Muitos pretos foram acusados de matar muitos pretos ou brancos e viraram manchete, especialmente no segundo caso. 

O julgamento daquela médica branca  serviu de base para o daqueles pretos. Eventualmente, sem que tivessem culpa, pagaram pelo dolo atribuído a ela. Com o agravante de que ninguém achava que as suas vidas estavam sendo destruídas. Onde se procura vinganças, para ela, resta uma desgraça. Para eles, nenhuma piedade.



terça-feira, 16 de julho de 2013

Manifesto: Defensoria Pública do Paraná, uma questão de justiça.

“Sou mais do que nunca influenciado pela convicção de que a igualdade social é a única base da felicidade humana…” (Nelson Mandela)
Em um País DESIGUAL como o Brasil, onde os necessitados ainda são a maioria, não se pode falar em acesso à justiça sem que haja uma instituição FORTE que defenda os interesses de todos aqueles que, por algum motivo (nem sempre a pobreza), não podem contratar um advogado que possibilite o ajuizamento de ações e a resolução de problemas por meio do Poder Judiciário.
Essa instituição é a DEFENSORIA PÚBLICA! É a Defensoria que, segundo a CONSTITUIÇÃO, luta pelos interesses dos chamados hipossuficientes, desenvolvendo uma infinidade de serviços (ajuizamento de ações, orientação judicial, educação em direitos, conciliação, etc.), dentro e fora do Judiciário, por meio de profissionais competentes e selecionados por concursos públicos. É a prestação de um SERVIÇO PÚBLICO, ou seja, um dever do Estado ao qual todo cidadão tem direito a ter acesso, de maneira gratuita, adequada e com qualidade.
Contudo, infelizmente, no Estado do Paraná, a Defensoria Pública, embora exista desde sua implementação já tardia, por meio da LC 136 em 2011, CONTA ATUALMENTE COM APENAS 10 DEFENSORES PÚBLICOS PARA TODO O ESTADO, todos concentrados apenas na capital. Segundo dados da Associação Nacional dos Defensores Públicos, o Estado do Paraná necessita de um total de 884 DEFENSORES PÚBLICOS.
Em 2011 e 2012, foram abertos concursos públicos pelo Estado para contratação de 528 servidores e 197 novos Defensores Públicos, sendo aprovados apenas 95 DEFENSORES, e, mais de 2000 servidores. Os candidatos aprovados aguardam a nomeação pelo Governo do Estado para poderem começar a trabalhar a serviço do povo paranaense. No entanto, NÃO POSSUEM QUALQUER PERSPECTIVA DE QUANDO VÃO INICIAR O SEU TRABALHO (o que pode ocorrer só em 2015!) e, assim, poder ajudar a população do Paraná, que tanto precisa desse serviço público.
Desse modo, apesar de existir no papel, a Defensoria Pública do Paraná possui atuação prática quase nula, uma vez que sem os Defensores Públicos não há como atender as demandas da população carcerária, dos assentamentos de terras, questões de direito de família, tutela coletiva do direito à moradia digna, dentre tantas outras.
O Paraná é um dos únicos Estados do país que não possui uma Defensoria Pública estruturada e atuante (ao seu lado apenas o Estado de Goiás). Tanto QUE O PRÓPRIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JÁ DETERMINOU QUE O ESTADO DO PARANÁ ESTRUTURE A SUA DEFENSORIA PÚBLICA para que ela possa atuar de forma correta.
O PARANAENSE NÃO PODE MAIS AGUARDAR! Já há uma espera de 25 anos, pois a Defensoria Pública é fruto da Constituição de 1988. O POVO PARANAENSE TEM O DIREITO FUNDAMENTAL DE USUFRUIR ADEQUADAMENTE DA DEFENSORIA PÚBLICA, contando com profissionais capazes de defender os seus direitos à saúde, à educação, à moradia, de liberdade, do idoso, da criança, dentre outros, tanto na esfera judicial quanto fora da Justiça!
Por isso, CONVOCAMOS TODOS OS CIDADÃOS DO PARANÁ a assinar o abaixo assinado em prol da Defensoria e comparecerem no dia 14 de agosto, na Boca Maldita, a partir das 16 horas, para lutarem por essa nobre causa: estruturação da Defensoria Pública do Estado do Paraná, através da imediata e integral nomeação dos defensores e servidores aprovados em concurso público.
NÃO EXISTE DEFENSORIA PÚBLICA SEM DEFENSOR PÚBLICO E SEM SERVIDOR!

sábado, 4 de maio de 2013

Pela Ampliação da Maioridade Intelectual





Nas últimas semanas, um tema domina os noticiários e se espalha pelas redes sociais: a redução da maioridade penal. Pretendo me dirigir a quem defende o clamor do momento, para sugerir uma forma mais inteligente de fazê-lo. Digo isto porque os argumentos apresentados costumam ser superficiais ou até inadequados à questão. Vou indicar algumas premissas e pontos mínimos que não podem ser ignorados.

 Existe, realmente, um problema?

O primeiro ponto trazido pelos defensores da redução da maioridade é o de que os adolescentes estão cometendo muitos delitos graves e são os causadores da insegurança pública. Isto seria, de fato, um problema. Porém, para saber se isto é verdade, seria necessário responder algumas perguntas, como por exemplo: qual o percentual de práticas de fatos definidos como crimes por adolescentes? Dentre esses, qual o percentual de crimes graves?

Mas, atenção! Os percentuais questionados não são deduzidos da quantidade de notícias em jornais. Um veículo de imprensa escolhe o que divulga, o que não divulga e como divulga. Aliás, os grandes estudiosos de criminologia são unânimes em afirmar que, normalmente, há uma ênfase extremamente exagerada nos delitos menos comuns, como estupros e homicídios. Também existe destaque maior quando o autor se enquadra em algumas características, como ser menor de idade ou estar em regime semi-aberto. É necessário consultar dados oficiais e pesquisas confiáveis.

Se você conseguir ultrapassar esta etapa, não significa, de modo algum, que a discussão acabou, mas somente que ela pode ser iniciada.

Premissas.

