Em meio a um congresso de Direito, um médico aparece para palestrar. Aparentemente, ele achou que falava para estudantes e profissionais de medicina, acostumados a ver sangue, fraturas expostas, tripas, intestinos, em fim, o nosso corpo por dentro. Juristas não são treinados para isto.
Nas faculdades e na prática do direito, tenta-se ver o mundo com base na ficção da ordem absoluta. Tudo está no se belíssimo local. Quem desafia esta ordem é considerado um tumor malígno a ser extirpado ou, no mínimo, um órgão defeituoso a ser corrigido, com base em alguns antibióticos, cheios de efeitos colaterais.
As ações que se pretendem curativas, porém, são feitas sem olhar e sem chegar perto do suposto paciente. São cirurgias feitas, apenas no papel, sem ver o corpo por dentro, sem sentir o odor, sem se aproximar de ossos quebrados. É algo mágico, infantil. Acredita-se que basta falar ou escrever as palavras mágicas e tudo mudou. Abracadabra, sinsalabim, o STF disse, então, é assim!
O médico explicava o procedimento para mudança de sexo e mostrava fotos sem censura: A pele da bolsa escrotal vira vagina, após vários cortes. Um pedaço de um braço vira pênis. A produção de alguns hormônios é inibida. Outros precisam ser fornecidos. Acrescentam-se peitos a uns, retiram-se peitos de outros. A plateia não consegue segurar as expressões de nojo. Arghhhh... Uuuuhhhh... Eca....
Mesmo com náuseas, todos veem o quanto a ciência avançou, para fazer as pessoas viverem bem com os seus corpos e as suas sexualidades. É extremamente doloroso o procedimento, mas é possível. São operações que parecem cenas ficções científicas. O acúmulo de sabe-se lá quantas horas de estudos e pesquisas permitiu este progresso maravilhoso, para fazer pessoas felizes.
Então, o médico diz que há ainda alguns problemas. Evidentemente, uma intervenção tão complexa no corpo humano não deixaria de ter obstáculos. Imaginávamos que tipos de doenças terríveis surgiriam, que decomposições apareceriam. Até que ele passou o slide. No topo da lista dos problemas das pessoas que se submeteram a esta maratona de modificações, após anos de intenso sofrimento e angústia, aparece o seguinte:
IDENTIFICAÇÃO CIVIL.
Subitamente, veio a incontrolável vontade de vomitar.
Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!
8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal
Brasileira.
As teorias das subculturas, em síntese, falam de grupos menores que,
sem desprezar os objetivos culturais da sociedade mais ampla,
estabelecem metas diferentes, que admitem como legítimos meios
rechaçados pelos demais. Descrevem também a distribuição
diferencial não só dos meios legítimos, mas também dos ilegítimos
e ainda falam das associações diferenciais que propiciam o
aprendizado de condutas ilícitas.
Novamente, o nosso modelo punitivo baseado na prisão, é
incompatível com essas assertivas. Com a segregação, desaparece
qualquer opção à criação de laços sociais entre os segregados,
que além de se encontrarem na mesma situação, possuem um inimigo
comum: o Estado que os pune. Nesta micro-sociedade, a sociedade dos
cativos1,
surgirão novas regras internas, novos valores.
De fato, como pode pretender a
prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio com
a sociedade e o incapacita, por esta forma, para as práticas de
sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social
quando é a própria prisão que o impele para a “sociedade dos
cativos”, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna
respeitável para a massa carcerária?2
O cativo tem acesso a novos meios para cometer crimes e possui um
campo amplo de aprendizagem e troca de experiências. Além disto,
conhece as normas da prisão e os meios de conviver melhor com elas.
Os que obtêm mais êxito nesse aprendizado, tornam-se líderes das
celas, dos pavilhões ou da unidade inteira. Assim, conseguem ditar,
ou liderar a nova ordem, estabelecendo e até positivando normas de
condutas. Um exemplo é a “Cartilha Ordem e Progresso”, elaborada
e impressa pelos internos da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.
