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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Exemplo Uruguaio


Saiu no Blog Bora Bahêa um vídeo interessante inspirados nos incidentes violentos ocorridos no clássico em que o Bahia foi derrotado pelo seu adversário sem tradição. Injustamente, é claro. Trata-se de uma campanha realizada no Uruguai, para incentivar o respeito à pluralidade. Vale a pena assistir. Foi uma idéia genial.

Assista aqui.


ps: aguardo uma boa alma que me ensine a postar o vídeo direto no blog.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Receio



Notícia de " O Globo".

"Serra e Dilma receosos com soltura de presos

Publicada em 26/04/2010 às 23h15m

Jailton de Carvalho e Sergio Roxo
(...) Em São Paulo, entrevistado na TV Bandeirantes , Serra afirmou que só é favorável ao uso de tornozeleiras eletrônicas para controlar presos que já têm autorização para saídas temporárias da prisão ou estão no semiaberto. O tucano disse que é contra utilizar a inovação para permitir que mais detentos sejam beneficiados com a liberdade.

- Tornozeleira não é para soltar mais. É para aqueles que já saem, que têm o semiaberto, terem tornozeleiras. Não sou a favor de soltar mais - disse Serra, lembrando que o governo de São Paulo está fazendo licitação para contratar o serviço de monitoramento dos presos.

(...) Dilma escreveu sobre o assunto no Twitter. Negou que a proposta do governo preveja a liberação de presos. "Tive informações do M. Justiça de que, de maneira alguma, se pretende soltar 20% dos presos do país. Na verdade, o que se pretende é que presos que são soltos por decisão legal, e que, por exemplo, não retornam do fim de semana, sejam monitorados com pulseira eletrônica", escreveu Dilma.

(...)

Em São Paulo, Serra disse ainda que a lei de progressão de penas "deve ser revista" no país.

- (Quem) mata numa briga comete um tipo de crime. Matar uma criança é outro. Acho tem que diferenciar e rever toda essa estrutura (de penas). Sou a favor de respeitar os direitos humanos, mas bandido tem que ser enfrentado com dureza.

O ex-governador de São Paulo aproveitou o programa para defender leis mais rigorosas para criminosos e prometeu criar o Ministério da Segurança Pública, caso seja eleito."

Sempre estranhei quando alguém defendia o uso das pulseiras ou tornozeleiras eletrônicas, como meio de enfrentamento do crime. A imagem que me aparecia era a do filme X-Men, em que existia máquina para, basicamente, localizar todo mundo. Cada pessoa era um ponto vermelho ou azul, em um grande mapa. Era necessário apenas um mutante telepata para operá-la. Como não tenho notícias da disponibilidade de super heróis no mercado, penso que o aparelho seria só outro faz de conta.

Nunca gostei da idéia, porque imaginava que se criaria um grande empecilho para a adaptação á vida livre. Creio que haveria uma forte rejeição ao portador do adereço nas ruas. Quem sentaria do lado dele no ônibus? Também seria um pouco estranho, no ambiente de trabalho. Se a existência das certidões de antecedentes já causa um estrago danado, imagine uma que vivesse grudada em cada um. Só faltaria escrever o artigo do Código Penal na testa.

Disseram-me, porém, que apesar disto, seria uma alternativa à prisão e por isto, válida. Desconfiei, relutei, mas acabei convencido. Lendo, porém, as declarações dos dois candidatos a presidente que lideram as pesquisas, concluí que é mais um engodo. Tucano e Petista fazem questão de frisar que só são favoráveis ao uso em que já estaria solto. Resultado, não haveria outra consequência prática, além de mais estigmatização.

Pra finalizar, Serra, repete o velho discurso de que respeita os direitos humanos, mais bandido deve ser enfrentado com dureza. É mais ou menos como quem diz que não é racista, mas preto tem que saber o seu lugar ou não é machista, mas a mulher deve servir ao marido. Conversa contraditória, mas que agrada ao eleitorado.