Considerando que você já tenha comprovado o problema e queira apontar o direito penal como solução para ele, precisará recordar e enfrentar algumas premissas inafastáveis do Estado democrático.

a) Direito penal é a última alternativa. Penas são as sanções mais graves em um ordenamento. São medidas drásticas. Sempre que existe um problema, o direito penal só pode ser considerado opção se não houver nenhuma outra solução possível.

b) É preferível não punir penalmente quem mereceria, do que punir quem não merece. Disto surgem duas consequências. Primeiro, é preciso haver uma idade mínima, porque do contrário, haveria um grande espaço de subjetividade na definição de quem poderia ou não ser julgado como maior. Segundo, considerando que as pessoas se desenvolvem de modo distinto, a idade mínima precisa ser aquela com a qual a maioria das pessoas podem, seguramente, ser consideradas responsáveis.

c) O direito penal existe para evitar a prática da vingança. A sua atuação precisa ser justificada por algum benefício que traga à sociedade. Por isto, dizer, simplesmente, que "ele merece", ou "se fosse sua mãe, o que você faria?"não é válido. 

Se você conseguir comprovar o problema ( o envolvimento significativo de adolescentes em crimes graves) e superar as premissas ( não há saída fora do direito penal, há uma idade inferior a 18 anos em que, com segurança, podemos afirmar que uma pessoa já seja plenamente capaz e você espera algo, além de vingança), vamos analisar se o meio escolhido (reduzir a maioridade penal) é bom ou não.

Uma pena mais grave reduziria a quantidade de crimes?

Normalmente, as pessoas afirmam isto, porque acham que 03 anos de privação de liberdade é muito pouco, para inibir que pessoas pratiquem delitos. Assim, aumentar a duração resolveria os problemas. Para discutir isto de verdade, é preciso consultar estudos sérios apontando a relação entre penas mais graves e redução de delitos. Uma pesquisa histórica sobre o tema foi realizada por  Georg Rusche e Otto Kirchheimer e se chama "Punição e Estrutura Social". Vale também verificar se, entre os adultos, o robusto incremento de rigor decorrente da lei dos crimes hediondos fez diminuir os crimes hediondos.

Outro aspecto a ser considerado é que o tempo também é relativo. Para quem viveu pouco tempo (os adolescentes) e para quem tem pouco tempo a viver (os velhos), três anos têm valor diferente do que para quem possui 30 ou 40 anos. Além disto, a sensação de duração de tempo é distinta na prisão e em liberdade. Eisten (sim, aquele) exemplifica este fenômeno com um rapaz passando um minuto ao lado de uma moça agradável ou sentado em um fogão aceso. No primeiro caso, sentirá que o tempo passou rápido, enquanto no segundo, achará uma eternidade.

Tudo isto precisa ser enfrentado para responder a pergunta. Em suma, você precisará descobrir se, de fato, os adolescentes fazem coisas erradas apenas porque acham que "03 anos passam rapidinho, o castigo é insignificante”. Não é suficiente repetir chavões como "logo, ele estará livre", "ele sabe que a punição é pequena".

A prisão é um boa escola?

Outra teoria frequente no senso comum é a de que a punição rigorosa levaria ao "aprendizado", pelo castigado, de como se portar futuramente. Neste caso, seria necessário perguntar se restringir o grupo social de pessoas de 16 anos a  adultos mais experientes na prática de delitos, seria uma boa maneira de ensiná-las os valores sociais considerados adequados.

Necessário também investigar se os adultos selecionados pelo sistema penal e, principalmente, pela prisão, costumam ser devolvidos à sociedade mais ou menos adaptados às suas regras. Após o cumprimento da pena, o egresso costuma se sentir mais incluído ou mais excluído? Ele se identifica e constrói a autoimagem de cidadão ou de marginal? O índice de reincidência é grande ou pequeno? São indagações muito relevantes e que precisam ser analisadas.

Quem paga a conta?

Um aspecto desta possível solução para o problema é estranhamente omitido dos debates. Prender mais pessoas ou prender pessoas por mais tempo, demanda a construção de mais locais para abrigá-los. Infelizmente, ou felizmente, penitenciárias não são encontradas na natureza. Elas precisam ser construídas, e mantidas.

Nossa população carcerária é uma das maiores e das que mais crescem no mundo. O sistema penal do Brasil já tem um déficit de vagas muito grande. Onde esses novos presos seriam colocados? Seriam construídas novas unidades? Quantas? Qual o custo? De onde sairá a verba? Quantos hospitais deixarão de ser criados? Quantos professores e médicos deixarão de ser contratados? Em resumo, qual a prioridade, prisões ou escolas?

As possibilidades e consequências de o Estado sustentar, dentro das exigências legais, novas vagas para encarcerar mais gente devem ser esclarecidas. Do contrário, será apenas uma proposta irresponsável de políticos populistas, acatada por inocentes (ou não) úteis.

Conclusão

Estas são algumas perguntas a serem respondidas, para racionalizar o debate. Não esgotam, porém, o tema. Muitas outras questões poderiam ser formuladas. Um bom exemplo, é o fato de a Constituição da República dizer que os direitos e garantias individuais não podem sequer ser objeto de emenda constitucional (artigo 60 §4º) e idade mínima penal se encontra entre elas (art. 228). Como viabilizar projetos de lei flagrantemente inconstitucionais?

Sem passar por este processo de maturação das ideias, quem propõe reduzir a maioridade penal apresentará um discurso vazio e rasteiro. Por isto, vai continuar a ser tratado com desprezo pelos seus oponentes. Não é porque eles são arrogantes. É porque quem discute com base em senso comum não pode ser levado a sério. Está na hora de ampliar, no sentido de difundir, a maioridade intelectual. 






quinta-feira, 2 de maio de 2013

Histórias de Gibi



Duas bombas explodiram, no fim de uma maratona nos Estados Unidos, matando três pessoas. Muito depressa, a polícia apontou alguns suspeitos. Após um dos investigados ser morto e outro capturado, faltava alcançar um. Quando o garoto de 19 anos foi preso, a população saiu às ruas, para aplaudir e comemorar, pois a justiça havia se concretizado. Ninguém dentre os celebrantes tinha qualquer dúvida sobre a culpa do garoto. Não era preciso aguardar o fim das investigações, ou início do processo. A polícia disse que era ele, então era ele.