Como qualquer código oficial, o
documento publicado pela comissão usa o tom jurídico para
estabelecer as regras. A diferença são os termos utilizados nos
tópicos. Nas leis da cadeia não há artigos, mas “Obediências”.
Em cada uma está prevista uma punição, como a que é direcionada
para os presos que “subtraírem” pertences de outros detentos.
“(...) para continuar a conviver em nossa comunidade, prestará
serviços de faxineiro na varrição do pátio e orar um Pai-nosso,
ou pregar os joelhos no chão”.
Entre outras coisas, a cartilha
traz regras de etiqueta para os dias de visitação, prevê punições
severas para agiotagem e é implacável com os presos que mantiverem
relações amorosas com ex- mulheres e familiares dos colegas.
Em alguns momentos, o código
parece ensinar ao Estado a melhor forma de ressocializar o
contingente carcerário. “O princípio básico do alicerce humano
reside na educação”. Uma das regras deixa claro que os
presos querem impor quais detentos devem permanecer em cada módulo.
A punição para quem faltar a “Obediência III” é a retirada do
preso do convívio dos demais, o que significaria a sua
transferência. “ O direito de defesa será dado ao acusado na
possível primeira falta. Na reincidência, deixará automaticamente
o nosso convívio”.3
Obviamente, as normas já existiam e eram aplicadas antes de serem
transpostas para o papel. No caso mencionado, o documento foi
apresentado a todas as autoridades, semanas antes de descoberto pela
imprensa. A administração prisional teve a honestidade de
reconhecer que era natural a existência de lideranças e negociações
dentro das prisões.
A disciplina, a segurança e a
relativa tranqüilidade nas prisões dependem fundamentalmente da
disposição da massa carcerária em cooperar. E como têm mostrado
vários estudos, não há cooperação sem negociação; e negociação
não se faz sem lideranças dentro da massa carcerária. A idéia de
que a autoridade legal, isto é, o próprio Estado através de seus
funcionários, se veja constrangida a negociar com foras-da-lei as
regras de aplicação da própria lei pode parecer um outro absurdo.
Mas trata-se simplesmente de mais um dos dilemas inscritos na
natureza das prisões: o poder total- ou à primeira vista, total- da
administração não tem como fugir à negociação e transigência.
A alternativa quase sempre será um nível de violência e repressão
que nenhuma sociedade poderá tolerar.4
8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal
Brasileira.
Para a teoria da anomia, os crimes derivariam, principalmente, da
discrepância entre os fins culturais e acesso aos meios legítimos
para alcançá-los. Sendo assim, haveria apenas dois modos de lidar
com a questão: reduzir os fins ou ampliar os meios.
A segunda alternativa é aparentemente levada em conta pela nossa
execução penal, pois em diversos momentos, a LEP se refere à
obrigação do Estado em fornecer cursos profissionalizantes e ensino
de 1º grau5.
O trabalho prisional (também obrigação do Estado) tem finalidade
educativa6.
Como estímulo à participação dos presos nestas atividades, ainda
oferece a remição da pena pelo trabalho e, desde 2011, pelo
estudo7.
A observação mais atenta da lei e da sua interpretação e
aplicação, porém, permite que se desfaça o engano. O ensino de 1º
grau, ainda que fosse de excelente qualidade, não seria apto a
preparar ninguém para almejar ocupações lícitas que permitissem o
acesso aos fins culturais. O jurista Gerivaldo Neiva, comentando
convênio celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a
Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP)8,
constatou que, segundo dados do Ministério da Justiça9,
75, 35% da população carcerária brasileira possuía, no máximo,
este nível educacional.
O problema é que o mercado,
mesmo para a construção civil mais pesada, anda a reclamar da
qualidade da mão-de-obra nacional. Sendo assim, o que o mercado e a
sociedade têm a oferecer para 93,27% da população carcerária
deste país, que mal sabem assinar o nome, além da reincidência?
Aliás, não é mera coincidência que o percentual de reincidência
(70% segundo o Ministro Peluso) seja parecido com o percentual de
detentos que apenas “desenham
o nome” (75,35%,
segundo o Infopen)10.