Infelizmente, parece que o que nos espera é o mais do mesmo. Receoso estou eu.

13 de maio, ou Pantone 4705


Réporter- Já foi vítima de racismo?

Neymar- Nunca. Nem dentro e nem fora de campo. Até porque eu não sou preto, né?

Fonte: Estado de São Paulo, 26 de abril de 2010

Talvez a razão esteja com o site humorístico Kibeloco, quando diz que o jogador não é negro, mas pantone 4705.


Em 13 de maio, completam-se 122 anos da assinatura da lei Áurea. Parte da sociedade acha que ela pôs fim ao racismo. Outra parte, acha que ela nem sequer deveria ser tão glorificada, pois, para os negros é mais representativa a data da morte de zumbi.

De qualquer modo, mais de um século depois, o craque preferiu negar a imagem do espelho e usa alisante no cabelo. Não se deve criticar o garoto, pois ele não tem nenhuma culpa. Mas, a opção por ser branco, moreno, pardo, ou até pantone, ao invés de negro é um forte indício de que, ao contrário do que pensa, ele é, sim, mais uma vítima do racismo brasileiro.

sábado, 24 de abril de 2010

Carta Aberta a Duda


Salvador, 03 de maio de 2010.

Querida Dudinha,
Você não deve se lembrar de mim, pois só nos encontramos duas vezes, quando você era muito pequenininha. Meu nome é um pouco complicado, mas pode me chamar de Rafito.
A primeira vez que te vi, foi em um hotel, em Salvador, onde seus pais estavam hospedados. Creio que você tinha uns três meses. Não tinha cabelo ainda, mas usava uma fitinha, grudada na cabeça. Já era muito bonita e seu pai tentava, em vão, me convencer de que era a cara dele. Te carreguei no colo e você retribuiu, ao seu modo carinhoso, com uma angelical golfada na minha camisa. Sua mãe, pobrezinha, ficou envergonhada, mas sem razão. Eu achei muito engraçado.
Depois, te encontrei bem maior, já com seis meses, em outro hotel, dessa vez, no Rio de Janeiro. Seus pais é que me visitavam. Você vinha de uma consulta com o pediatra e sua mãe advertiu que o anjinho estava estressado. Eu te peguei nos braços novamente, um pouco receoso com a possibilidade de nova prova de amizade, talvez mais radical que a do primeiro encontro, pois você crescia e podia estar se aperfeiçoando. Dessa vez, porém, você me deixou ainda mais contente. Descobri que, mesmo sem conseguir ficar de pé, você adorava que te levantassem, para que ficasse pulando nas pernas dos outros. Enquanto fazia isto, você ria, de um jeito tão bonito que deixaria qualquer um feliz. Principalmente, alguém com a camisa intacta.
Estou escrevendo, Duda, porque nunca esquecerei de você. Acontece que você é a prova viva de uma das mais lindas histórias de amor que já existiram. Enquanto mulher, você é uma privilegiada e, certamente, entenderá isto mais tarde.
Sabe, Duda, você nasceu em um tempo de muita hipocrisia. Ninguém admite ser racista e poucos confessam que são machistas, mas há preconceitos por todos os lados. Creio que você não teria problemas com racismo, pois é branquinha e tem os olhinhos azuis. Mas, quanto ao machismo, seria, certamente, uma vítima potencial.
Eu disse que seria, porque, pelo menos na sua casa, você escapou disto. Vou te contar um pouquinho da história dos seus pais. Eles se conheceram no Rio de Janeiro, onde viviam, e logo se apaixonaram. Resolveram que viveriam juntos para sempre, porque se amavam e lutariam por isto, se preciso fosse.
Os dois são muito inteligentes e começaram a estudar para concursos. Sua mãe foi aprovada na seleção para ser juíza, na Bahia. Teria que vir para uma cidadezinha no interior, na qual para comer um pouco de presunto, era necessário viajar cerca de 200 kilometros. São umas 500.000 Dudas empilhadas. É muito longe! Bem maior que o seu quintal! Maior até que a casa dos seus avós e o que o parquinho onde você brinca!
Seu pai largou o emprego e foi com ela. Você não tem idéia do valor desta atitude. Hoje, Duda, todo mundo acha normal que a mulher acompanhe o homem aonde ele for trabalhar, mas o contrário é um escândalo. Apesar de a lei jurar que todos são iguais, continuamos achando que é o marido que trabalha fora, enquanto a esposa cuida das crianças. Até se admite que ela trabalhe também, mas apenas para auxiliar o senhor e chefe da casa.