Mesmo longe, a certeza da legitimidade de todos os atos oficiais atingia níveis absurdos. O canal Globo News exibiu matéria em que um suspeito era preso e levado a uma viatura, completamente nu. A explicação para a ausência de roupas era que ele fora minuciosamente revistado. O jornalista afirmava repetidas vezes que aquele homem havia sido morto em um tiroteio. Um mínimo de ceticismo o levaria a desconfiar de algumas coisas. Por que após a revista não deixaram que ele se vestisse ou o cobriram com um lençol? Como alguém entra em um carro pelado e algemado e depois morre em um tiroteio? Mas, indagações não estavam no roteiro.

Um promotor paulista disse em palestra para estudantes que o advogado não defende o crime, mas sim o criminoso. Outro, no Rio Grande do Sul, elogiando a Defensoria Pública local, disse que se cometesse um delito, gostaria de ser ajudado por ela. Não passou pela cabeça do primeiro que o advogado não defende necessariamente "o criminoso", mas o réu, que muitas vezes é inocente. Não são sinônimos. O segundo esqueceu que pessoas são processadas e precisam da Defensoria, mesmo sem ter cometido qualquer delito. Estava implícito nas afirmativas deles, ironicamente os responsáveis por fiscalizar a atividade policial, que confiam plenamente, quando os inquéritos apontam os suspeitos.

Quando se menciona o acontecimento de um crime, a maioria das pessoas não demora para acreditar que o delito realmente ocorreu. Basta, então, apontar um culpado que a culpa está formada. É considerado extremamente necessário e reconfortante que alguém seja punido o mais rápido possível e com todo rigor. O senso comum, aliás, diz que a causa de todos os problemas do planeta é a impunidade. As leis são sempre ultrapassadas e excessivamente benevolentes, com os "bandidos". Esse discurso esteve presente em todos os períodos históricos, até mesmo nas ditaduras. Para salvar a sociedade, portanto, queremos eleger monstros, para odiar e depositar as frustrações.

Pessoas são julgadas social e judicialmente, como se vivêssemos em histórias infantis. Existem os heróis e os vilões, muito bem delineados. Uns são bons e sempre dizem a verdade, outros são maus e sempre mentirosos. Quem questiona o mocinho é vilão também. A decisão está tomada no exato momento em que as autoridades americanas divulgam o rol dos suspeitos, ou o Governo da Bahia divulga o nome do rei do copas do seu vergonhoso "baralho do crime". Definidos os papéis de cada um por quem tem o poder de contar as histórias, qualquer conduta será interpretada a partir deles. Afinal, se alguém foi nomeado como rei de copas é porque deve ser perigoso.

É nesse contexto hostil que as pessoas se defendem. Talvez, devêssemos duvidar um pouco mais de toda a história e não apenas de um ou outro personagem. Quando, para defender ou atacar uma tese, alguém se esconde atrás do escudo de "guerreiro contra a impunidade" é porque o discurso ficou vazio. Atingindo esse nível de maturidade, a sociedade vai discutir como evitar que adolescentes sejam autores ou vítimas de atos infracionais, em vez de antecipação da maioridade penal. Vai ser possível também debater meios de reduzir os danos causados pelo consumo de drogas, em vez de como punir mais os vendedores.  Quem sabe até sobrará tempo para lutar contra a pobreza e não pela prisão dos pobres? Vamos, em fim, nos preocupar com a essência das questões. Mas, só se pararmos de acreditar em gibis.




segunda-feira, 1 de abril de 2013

Meia Rebeldia



Um dos maiores problemas para o acesso à cultura são os preços exorbitantes. Chico Buarque fez show em Salvador e os ingressos custavam de R$260,00 a R$320,00. Uma sessão de cinema aos sábados, em um Cinema Multiplex, que possui oito salas, não sai por menos que R$22,00. Um monólogo teatral chamado "7 Contos", estrelado por Luiz Miranda, cujos ingressos valiam originalmente sete reais, hoje poderia mudar o nome para "Sete vezes sete contos e mais um pra arredondar". 

O público consumidor, com razão, reclama que está tudo muito caro. Com os valores cobrados, seria muito dispendioso este tipo de lazer. Assim, fica impossível frequentar teatros, cinemas e shows musicais. Só o que resta é beber, para esquecer dos problemas e rir, mesmo sem motivo. A menos que haja um meio pagar menos, algo como a metade, e, pensando bem... até que há! Chama-se meia-entrada! O único problema é que seria preciso ser estudante ou idoso, para ter direito a ela.

O cidadão de classe média que não preenche os requisitos olha mais uma vez a propaganda do evento e reflete sobre o dinheiro que ele rende aos produtores, artistas e anunciantes. Acha que tem algo muito injusto nisto. Como aceitar uns com tanto e outros com tão pouco? Que sociedade é esta em que uns têm Ferraris e ele não pode ver um filminho com a namorada? Que lei é esta que protege os milionários, ostentadores de riquezas e não lhe permite ouvir Chico? É hora de se rebelar. Vou pagar meia, de qualquer jeito! Nasce, então, uma carteira de estudante falsa.

Não há nada de errado em violar uma norma, já que a desigualdade é flagrante. Sem contar que não existe outra alternativa. É a ganância de uma elite, apoiada ou ignorada pelos péssimos governos, a responsável por esta situação. É inexigível de qualquer pessoa normal que deixe de se divertir, para proteger a riqueza de quem já é rico. Além do mais, há coisas muito mais importantes para a polícia perder tempo perseguindo falsidade de carteirinha.

As instâncias de controle devem estar atentas, isto sim, com aquelas pessoas que olham de soslaio para os frequentadores de meios culturais, com suas carteirinhas falsas. Aqueles mesmos que começam a julgar muito injusto só ganharem um salário mínimo, enquanto o cara da fila do teatro recebe 10,20,30 vezes mais. Os mesmos que perguntam que tipo de sociedade é esta em que uns usam celulares, vestem roupas de marca, compram carros do ano e assistem Ivete Sangalo, enquanto eles não podem pensar em pagar meia entrada no cinema. Nem na quarta-feira! 