A oferta de cursos profissionalizantes também padece do mesmo
defeito. Não basta ter uma profissão, para ter acesso aos fins
culturais. É necessário que esta carreira ofereça vantagens
materiais e imateriais suficientes, para a aquisição dos bens
desejados. Uma propaganda do mesmo convênio entre Conselho Nacional
de Justiça e FIESP dá uma ideia de que ocupações são oferecidas,
pois o vídeo começa com uma placa anunciando vagas para servente,
pedreiro, carpinteiro e pintor11.
É sabido que as ofertas não são muito diferentes daquelas. São
cursos de costura, para as mulheres e de trabalhos braçais para os
homens. Nenhuma das atividades permite muitas perspectivas de sucesso
no nosso capitalismo. É evidente que não foi a impossibilidade de
trabalhar como pedreiro que levou aquelas pessoas a delinquir.
Retomando a classificação de Merton, continuará existindo a
inacessibilidade aos fins culturais, pelos meios legítimos.
Isso me leva a perguntar: será
o problema do criminoso um déficit
de socialização? Ou
será ele apenas mais um numa sociedade em que os vínculos éticos
estão destruídos? Nesse caso, que modelos propor a ele a fim de
“transformá-lo”, como desejam os ressocializadores? O do “bom
trabalhador”? Mas esse “bom trabalhador” é mesmo alguém
valorizado e desejado nessa sociedade? Tenho minhas dúvidas se falta
socialização ao criminoso ou, ao contrário, sobra.12
A remição da pena, que é o fruto específico do trabalho e do
estudo prisional é um instituto absolutamente precário. Ao cometer
uma falta grave o preso perde até 1/3 dos dias remidos13.
Por um lado, ofende-se o princípio da coisa julgada, já que pena
remida é pena cumprida14
e, deste modo, a sanção pela falta equivaleria uma nova pena15.
Por outro lado, retira-se o que foi conquistado pelo trabalho16
ou estudo, em razão de fato que muitas vezes não tem qualquer
relação com eles.
Punir este preso- disciplinado
no trabalho, indisciplinado no Pavilhão- com a perda dos dias
remidos significa não reconhecer o seu mérito por ter respeitado as
normas da instituição total num determinado espaço, pois o privará
dos frutos da atividade exercida nesse espaço em que teve bom
comportamento.17
Apesar de instituir o trabalho prisional como dever e direito do
preso, parece que apenas a primeira modalidade é levada a sério. O
ofício foi pensado primordialmente como punição, uma vez que o
parágrafo segundo do artigo 28 da LEP exclui os presos do regime
celetista. Eles não têm direito à férias, a 13º salário, a
repouso remunerado e nem sequer ao salário mínimo18.
A Constituição Federal19
garante a todos os trabalhadores, sem excepcionar os que estão
presos20,
aqueles direitos21.
Praticamente todos os juízes, promotores e, neste ponto, a grande
maioria dos defensores públicos aceitam passiva e acriticamente a
prevalência da LEP em relação à Carta Magna também nesta
situação.
Se os presos não têm direitos trabalhistas, como o “salário
mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a
suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo”, é forçoso concluir que não são
considerados trabalhadores.
De fato, quem é obrigado a trabalhar e, mais que isto, a trabalhar
recebendo apenas uma pequena ajuda de custo não é empregado. É
cativo, ou se preferir, escravo. Definitivamente, escravos não têm
condições de atingir os fins culturais aceitos pela sociedade. Com
a oferta de ensino primário, cursos profissionalizantes subalternos,
trabalhos precários e mais assemelhados à escravidão, talvez seja
mais correto imaginar que a proposta da nossa execução penal, no
sentido mertoniano, seja a simples transformação de pobres
inovadores em pobres subalternos conformados.
8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal
Brasileira.
A Escola de Chicago associou a criminalidade à desorganização
social e à degradação dos ambientes. Trouxe como principal
inconveniente a associação da delinqüência à pobreza. Uma
execução penal de acordo com aquelas ideias teria necessariamente
que prever formas de atuação nas comunidades de onde vêm os
apenados, de modo a fornecer saúde, saneamento básico, limpeza,
moradia digna, etc. Obviamente, nossas leis não prevêem nada disto.