Pois seu pai não se importou com nada e foi assim mesmo. Garanto que amigos, inimigos, conhecidos, desconhecidos, fofoqueiros em geral, e até parentes criticaram um bocado. A maledicência deve ter tomado duas linhas: uma afirmar que ele não era “macho” e a outra assegurar que ele era um aproveitador. As duas, fruto de um preconceito imbecil e da mais profunda ignorância.
Se homens e mulheres têm direitos iguais, ambos são do lar e ambos são da rua. Não existe mais chefe de família, ou qualquer hierarquia na casa. Os dois são fortes e os dois são frágeis. Os dois riem e os dois choram. Ambos se sujeitam aos mesmos sacrifícios, inclusive o de acompanhar o outro, se for melhor para a família.
Foi por isto que o grande homem, de fibra e valentia, que é o seu pai desafiou o mundo. Ele tinha ao seu lado, ao mesmo tempo, a razão e o amor. Não se importou com a estupidez alheia. Chegou na Bahia e continuou seus estudos, apoiado por sua companheira de todas as horas, na alegria e na dor, até que virou Defensor Público, para a sorte da população pobre baiana.
Não sei se em algum momento seus pais fraquejaram e pensaram que o inimigo era muito forte. De fato, era forte mesmo! Os dois lutavam contra milênios de machismo ( milênio é igual a mil anos Duda, muitas vezes os seus dedos da mão e do pé). Garanto, entretanto, que, ao ouvir o seu primeiro choro, todas as dúvidas acabaram. Eles viram, naquele momento, que tudo valeu a pena. Souberam que enfrentariam qualquer exército, para ter você com eles. Sua sorte é imensa, Duda, porque nasceu de um bravo amor e em uma casa na qual a igualdade não é uma palavra vazia. Você é uma conquista!
Tenho, contudo, uma preocupação, um tanto machista, quanto à sua formação. No Brasil, é muito importante escolher o time certo para torcer. Somos o país do futebol, sabe? Seus pais são cariocas e vibram por times diferentes, mas você será criada na Bahia, o que gera dois perigos.
O primeiro diz respeito à harmonia do casal. Na única vez em que vi os dois discutindo foi porque seu pai, flamenguista, fazia gozações com o Fluminense da sua mãe, ameaçado de rebaixamento. Isto pode causar um grande conflito no lar: a disputa sobre o time que você escolherá. Por outro lado, aqui na Bahia existe um glorioso time, que leva o nome do estado, têm títulos nacionais e outro muito sem graça, que nunca ganhou nada e não merece nem ter o nome citado aqui. Se você crescer sem escolher um deles, pode acabar definindo a preferência por simpatia pelo primeiro namoradinho.
Acontece que o time legal está em uma fase muito ruim e vários menininhos, ingênuos estão torcendo pelo time do mal. É possível que um desses coitados conquiste seu coraçãozinho. Isto seria catástrofe! Uma mancha terrível na personalidade de alguém tão especial!
Pensando nisto, escolhi seu presentinho, para o primeiro aniversário. Assim, você não desagrada o papai, nem a mamãe. Pelo contrário, homenageia os dois. Diz que escolheu um time tricolor, como o da mamãe e que, ao mesmo tempo, é o mais popular e maior campeão do estado, como o clube do papai. Pra completar, você conta que não queria um time com fama de vice, como são, no Rio, o Vasco e o Bota Fogo. Todos ficam contentes e orgulhosos!
Para completar, como mulher independente que será, ainda influenciará qualquer eventual paquerador desencaminhado, para que entre nos eixos e torça pelo time certo. Será mais uma quebra de paradigmas!
Espero que você goste da lembrancinha e coma muitos doces, na sua festinha. Não se assuste com os palhaços e com os balões estourando. Saiba que este foi só o primeiro ano de uma longa vida que será muito feliz, principalmente pelos pais maravilhosos que você possui. Cresça, espelhando-se neles e, fatalmente, será um grande exemplo, para todos.
Feliz aniversário e um beijo,
Tio Rafito.
Ps1: Se você não estiver convencida a torcer pelo esquadrão de aço, pelos argumentos expostos, preciso apelar e pedir que faça isto, para compensar aquela golfada, na minha camisa nova.
Ps2: Pede pro papai e pra mamãe me enviarem, por e-mail, uma foto sua, com o presente e dizendo se autorizam que eu coloque essa carta e a foto no meu blog.