Polícia foi feita para os vagabundos que um dia indagaram a legitimidade desta lei, sempre protegendo os riquinhos de classe média, ostentando suas posses, mas que não lhes permite obter aquele tênis do comercial. É para os malandros que decidiram  que é hora de se rebelar e comprar o que queriam, de qualquer jeito. Um grupo de pessoas, cada vez aumentado, pondo em risco toda a sociedade, que culpa a ganância e os maus governos pela solução que encontraram. Afinal de contas, ali nasceu o traficante, ou o ladrão.

Ps: Para fins desse texto, a sua carteirinha de estudante obtida porque você faz curso de inglês, francês ou academia é tão falsa quanto nota de três reais.


sexta-feira, 29 de março de 2013

Que tipo de Jornalismo?


Em 25 de março, o programa CQC, da Rede Bandeirantes, exibiu quadro, anunciado como a primeira vez em que o Deputado José Genoíno falaria com a sua equipe. O parlamentar foi condenado pelo STF, no julgamento do "mensalão". Como até hoje o acórdão não foi publicado, assumiu o mandato para o qual foi eleito e conquistou vaga na Comissão de Constituição e Justiça. A situação é estranha e um campo rico para um bom jornalista elaborar profundos questionamentos sobre os nossos sistemas jurídico e político.

Por mais interessante que seja o tema, entretanto, ninguém é obrigado a dar entrevistas. Se até mesmo no processo penal, o réu tem direito ao silêncio, imagina quando chamado a dar declarações por um veículo de comunicação. Infelizmente, para a emissora, por alguma razão, o parlamentar não gosta do programa e se recusava a falar com ele. a negativa, todavia, foi contornada de maneira polêmica. O petista foi enganado e entrevistado por uma criança, sem saber que ela atuava para a Tv.

É muito claro que o garoto foi usado como ferramenta, para violar o direito que todos têm, inclusive os réus ou condenados, mesmo em casos de repercussão. Não foi só anti-ético, foi ilícito, passível de indenização. Algumas pessoas podem argumentar que isto faz parte do papel do jornalismo: investigar e trazer as notícias relevantes. Seria aceitável e até recomendável o uso de subterfúgios, para desnudar fatos relevantes. É uma boa tese, mas para justificar a hipótese analisada, precisava passar por dois filtros: a) O CQC é um programa jornalístico? b) Havia algum interesse público?

Não sou especialista no assunto, mas a própria Rede Bandeirantes, pronunciou-se sobre e respondeu a primeira questão: "o CQC é um programa com o foco acentuado no humor, não pretende ofender o público e sim entretê-lo. Mas, como toda atração que trabalha com esse gênero, corre o risco de desagradar algumas pessoas" (veja aqui ). Logo, trata-se de um humorístico. A função social do jornalismo, portanto, não o protege.

Entretanto, ainda que fosse uma atividade de imprensa, qual seria o interesse público ou a denúncia apresentada? Para descobrir, é recomendável analisar as perguntas feitas pelo comediante: 
1) Você veio aqui se esconder, porque lá na prisão é pior, tem menos bandidos, é mais fácil? 
2) Tá fazendo voto de silêncio? Vai ser bom na prisão, lá X9 se ferra. 
3) O senhor não está chateado porque o Maluf não foi preso, condenado e o senhor tá aí? 
4) Genoíno, você vai passar aonde o revellion? Na Papuda? Já sabe qual prisão? 

Nada é investigado.  Nenhum fato novo é apresentado. É bastante impróprio igualar isto a uma matéria em que, disfarçado, um jornalista comprova a existência de um esquema de propinas em cartórios, com a participação da polícia ( leia aqui). Neste caso, a microcâmera é um meio para desvendar uma rede de crimes e, quem sabe, iniciar uma apuração pela justiça. Naquele, o uso da criança para ludibriar Genoíno era um fim em si mesmo. Tinha como única intenção escarnecer dele.

O que programa da Bandeirantes fez pode ser comparado a outro tipo de utilização da Televisão, que também se diz jornalismo e tenta ser engraçado, mas tem o mesmo propósito: constranger e humilhar. A emissora conhece bem o assunto, porque, na sua filial baiana, demitiu uma funcionária que fez o mesmo tipo de perguntas. Ela somente não tinha a mesma fama e nem atraía tantos patrocinadores. Falar a um condenado que "na prisão X9 se ferra" não é muito diferente de rir de uma pessoa presa, porque ela não sabe falar "próstata" ( detalhes aqui ). As duas práticas são iguais e inaceitáveis.

sábado, 23 de março de 2013

Conluios


Joaquim Barbosa, durante sessão do Conselho Nacional de Justiça, afirmou que não havia nada mais pernicioso que o conluio entre juízes e advogados. Em resposta, o desembargador Tourinho Neto disse que não via nada demais na amizade dos julgadores e os causídicos. Lembrou que ele mesmo, quando magistrado no interior, bebia na casa de um ou de outro. Como o diálogo aconteceu durante julgamento de suposto caso de corrupção, presume-se que"conluio" não foi usado no mesmo sentido pelos dois. O segundo falava de relações fraternais, enquanto o primeiro de relações escusas.

Todos os juízes têm amigos advogados. Preocupante seria se não tivessem. Eu teria muito medo se soubesse que o meu problema seria julgado por alguém que, após 05 anos de faculdade de direito, não se dá bem com ninguém que virou advogado. Alguma coisa estaria errada em tamanha dificuldade de convívio. Logo, exigir o isolamento absoluto seria absurdo e impossível.

Isto não significa, entretanto, que seja natural o juiz do interior sair "bebendo na casa de um ou de outro", especialmente porque, em regra, conheceu a cidade e os advogados referidos, apenas por exercer o cargo. Ou o julgador é tão cego e vaidoso quanto o jogador de futebol que, cortejado pelas mulheres mais belas, pensa que fica mais lindo a cada gol, ou percebe que o assédio aumenta em razão da busca por influência nas decisões. Sob esta ótica, Barbosa teria certa dose de razão.