Para produzir os efeitos colaterais, porém, temos dispositivos
bastante eficientes. Embora seja prevista na LEP a assistência
social 22,
a especificação das suas atividades esclarece que a função
primordial é avaliar e julgar o preso23.
Assim, os assistentes sociais terminam sendo obrigados a utilizar
todo o seu tempo para descrever as condições de moradia, ou
estruturação da família.
Os dados obtidos não são usados como ponto de partida para uma
atuação estatal firme nas localidades. Servem apenas como indícios
de impossibilidade de obtenção de direitos que concedem parcelas de
liberdade, como a progressão de regime, ou o livramento condicional.
Passa a existir uma inconstitucional presunção de culpa de futuros
delitos, a partir das condições sócio-econômicas degradadas.
Desperdiçando o potencial dos assistentes sociais, a redação
original da LEP e a interpretação francamente inconstitucional que
se faz dela e das suas alterações invertem a sua função social e
transformam o seu trabalho em mero instrumento de criminalização da
pobreza.
Aos assistentes sociais diante
desta realidade, cabe ocupar campo profissional, com responsabilidade
ética e política, colaborando com as transformações necessárias,
inserindo, como salienta Iamamoto (1992), “o novo fazer
profissional”, que para tanto, necessita negar a base tradicional e
conservadora, afirmando um novo perfil técnico, não mais um agente
subalterno ou apenas executivo, mas um profissional competente
técnica, teórica e politicamente.24
1
SYKES, Greshmam M. The Society of Captives- a Study of a
Maximum Security Prision. Princetown. Princetown University:2007.
Original publicado em 1958.
2
COELHO, Edmundo Campos. A Oficina do Diabo e outros estudos
sobre criminalidade.. Rio de Janeiro. Record:2005. P.32
Art. 126. O condenado que
cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por
trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da
pena. (Redação
dada pela Lei nº 12.433, de 2011).
I - 1 (um) dia de pena a cada 12
(doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino
fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou
ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3
(três) dias; (Incluído
pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 2o
As atividades de estudo a que se refere o § 1o
deste artigo poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por
metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas
autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados.
(Redação
dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 3o
Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias
de trabalho e de estudo serão definidas de forma a se
compatibilizarem. (Redação
dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 4o
O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou
nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição. (Incluído
pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 5o
O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de
1/3 (um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio
ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada
pelo órgão competente do sistema de educação. (Incluído
pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 6o
O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que
usufrui liberdade condicional poderão remir, pela frequência a
curso de ensino regular ou de educação profissional, parte do
tempo de execução da pena ou do período de prova, observado o
disposto no inciso I do § 1o
deste artigo. (Incluído
pela Lei nº 12.433, de 2011)
15BRITO, Alexis Couto de. Execução
Penal. São Paulo; Quartier Latin,
2006. P.251
A doutrina insiste que a remição não pode ser
considerada como simples abatimento dos dias trabalhados mas como
pena efetivamente cumprida
pelo sentenciado. Sendo assim, não nos parece correto desconsiderar
este período diante do cometimento de falta, o que seria
absolutamente contraditório àquela definição, pois a pena
efetivamente cumprida não pode ser reconsiderada para ser novamente
cumprida. O condenado estaria cumprindo duas vezes a mesma pena.
CHIES, Luiz Antonio Borges. Prisão:
Tempo, Trabalho e Remição. Reflexões Motivadas pela
Inconstitucionalidade do Artigo 127 da LEP e outros Tópicos
Revisitados. In Crítica à Execução
Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009. P.546
Com efeito, e o que é agravado pela realidade concreta do sistema
penitenciário brasileiro, o conteúdo do artigo 127 da LEP encontra
insanável vício, uma vez que afeta a segurança contratual daquela
que pode se considerar como a principal contraprestação devida ao
apenado trabalhador, na relação que estabelece com o Estado.
