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domingo, 17 de novembro de 2013

Rubens no Casório


Todos os dias, Rodrigo acompanha os ponteiros do relógio. Espera a hora de arrumar as coisas e sair do trabalho. O que importa é ir embora, após mais um longo dia em que, mesmo sem ter feito nada de útil, leva a sensação de ser produtivo. Sem paradas em bares e sem conversas, o destino é o lar. A família é a base da sociedade.

Em casa, antes de qualquer boa noite, segue apressado em direção à cozinha. Logo, volta, irritado, reclamando da esposa. O café está frio, a sopa está fria e o pão está frio. Apenas a televisão continua quente. Senta no sofá, pega o controle remoto e sintoniza no jornal. O apresentador anuncia as notícias de ontem e prevê um amanhã tenebroso, igual ao que imaginou ontem.

Popopopó...
A Galinha Pintadinha e o Galo Carijó...

A mulher se aproxima e tenta narrar o seu dia. Psst! Estou vendo o noticiário, interrompe Rodrigo. Felizmente, vai começar a novela. Disso ela gosta muito e senta com o companheiro. Para angústia dos dois, antes, vem o intervalo. Ninguém gosta das propagandas, mas já que elas existem, o casal assiste com atenção. Pela milésima vez no dia, passa a propaganda da loja de roupas.

A galinha usa saia
e o galo, paletó...

Rodrigo avalia se o seu vestuário continua respeitável. A esposa acha que seus sapatos estão velhos. Finalmente, tem início o último capítulo. É chegado o grande dia em que se confirmará aquilo que todos leram no caderno de novelas. O mocinho salvará e casará com a mocinha. O vilão morrerá ou será preso. Todos os personagens simpáticos acharão um par, ficarão ricos e serão felizes. Silêncio! Começou!

Borboletinha tá na cozinha
fazendo chocolate para a madrinha...

Que bobagem, diz o marido. A mulher chora, emocionada. Mas, não há tempo para lamentações e sensibilidades. Eles têm um compromisso. Festa de casamento do filho do colega de trabalho, que eles sequer conhecem, com a noiva de quem não lembram o nome. Mas, o presente foi comprado, através da lista do casamento passado.

Zelosa e respeitosamente, acompanham a cerimônia. No íntimo, ambos esperam a cerimônia e não veem a hora de degustar e falar mal dos mesmos salgadinhos, das mesmas bebidas, das mesmas músicas e das mesmas decorações de todos os casamentos, formaturas e festas de quinze anos do ano. Talvez, dos últimos quinze anos.

Mariana conta um
Mariana conta um, é um, é um, é
Ana viva a Mariana...

Os amigos repetem o jornal, comentam a novela, emulam os comentaristas de futebol e reproduzem as mesmas piadas que viram, ao mesmo tempo, em apartamentos iguais, nos mais diversos edifícios. O equilíbrio é quebrado com a chegada de Rubens no casório. O mundo de Rodrigo é constante, no agir e no pensar. O de Rubens é mais complexo. As verdades em que todos acreditam, para ele, parecem falsas. 

Rubens faz perguntas sobre o sistema econômico. Aponta números, faz comparações. Rodrigo e os amigos respondem, em coro:

Poti, poti
Perna de pau...

Rubens vê contradições nas religiões. Cita passagens bíblicas, lembra atos dos sacerdotes. Fala sobre bruxas, fogueiras e até Jesus. A turma se ofende e contesta, irritada.

 Mariana conta dois
Mariana conta dois, é dois, é dois, é
Ana viva a Mariana...

Rubens fala sobre racismo, prisões, cotas e critica os humoristas orgulhosamente politicamente incorretos. Lembra da escravidão, de Hitler, de Malcom X, cita Mano Brown. O coro reage.

O doutor era o peru (glu glu)
A enfermeira era o Urubu...

E a conversa segue. Rubens analisa feminismo, política de drogas, médicos estrangeiros, manifestações de rua, cinema, música.... O grupo responde com olhos, vidros, narizes e pica paus (paus, paus). Para alívio de muitos, até que em fim, estranho vai embora. 

Não gosto dele, é um intriguento, diz Rodrigo. Sempre vem com esse discurso bonito e faz parecer que o errado é o certo, ou que nós, os certos, somos tão errados quanto os errados. A mulher não responde. Está, estranhamente, reflexiva. Parece um pouco aturdida.

No dia seguinte, o casal assiste o primeiro capítulo da nova novela, que lembra muito o último da velha. O silêncio dos anos anteriores parecia destinado a durar até a eternidade. Mas, ela ainda ouve a conversa de Rubens. De repente, Rosa, desafiadora, olha para o marido e dispara: Por que é justamente a borboletinha que está na cozinha? Por que o Urubu pode ser enfermeira, mas não médico? Por que Mariana conta, conta e não faz nada?

Rodrigo sabia que isto podia acontecer. Por isto, odiava e temia Rubens. Rubens sabia que isto podia acontecer. Por isto, desprezava e enfrentava Rodrigo. Ele tinha consciência de que não estava sozinho e que muitas Rosas despertam a cada minuto. Tranquilo, lembra dos preconceitos e do conformismo de Rodrigo e seus seguidores. Pensa, então, com sigo mesmo:

Não, vocês não passarão.