O Ministro esquece, todavia, que existe, quase sempre, uma amizade muito mais intensa que esta, também iniciada exatamente em função dos cargos que as partes ocupam. Sugiro que se pesquise, nas comarcas do interior, como as citadas pelo desembargador, quem é o melhor amigo do juiz. Não será nenhuma surpresa se em mais da metade delas a resposta seja a mesma: o promotor.

Normalmente, quem sussurra no pé do ouvido do juiz, até porque senta do lado dele, é o membro do Ministério Público. Quem almoça, viaja junto, bebe, liga para o telefone pessoal, toma cafezinho no gabinete e até divide casa com o magistrado não costuma ser o advogado. É muito mais comum, portanto, a influência nos bastidores, sem a outra parte saber, ser exercida por procuradores da república, como Barbosa sempre foi, do que por advogados.

Talvez, ele esqueça esse detalhe porque, apaixonado pela sua carreira de origem, alimente o delírio de que no Ministério Público todos são honestos, bem intencionados e, acima de tudo, justos. Assim,  jamais tentariam influenciar malevolamente uma decisão, porém, apenas fazer justiça. Em resumo, como um lado representa "o bem", não tem problema. Superada a ingenuidade e o maniqueísmo infantis, aprendemos a duvidar da bondade dos (que se acham) bons e a perceber que nem todos os males são feitos com más intenções. Além de notar que intenções escusas são encontradas entre advogados, entre juízes, entre defensores públicos, e, também, entre membros do Ministério Público.

Então, chegamos à segunda interpretação de conluio: não mais a mera influência de bastidores, mas a influência por corrupção. O Presidente do Supremo, talvez, identifique a compra de sentenças como o que há de mais pernicioso na justiça brasileira. Antes de mais nada, é preciso reconhecer que existem, sim, decisões suspeitas. Elas podem ser vislumbradas de maneira mais fácil do que se imagina. Pensemos, por exemplo, em decisões liminares, autorizando que construtoras procedam a derrubada de árvores, negada pelos órgãos ambientais, proferidas na véspera de um feriado. Antes mesmo que o Estado saiba e possa recorrer, a vegetação vai embora e se perde o objeto. Melhor apurar casos como esse que apontar o dedo indistintamente.

O erro de Barbosa é generalizar suspeitas, fazendo parecer que todos ou a maioria dos juízes e advogados são desonestos. Este caminho é fácil porque, em erro primário, repetimos que o grande problema de tudo é a "impunidade" e os "níveis alarmantes" de desvios. Segundo este pensamento simplista, a solução para tudo seria mais penas e penas mais severas. O herói seria aquele que parece mais duro e intransigente na luta contra os malvados. O maior legado que Joaquim Barbosa e Eliana Calmon poderiam deixar para a justiça brasileira seria o aprendizado, pelos juízes, de como é inadequado um julgador tendente à acusação.

Desta forma, seguimos nos limitando à caça de problemas conjunturais e esquecendo completamente a estrutura. O que há de mais pernicioso na justiça não são as amizades, nem os casos de corrupção. Muito piores são a estrutura ritualística, que faz do processo um labirinto. São as vestes que transformam os juristas em semi-deuses. É a linguagem pernóstica (que não tem nada a ver com técnica) que torna os conteúdos das decisões e das petições enigmáticas. É, principalmente, a distância entre a justiça e os pobres, que gera a incompreensão das suas famílias pobres, suas casas pobres, suas ocupações pobres, seus vocabulários pobres, suas educações pobres, suas aspirações pobres, suas perspectivas pobres para o futuro e as soluções pobres que precisam encontrar para suas tragédias. O que temos de pernicioso não é um sistema de justiça corrupto e sim um sistema de justiça elitista.


segunda-feira, 18 de março de 2013

Não Insista!

A loja estava aberta. E prosperava. Naquele momento, um policial fardado deixava o recinto, levando a sua mercadoria. O dono se orgulhava de ter excelentes relações com diversas autoridades: citava o promotor mais antigo da cidade, citava o prefeito, ex-prefeitos, deputados federais e estaduais, muita gente importante.

O cliente esperava na fila e não podia deixar de ouvir a conversa. Agora, tratavam do aumento da bandidagem. Era uma consequência da degradação moral, da ausência de família, da falta de religiosidade e, principalmente, das pessoas, cada vez mais vagabundas. Não havia mais respeito. Tudo era agravado pela impunidade.

As soluções eram claras: redução da maioridade, penas maiores e mais aflitivas, o fim das benesses que os acusados possuem. A lei era feita para que ninguém fosse punido. Era necessário, também, a internação compulsória dos drogados, grande chaga social. Se bem que o melhor era a prisão mesmo. Para traficante, pena de morte, pois era o pior vilão do século XXI.

O importante, diziam, era garantir a paz dos cidadãos de bem, cumpridores da lei, respeitadores da ordem. O proprietário se queixava por terem tirado dele o direito de se defender. Os honestos não podem usar armas, mas os marginais, sim. Fazia o possível para garantir a incolumidade do seu comércio. Para tanto, instalou câmeras, com a função de identificar os elementos que quisessem furtá-lo.

Explicava, com muita ênfase, que degenerados tinham o hábito de fazer pequenos desfalques. Surrupiavam pequenos objetos, enquanto ninguém via. Um único bem daquela espécie tem pequeno valor e parece insignificante, contudo, a soma dos desvios seria absurda e impediria o bom funcionamento da economia. Os vídeos, assim, evitavam esta tragédia, além de garantir o castigo dos safados.

Ao chegar à caixa, o cliente notou um cartaz colado à parede. Talvez, pudesse até ser visto por uma das câmeras. Certamente, foi notado também pelo policial que deixara o recinto, assim como pelos clientes célebres citados pelo proprietário. Era uma advertência, em letras garrafais, aos clientes da loja, para evitar aborrecimentos.

NÃO EMITIMOS NOTAS FISCAIS.
NÃO INSISTA!