PRADO, Daniel Nicory. Perda dos dias remidos e o
princípio da proporcionalidade. IN XIMENES, Rafson Saraiva e
PRADO, Daniel Nicory do(Coord.). Redesenhando a Execução Penal.- a
superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade
Baiana,2010.p.183
20ROIG,
Rodrigo Duque Estrada. Ensaio sobre uma Execução penal mais
racional e redutora de danos. In Ideias para a construção de
uma Execução Penal mais democrática. 1.ed. Rio de Janeiro:
NUSPEN, Defensoria Pública do Rio de Janeiro,2010. p.34.
21 SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres
e Disciplina na Execução Penal. In
Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P.236
Art. 23. Incumbe ao serviço de assistência social:
I - conhecer os resultados dos diagnósticos ou
exames;
II - relatar, por escrito, ao Diretor do
estabelecimento, os problemas e as dificuldades enfrentadas pelo
assistido;
III - acompanhar o resultado das permissões de saídas
e das saídas temporárias;
IV - promover, no estabelecimento, pelos meios
disponíveis, a recreação;
V - promover a orientação do assistido, na fase
final do cumprimento da pena, e do liberando, de modo a facilitar o
seu retorno à liberdade;
VI - providenciar a obtenção de documentos, dos
benefícios da Previdência Social e do seguro por acidente no
trabalho;
VII - orientar e amparar, quando necessário, a
família do preso, do internado e da vítima.
24TORRES, Andrea Almeida. A
Lei de Execução Penal e as Atribuições do Serviço Social no
Sistema Penitenciário: Conservadorismo pela via da “Desassistência”
Social. In Crítica à Execução
Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009. Ps.202-203.
Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!
8. EXECUÇÃO PENAL BRASILEIRA.
Quando a lei de execuções penais (LEP)1,
o elemento infraconstitucional mais importante sobre o tema, no
Brasil, foi promulgada, a academia discutia outras teorias. Falava-se
sobre o nascimento da nova criminologia, que abarcaria a criminologia
crítica, a criminologia radical2
e a criminologia cultural e estudaria, de maneira mais profunda as
relações econômicas, as relações de poder3
e a perspectiva do estigmatizado sobre as normas e a sua violação4.
Nenhuma daquelas escolas, relativamente recentes na época, conseguiu
influenciar de modo significativo as regras que surgiam. Neste
trabalho, nos limitamos a verificar como a LEP e as suas posteriores
modificações e interpretações, recepcionaram as doutrinas da
antiga criminologia. Assim, será possível verificar não só se
temos uma legislação moderna hoje, mas se tínhamos uma legislação
moderna, em 1984.
8.1. De Olhos Fechados. Labeling Approach e Execução Penal
Brasileira.
O interacionismo apresentou alguns elementos chaves: a) a constatação
de que o aparato penal, ao perseguir e rotular alguém como
desviante, acaba por criar identidades das quais é difícil escapar;
b) as instâncias de controle atendem a diversos interesses pessoais
e se submetem a diversas pressões externas. Por isto, são
seletivas, arbitrárias e precisam ser vistas com desconfiança.
Quando pensamos na rotulação, é impossível negar que um dos
instrumentos mais eficazes para atingi-la é a prisão. É um
ambiente rigidamente controlado, com horários e atividades
determinadas por carcereiros e diretores, no qual é lembrada a
diferença entre os internos e os que estão do lado de fora, a cada
instante. A comunicação com o meio externo é limitada, punida e
até criminalizada. Vinte e quatro horas por dia, o preso é lembrado
de que é apenas isto, um preso, um sentenciado, um reeducando, ou
qualquer desses rótulos pretensamente eufemísticos.
Apesar disto, nossa execução penal é amplamente centralizada na
prisão. Mesmo nos momentos em que permite determinada abertura, ou
arrefecimento das restrições dos contatos externos, o rótulo é
lembrado e até estendido a terceiros. Pensemos nas visitas, que são
autorizadas, porém, sujeitas a revistas vexatórias, com
procedimentos invasivos, degradantes5
e inúmeros constrangimentos.
O fato é que embora a
regulamentação do ingresso e visita aos familiares nos
estabelecimentos penais estabeleça que a revista não exporá o
revistado a constrangimento, não é esta a realidade verificada nas
unidades prisionais do país. Thaís Lemos Duarte em estudo sobre
procedimentos de revistas íntimas realizadas no Sistema
Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro identificou que durante
revistas íntimas aos mencionados estabelecimentos mulheres devem se
despir, ficando nuas diante das agentes penitenciárias. Via de
regra, elas devem levantar e abaixar três vezes, primeiro de frente
e depois de costas.(...) Em outros presídios, as mulheres precisam
ficar com o tronco para baixo, abrir suas partes íntimas com as mãos
e soprar uma garrafa plástica.6
As saídas temporárias7
são acompanhadas de restrições de cunho moralista, fixadas em lei,
como a proibição de freqüentar bares e casas noturnas. Na
progressão para o regime aberto, as mesmas vedações são repetidas
pelos juízes, embora não haja previsão legal expressa8.
Note-se que são atividades de lazer lícitas, praticadas
exaustivamente pelos não rotulados, inclusive julgadores e
legisladores, sem que isto os coloque em situação de suspeita.
Mesmo as penas tidas como alternativas à prisão não conseguem
fugir das grades. Elas nunca puderam diminuir o índice de
encarceramento, como reconhecem as pesquisas9.
Uma das razões é que, ao invés de simplesmente diminuírem as
punições, atingem condutas que não seriam punidas inicialmente com
a cadeia, por absoluta desproporcionalidade. Constituem-se, assim, um
sistema complementar e não diverso10.
De outra parte, sua aplicação gira sempre em torno da possibilidade
da conversão na privação de liberdade. O condenado percebe que, na
verdade, a sua realidade é a daquelas pessoas encarceradas. Embora
como o seu defensor, o promotor, ou o juiz, ele não esteja atrás
das grades, basta que falte ao trabalho para que ser encarcerado. Sua
condição livre é, portanto, nitidamente precária11.
Positivou-se, no sistema penal
brasileiro, a possibilidade da aplicação de penas e medidas
alternativas sempre com a sombra da privação da liberdade. Tem-se
uma visão atinente às penas e às medidas alternativas como
componentes de um sistema que apresenta a pena de prisão como
principal mecanismo sancionador, devendo tudo que for alternativo vir
maculado pelo “benefício” da não prisão.12
Em 2010, foi introduzida modificação legislativa, apresentada como
meio de descarceirização, por instituir o monitoramento eletrônico.
Trata-se o uso de pulseiras ou tornozeleiras, que permitem o
rastreamento por satélite e a comunicação instantânea. O
monitoramento eletrônico tem o inconveniente de explicitar
publicamente o estigma do crime. A despeito disto, seria, em tese, um
mal menor do que a permanência na prisão.
Contrariando a hipotética intenção de substituir a prisão pelas
pulseiras, contudo, o nosso legislador previu o seu uso apenas em
situações nas quais o preso já estaria na rua: as saídas
temporárias, para o regime semi-aberto e a prisão domiciliar13.
Não se criou nenhuma nova possibilidade de saída do cárcere, mas
se acrescentou um elemento estigmatizante às situações de relativa
liberdade14.
Em relação à necessária desconfiança sobre as instâncias de
controle penal, a legislação infraconstitucional também não dá
grandes passos. Todo e qualquer direito a ser conquistado pelo preso
depende do atestado de conduta, fornecido pelo diretor da unidade,
que concentra um grande poder de definir o conceito e controlar o
tempo de produção do documento15.
Ampliando este poder, as faltas graves previstas pela Lei de
Execuções Penais são permeadas de conceitos abertos, polissêmicos
e autoritários, que podem ser preenchidos livremente pelos
acusadores16.
São infrações, por exemplo, desobedecer ou ser desrespeitoso com
os agentes, não executar as tarefas e ordens recebidas ou incitar
movimento para subverter a ordem e a disciplina17.
No inciso I temos a previsão de
que comete falta grave o condenado que incitar
ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina.