Curioso, o cliente, fez-se de desentendido e pediu a nota fiscal. Para testar. Foi-lhe apontado o aviso, sem a necessidade de mais nenhuma palavra. A regra era clara e fixada previamente.

Pôde, então, respirar tranquilo. Esta é a vantagem dos cidadãos de bem: sempre respeitam as normas.


segunda-feira, 11 de março de 2013

O Calendário de 1938

Revendo petições antigas, elaboradas em outros tempos, quando trabalhava em outro local, encontrei esta. Talvez, seja um resumo do problema da mecanização da justiça. Talvez, seja um problema da sobrecarga de quem trabalha com ela. Talvez, seja um problema de falta de sensibilidade. Seja como for, é algo a se refletir.



EXMO(A) SR(A). DR(A). JUIZ DA...








******, já qualificado nos autos do processo *****, por intermédio do Defensor Público infrafirmado,  vem, respeitosamente, manifestar-se em relação ao despacho de f.15, determinando a manifestação de interesse no feito, em 48 horas, sob pena de extinção.

1. Interesse no Feito.

A parte autora jamais procurou a Defensoria para informar que desistia, de modo que, presume-se que permanece interessado no feito.

2. Paralização do processo por 05 anos, para provar que um ano foi bissexto.

O presente processo começou a tramitar em ****. Em síntese, o autor alega que sua certidão de nascimento informa que ele nasceu em 29 de fevereiro de 1938, quando ele, na verdade, nasceu em 28 de fevereiro de 1938. Diz ainda que em 1938 nem sequer houve o dia 29 de fevereiro.
10 meses depois, abriu-se vistas ao MP. O parquet pediu para que aparte autora provasse que no ano de 1938 não existiu o dia 29 de fevereiro “trazendo, aos autos, o Calendário do ano de 1938”(f.06).
Por incrível que pareça, a Exma Juíza deferiu o pleito (f.07), em ***** (quando o processo completara 01 ano).
Mais 11 meses depois, o processo foi ao MP, sem passar pela Defensoria. O MP reiterou para que se cumprisse o despacho, provando que o ano de 1938 não foi bissexto (f.08).
Em ****, mais 04 meses depois (02 anos e 03 meses no total), ato ordinatório assinado pelo escrivão determina que se intime a Defensoria Pública para fazer a prova (f.09).
Em ****, também de forma surpreendente, a Defensoria pediu a suspensão do processo, até a parte trazer o tal calendário (f.10).
Em ***, o processo foi suspenso (f.11).
O tempo passou e como era de se esperar, o autor, lavrador idoso e pobre, não encontrou nenhum calendário de 1938.
Hoje, 05 anos, 01 mês e 01 dia após a inicial, o kafkiano processo estancou no início, em uma surreal busca da prova de que um ano não foi bissexto.
Em tempo, o autor nasceu em 28 de fevereiro de 1938. Tinha, na época da propositura da ação, *** anos. Hoje, se estiver vivo, possui *** anos. E todas as instituições estatais que participaram no processo (Defensoria Pública, Judiciário e Ministério Público) serão responsáveis, caso ele tenha falecido ou venha a falecer, sem ter o pleito atendido.

3. Paralização do processo por 05 anos, para provar ano é bissexto.

É regra básica do nosso sistema probatório que o fato notório não depende de prova.
Art. 334. Não dependem de prova os fatos:
I - notórios;
II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;
III - admitidos, no processo, como incontroversos;
IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.
(Código de Processo Civil)

Como todos nós aprendemos no primário, só existe o dia 29 de fevereiro, nos anos bissextos. Ele é consequência do fato de que um ciclo de translação (que marca o ano) dura, na verdade, 365 dias e 06 horas. Para facilitar o calendário, convencionou-se, que o ano terminaria em 365 dias, mas de 04 em 04 anos (04 x 06 = 24 horas) haveria um dia extra, o 29 de fevereiro. Pode parecer que este parágrafo falou de coisas óbvias, mas, na verdade, falou de coisas notórias.
Para saber se o ano de 1938 foi ou não bissexto, há várias formas, que prescindem do calendário. A primeira delas, em tempos de internet, é pesquisar no Google (sugiro como chaves de pesquisa as expressões “como saber se um ano é bissexto” ou “1938 foi bissexto”). Este site, por exemplo, tem um programa só para determinar se qualquer ano foi bissexto: http://www.webcalc.com.br/frame.asp?pag=http://www.webcalc.com.br/datas/bissextos.html
Existe também uma fórmula, explicada no primário, que diz serem bissextos os anos divisíveis por 04 (por exemplo, 1936 ou 1940), exceto terminados em centenas, a não ser que divisíveis por 400 ( por exemplo 2000). É notório que 1938 não é divisível por 04 e não termina em centena divisível por 400.
Por fim, um método eficiente, para quem não lembrasse a lição da infância, seria pensar no ano bissexto mais próximo e ir subtraindo quatro. A sequência de anos bissextos regressivamente, então, é 2008, 2004, 2000, 1996, 1992, 1988, 1984, 1980, 1976, 1972, 1968, 1964, 1960, 1956, 1952, 1948, 1944, 1940, 1936. O ano de 1938 não está na lista, pelo fato notório de que não é bissexto.
Se 1938 não é ano bissexto, o que é notório, ele não pode ter o dia 29 de fevereiro. Isto também é notório. Se o registro de nascimento do autor diz que ele nasceu em 29 de fevereiro de 1938, é evidente que está errado e precisa ser retificado.
É hipótese, portanto, de julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330 do CPC.
Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
I - quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
II - quando ocorrer a revelia (art. 319). (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

4.  Idoso. Prioridade de Tramitação.

Por outro lado, é necessário ressaltar que o autor é, se continuar vivo após esses 05 anos, pessoa de 74 anos, conforme comprova o seu documento de identidade acostado aos autos, fazendo jus à prioridade do Estatuto do Idoso, nos termos abaixo colacionados:

“Art. 71 da Lei 10.741/2003: É assegurada prioridade de tramitação dos processos e procedimentos e na execução de atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância.”