Note-se que a amplitude da expressão “subverter a ordem ou a
disciplina” é tamanha que, no fundo, qualquer fato contraditório
poderia, pela via da argumentação, ser considerado falta grave.18
As faltas médias e leves são definidas pelos Estados e apresentam
resultados ainda piores. Na Bahia, considera-se falta média
“praticar atos que perturbem a ordem nas ocasiões de descanso, de
trabalho ou de reuniões” 19,
ou “divulgar notícia que possa perturbar a ordem e a disciplina”20.
No Rio Grande do Sul, é infração demonstrar desleixo na execução
de tarefas ou descuidar-se da higiene pessoal21.
A discricionariedade das autoridades é imensurável.
O exemplo maior da absoluta falta de desconfiança em relação às
instâncias de controle está na falta grave prevista no artigo 52 da
LEP.
Art. 52. A prática de fato
previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione
subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso
provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime
disciplinar diferenciado (...).22
Além dos conceitos abertos de subversão da ordem e disciplina
interna, para justificar o regime disciplinar diferenciado, o
dispositivo condiciona a existência da falta à “prática de fato
definido como crime”. A maioria da doutrina e quase a unanimidade
da jurisprudência concluíram que para constatar a existência do
fato não é preciso aguardar o julgamento, mas é suficiente a
prisão em flagrante, ou a abertura de inquérito.
Não se referindo a lei a
“condenação”, mas à “ prática de fato previsto como crime”,
a aplicação da sanção disciplinar independe de que o fato ainda
esteja sendo objeto de investigação ou ação penal, devendo apenas
ser obedecidos a lei e o regulamento referentes ao procedimento
disciplinar para que a sanção seja imposta.23
Em um Estado de Direito, com garantias mínimas, só podemos afirmar
que um crime foi praticado por alguém, após haver condenação
transitada em julgado. Para a maioria, porém, bastaria à polícia
dizer que houve um delito, para se presumir a culpa do acusado. Não
seria preciso haver uma acusação formal, direito de defesa ou
julgamento. Nesta assustadora cegueira em relação à presunção de
inocência, se existe algum grau de desconfiança, é difícil
imaginar a liberdade que se daria caso houvesse confiança.
É escasso o aprendizado pela LEP dos ensinamentos do labeling
approach. Mas, neste ponto, é preciso advertir que a observação da
Constituição levaria ao reconhecimento da nulidade das normas aqui
citadas. Esta análise da lei maior, para a lei menor, porém,
raramente é feita. Nossos julgadores têm preferido interpretar a
Carta Magna à luz da LEP e não o contrário.
3
FOUCAULT Michel. Vigiar e Punir.
Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
4
LINCK, José Antônio Gerzson. Malandro quando morre vira samba:
Criminologias marginais de Madame Satã a Mano Brown.In
Criminologia Cultural e Rock. LINCK, José Antônio Gerzson, MAYORA,
Marcelo, PINTO NETO, Moisés e CARVALHO, Salo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris,2011, p.47.
“A desvinculação entre crime e maldade era para ser um dos
principais contributos da criminologia crítica para o pensamento.
Tal intuito seria bastante facilitado se criminalizados
participassem das teses acadêmicas, debatessem em congressos
jurídicos e, ao invés ou conjuntamente aos congressistas
estrangeiros, nós conseguíssemos compreender, sem tradutores, os
dialetos inscritos na própria cidade em que vivemos.”
5LEAL, César Barros. Execução
Penal na América Latina à Luz dos Direitos Humanos-
Viagem pelos caminhos da dor. Curitiba: Juruá, 2009. p.247
6
VENÂNCIO, Firmiane. Princípio da Intranscendência da Pena e o
Modelo Penal Vigorante. IN XIMENES, Rafson Saraiva e PRADO,
Daniel Nicory do(Coord.). Redesenhando a Execução Penal.- a
superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade
Baiana,2010.p.100.
Art. 124. A autorização será concedida por prazo
não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4
(quatro) vezes durante o ano.
§ 1o
Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as
seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as
circunstâncias do caso e a situação pessoal do
condenado: (Incluído
pela Lei nº 12.258, de 2010)
I - fornecimento do endereço
onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado
durante o gozo do benefício; (Incluído
pela Lei nº 12.258, de 2010)
§ 2o
Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de
instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o
necessário para o cumprimento das atividades discentes. (Renumerado
do parágrafo único pela Lei nº 12.258, de 2010)
§ 3o
Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser
concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de
intervalo entre uma e outra. (Incluído
pela Lei nº 12.258, de 2010)
10
PAVARINI, Massimo e GIAMBERARDINO, André. Teoria da Execução
Penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. P. 117.
“A hipótese explicativa mais convincente é
aquela segundo a qual o sistema de penas e medidas ´extra-cárcere´
e as possibilidades de se evitar o processo acabam por constituir um
sistema complementar, e não substitutivo, da pena privativa de
liberdade, com o efeito de não produzir a redução da população
carcerária mas, bem pelo contrário, configurar mais punição.”
Art. 181. A pena restritiva de direitos será
convertida em privativa de liberdade nas hipóteses e na forma do
artigo 45 e seus incisos do Código Penal.
§ 1º A pena de prestação de serviços à
comunidade será convertida quando o condenado:
a) não for encontrado por estar em lugar incerto e
não sabido, ou desatender a intimação por edital;
b) não comparecer, injustificadamente, à entidade ou
programa em que deva prestar serviço;
c) recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço
que lhe foi imposto;
d) praticar falta grave;
e) sofrer condenação por outro crime à pena
privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa.
§ 2º A pena de limitação de fim de semana será
convertida quando o condenado não comparecer ao estabelecimento
designado para o cumprimento da pena, recusar-se a exercer a
atividade determinada pelo Juiz ou se ocorrer qualquer das hipóteses
das letras "a", "d" e "e" do parágrafo
anterior.
§ 3º A pena de interdição temporária de direitos
será convertida quando o condenado exercer, injustificadamente, o
direito interditado ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras
"a" e "e", do § 1º, deste artigo.
12SOUZA
Bethania Ferreira de. Penas e Medidas Alternativas. Redução do
Aprisionamento ou Expansão Punitiva IN XIMENES, Rafson Saraiva
e PRADO, Daniel Nicory do(Coord.). Redesenhando a Execução Penal.-
a superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade
Baiana,2010.p.200
14 SILVA, José Adaumir Arruda da e SILVA NETO,
Arthur Corrêa da Silva Neto. Execução
Penal: novos rumos, novos paradigmas.
Manaus: Editor a Aufiero, 2012. P.119.
15
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias.
3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.P.226.
“A quantidade de óbices aos direitos dos presos em decorrência
das sanções administrativas leva a afirmar que o sistema de
penalidades disciplinares, regulados inquisitorialmente pela LEP,
constitui sistema sancionatório autônomo e adicional á pena
imposta na sentença condenatória.”
16ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito
e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil.
Rio de Janeiro: Revan, 2005. P.143.
“A amplitude semântica proporcionada pela descrição típica do
artigo 50 da LEP é indubitavelmente um fator de desestabilização
das garantias dos reclusos. Isto porque as decisões disciplinares
no interior das instituições totais são desprovidas de
predeterminações regulamentares e, quando o são, apresentam-se de
forma ambígua e lacunar, ampliando o arbítrio do corpo
administrativo.”
I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da
sentença;
II - obediência ao servidor e respeito a qualquer
pessoa com quem deva relacionar-se;
III- urbanidade e respeito no trato com os demais
condenados;
IV - conduta oposta aos movimentos individuais ou
coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina;
V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens
recebidas;
VI - submissão à sanção disciplinar imposta;
VII - indenização à vitima ou aos seus sucessores;
VIII - indenização ao Estado, quando possível, das
despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto
proporcional da remuneração do trabalho;
IX - higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;
X - conservação dos objetos de uso pessoal.
Parágrafo único. Aplica-se ao preso provisório, no
que couber, o disposto neste artigo.
18SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, A
Crise da Legalidade na Execução Penal.
In Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.).
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P.46