5. Pedidos.

Diante do exposto, requer

a) a prioridade de tramitação, nos termos do art. 71 da Lei 10.741/2003;
b) o prosseguimento do feito;
c) seja o autor dispensado de trazer aos autos o calendário de 1938, pois o fato a ser provado com ele é notório;
d) o julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330, I, do CPC;
e) a retificação do registro do autor, nos termos pedidos na inicial.

Neste Termos. Pede Deferimento.

********************.

RAFSON XIMENES
DEFENSOR PÚBLICO 

segunda-feira, 4 de março de 2013

O Inferno são os outros. Agora, em garrafas.


Varonil chegou apressado, mas se tranquilizou ao olhar o relógio. Embora o coro lá estivesse há um bom tempo, ensaiando para a abertura, cumpria o horário. Felizmente, o estacionamento era adequado para a grandiosidade da celebração. Existiam cerca de 400 automóveis no local, o que já era esperado, pois o público e os organizadores, juntos, somavam quase 500 pessoas.

Pensou na importância de se verificar antecipadamente o espaço destinado aos veículos. Hoje, qualquer empresa ou instituição que se preze precisa tomar certos cuidados. Na sua antiga faculdade, por exemplo, reinava o caos. Os estudantes eram obrigados a chegar bem mais cedo, ou a se arriscar, parando o carro muito longe. Imprudência da direção, afinal, onde existem 600 docentes, não podem haver apenas 300 vagas. Não é óbvio que 300 sempre sobrarão?

Nem tudo são flores, todavia. Se no estacionamento, os organizadores foram muito felizes, em outros aspectos foram deploráveis. O horário foi completamente inadequado. Plena hora do rush! É impossível chegar em qualquer lugar, sem se estressar. É até mais rápido ir a pé. O pior de tudo é olhar o velocímetro e notar que a máquina projetada para atingir 250 quilômetros por hora não consegue passar de 20! Pelo menos, não há risco de multas, que seriam inevitáveis, uma vez que, no país, não existe nenhuma via que admita aquela velocidade.

Mais sorte teve o Otávio. Pelo menos, desta frustração se livrou. Com o carro na revisão, saiu com o da esposa, que tem o motor 1.0. Porém, esta vantagem não é reconhecida por ele. Além de lamentar o preço cobrado, sente-se meio exposto e envergonhado, em um carro pequeno. Preferia pegar emprestado o que comprou para o filho, quando ele completou 18 anos. Mais potente, maior e mais másculo. O que se chama de "carro de patrão"! Contudo, o menino precisava dele para ir à academia. E, hoje, especificamente, não poderia pegar carona com a irmã, pois pretendia caminhar 30 minutos a mais, na esteira.

Durante a viagem, esforçava-se para esquecer o vexame. Era melhor se concentrar na estratégia de sobrevivência no asfalto que Carlos, outro colega, o ensinara. Consistia em pular de um caminho a outro e dançar entre as faixas, em busca de uma via menos lenta. Há algum tempo, desconfiava que não funcionava bem, quando praticada sem método. Corria o risco de somente aumentar as distâncias, trocando um congestionamento pelo outro. Por isto, ouvia sempre o rádio, à espera dos informes sobre o trânsito, para facilitar.

Érica não pensava do mesmo modo. De que adianta falarem do tráfego se sempre o conteúdo das notícias é o mesmo? Todas as vias estavam engarrafadas, em qualquer horário de qualquer dia. Optava por ouvir música. A mais tranquila possível, pois se escutasse algo agressivo, xingaria todos os outros que estivessem no caminho. Lamentavelmente, sua tática era tão ineficaz  quanto a do amigo. Por mais que João Gilberto entrasse pelo seu ouvido, era Metallica o que saía pela sua boca. O barquinho pode até ir, mas quando a tardinha cai, o carrinho está parado. Matem eles todos, pensava.

Desconfiava da razão do problema: Hoje, todo mundo tem carro. O porteiro do prédio dela vai ao trabalho dirigindo. O mestre de obras tem carro. Quando o presidente reduziu o IPI, tudo se agravou. Além dos financiamentos já serem acessíveis, os preços ainda baixaram. Chegava a ser quase uma irresponsabilidade esta política que facilitava a aquisição de automóveis. Apenas não a odiava por completo, porque sem ela não conseguiria comprar o seu segundo veículo. 

Lembrou, então, de culpar a faixa exclusiva para ônibus. Era inadmissível que as pistas, já estreitas, possuíssem um espaço reservado para o transporte coletivo. Para piorar, os motoristas invadiam as faixas restantes, tumultuando ainda mais a rua. Logo, devido a esta política, agora sim, sem dúvidas, irresponsável, os ônibus, espertinhos, andam depressa, enquanto os condutores, que pagavam os mesmos impostos, ou mais, são prejudicados. É o bolsa-buzu, puro populismo!

 Assim como Érica, Solano também concluíra que o governo favorecia quem andava de ônibus. Ele mesmo,  acharia melhor andar de coletivo, entretanto, todos sabem que isto é impossível nos dias de hoje! É verdade que a maior parte da população não possui carro, mas, convenhamos, não dá para comparar. Cada extrato social tem as suas peculiaridades e é capacitado para sobreviver a situações diversas. Pobre suporta ônibus. A classe média suporta os engarrafamentos. Assim como peixe nada, cachorro anda e ave voa. Sorte dos ricos, que usam helicópteros.

E ainda tem a questão da segurança. Quem tem coragem de andar na rua? Vejam as calçadas, totalmente desertas! Como todos acompanham os jornais, todos sabem que, ao sair a pé, você corre o risco, aliás, quase uma certeza, de ser assaltado e sequestrado. Isto se não for estuprado e assassinado, em plena luz do dia. Os bandidos são muito ruins. Mesmo que a violência sexual  e morte não ocorram, será muito difícil seguir a vida sem aquela nota de cinquenta que estava no bolso. Ou, pior ainda, sem o celular. São perdas irreparáveis. Como todos são prevenidos, todos ficam nos carros. Se todos estão nos carros, ninguém está na rua. Só caminham por aí o medo e os marginais.

Os amigos se encontram, felizes por terem comprado seus carros e mais ainda por serem visto com eles, mas infelizes sempre que os usam anonimamente. Contrariando as expectativas, ainda têm um tempinho para conversar, antes do início das atividades. Em frente ao espelho do saguão, apontavam, irritados, justificativas para os seus terríveis dramas existenciais. Após as reclamações de praxe, alguém pergunta como estava aquele rapaz que deixara a firma, há alguns anos. Solano rindo, comentou que ele, agora, usava uma bicicleta para ir ao trabalho.

Varonil estalou a língua, sucessivamente, no céu da boca. 
Otávio balançou a cabeça, com desprezo. 
Carlos mirou o céu, enfadado. 
Érica se repreendeu, mentalmente, por ter se envolvido em um breve romance com ele.
Solano teve a honra de finalizar o assunto, com a unânime e entusiástica aprovação dos demais:

- Paciência, companheiros. A esta altura, o pé deve ter se transformado em um grande calo. E ele pensa, seguramente, que é um monarca, como Luis XVI, ou até Napoleão. Não percamos tempo com malucos.


sábado, 2 de março de 2013

Ócio Criativo


Há alguns anos, as mulheres não trabalhavam. Hoje, trabalham. O percentual da população economicamente ativa, então, dobrou, certo?

Há alguns anos, não dispunhamos de muitas inovações tecnológicas que auxiliam o trabalho de hoje. A produtividade de cada pessoa economicamente ativa, então, expandiu-se, certo?

Há alguns anos, a jornada de trabalho era de 08 horas diárias e as férias de 30 dias. Hoje, com maior proporção da população economicamente ativa e com maior produtividade por pessoa, todavia, nada mudou.

Não dá para intuir que alguma coisa não fecha nesta equação?

E apesar da contradição ser tão clara, vemos tantos empregados, quase que com fanatismo religioso, apontando como problemas sociais o "excesso de feriados", ou a "preguiça" (dos outros), que trabalhariam muito pouco.

Acho que alguém ganha com isto. E não é você.

" A cultura americana usou os docentes de administração como a cultura cristã usou os pregadores, os missionários".


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

João Grilo e as Simbologias dos Tribunais.



Uma das maiores obras da literatura, O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito originalmente para o teatro, ganhou diversas versões, para o cinema e a televisão. É uma obra, muito engraçada, que aborda as peripécias de dois pobres sertanejos, João Grilo e Chicó, tentando sobreviver com esperteza, em meio à pobreza geral à sua volta. O clímax acontece quando alguns dos personagens são julgados, por Deus. Além de risos, pode provocar reflexões. 

O filme, como de regra, faz com que nos identifiquemos e torçamos para os protagonistas. Assim, tudo é retratado pela ótica deles, inclusive o julgamento. E aí, começam os choques, para o público médio consumidor de cinema, literatura e até mesmo de seriados sobre crimes. Normalmente, a persecução penal é tratada com a visão da classe média ou da classe alta. No Auto, por sua vez, é imaginado um processo desejado pelo pobre, que, normalmente, é o réu.

Logo de início, a primeira diferença com o imaginário comum. O acusador é o diabo. A defesa é feita por Maria, a mãe de Jesus. Estamos acostumados a tratar os promotores como heróis, justos e corajosos e os advogados como corruptos, mentirosos. Mas, aqui, a lógica é invertida, brutalmente. Para não deixar dúvidas, João Grilo chega a constatar que o demônio é uma mistura de tudo o que ele não gosta:  "promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia".

Evidentemente, a obra não afirma que promotores e policiais são o retrato do mal, nem que defensores são santos. Mas, diz, sim, que na perspectiva de uma parcela considerável da sociedade, os primeiros são temidos. Não há, no filme, ou no livro, nenhuma sugestão de que João Grilo seja um réu habitual, portanto, esta parcela não é composta apenas por "presos" ou "criminosos", mas, sim, pelos pobres. Quem se sente ameaçado pela justiça seletiva sabe que muitas prisões são violentas, abusivas e que os acusadores podem ser muito cruéis e insensíveis aos seus problemas. E todo o pobre sabe que é um potencial alvo.

O acusador também não parece nada imparcial. É nítido que ele faz o possível para obter a condenação, mesmo esquecendo alguns princípios básicos de direito penal. Por exemplo, o diabo tenta aplicar a sanção e levar os réus ao inferno, mesmo sem julgamento. Lembra muito a prisão provisória. Depois, não se incomoda com o fato de que eles não tiveram "defesa técnica", até quando João Grilo convoca Maria para falar por eles. Na ótica dos pobres, não existe a figura do "fiscal da lei", neutro, praticamente um segundo juiz, que filmes, matérias sobre o crime e juristas ingênuos ou cínicos atribuem ao Ministério Público.

Aí, entra uma outra inversão muito significativa. Ao contrário do que acontece nos nossos tribunais, é a advogada de defesa, ou Defensora Pública, Maria, quem se posta no alto, ao lado do julgador. O acusador está lá embaixo, afastado. A troca de posições é importante para entender a reclamação quanto a geografia das salas de audiência, com promotores coladinhos aos juízes. O magistrado mantém, na estrutura do filme, uma notória cumplicidade com a defesa, enquanto trata a acusação de modo irônico, depreciativo e desconfiado. Em diversos momentos, antes de decidir, pergunta se a solução satisfaz Maria. Não é preciso muita experiência forense, para notar como a nossa prática é exatamente oposta.

Há ainda outros sinais de como seria diferente um julgamento, construído pela perspectiva dos pobres: o juiz é negro, já condenado e pobre. É capaz de se por na posição dos réus. Assim, Suassuna demonstra como o sistema judicial é composto de vários elementos, que criam um ambiente hostil aos réus e à defesa. E mostra, principalmente, que esta hostilidade se esconde tão bem atrás de togas, paletós, costumes, tradições, palavreados vazios, que é, cotidianamente, ignorada e reproduzida. Mais que isto, aqueles que a denunciam são considerados chatos e impertinentes.