Dobrou? Para quem?




Em 23 de abril, a Folha de São Paulo e outros veículos de comunicação anunciaram algo muito visível para quem trabalha no sistema prisional. A população carcerária brasileira dobrou nos últimos nove anos. No mesmo período a população geral cresceu apenas 11,8%. Hoje são quase 500.000 encarcerados, segundo os dados oficiais. Confesso que fiquei confuso! Todo mundo sempre disse que precisávamos prender mais, para diminuir a criminalidade e que ninguém ia para cadeia neste país. Abarrotamos as celas e mesmo assim só se vê notícias de delitos! E cada vez mais graves!


Não vou discutir agora a falácia sustentada há 200 anos de que a prisão seria um instrumento eficaz de combate ao crime. No momento me prenderei a outra constatação. Dos 473.626 internos, 152.612, ou 44% ,ainda estão sendo processados. É bom saber disto, pra falar um pouco sobre um dos mais importantes e mais incompreendidos princípios do direito penal: a presunção de inocência.


Uma pena, especialmente de prisão, é um castigo gravíssimo que traz sequelas à vida de qualquer pessoa e também dos seus familiares. Sendo a sanção mais forte, requer muita cautela para ser aplicada. Em função disto, todos os ordenamentos democráticos dizem que alguém só pode ser considerado culpado, após esgotar todos os meios de defesa e ser julgado por autoridade competente e imparcial. Antes de superadas estas etapas, não há meio termo, todos são inocentes.


É por causa da presunção da inocência que a dúvida favorece o réu. Ninguém precisa provar a inexistência de culpa, mas aquele que acusa deve deixar clara a existência de um delito e identificar cabalmente o autor. Se houver algo obscuro, o caminho é a absolvição. O mal causado pelo delito não será anulado pela pena. O sofrimento da vítima não deixará de existir. A sanção, porém, implica na produção de uma nova violência, ainda que pelo Estado. Punir um inocente, por conseguinte, é muito mais indesejável que deixar de castigar um culpado.


A imprensa, todavia, costuma fazer uma grande confusão, que é transmitida para a população geral. Trata quem é acusado, ou investigado, como culpado. O "julgamento" é imediato gera de frustração na sociedade., porque quando o réu não é condenado, fica a sensação de impunidade. Faça um exercício mental e se pergunte se em algum momento passou pela sua cabeça, por exempo, que Alexandre Nardoni pudesse ser inocente. Provavelmente, não passou e você torceu pela condenação. Mas, calma, não se envergonhe. por isto A grande maioria dos juizes, com profundos conhecimentos jurídicos também faz pré-julgamentos e nem nota.


Continuando, se a presunção é de inocência e a pena é tão grave, o encarcerarmento de uma pessoa sem julgamento definitivo só pode socorrer excepcionalmente. Como explicar, então, que quase a metade dos presos brasileiros se encontrem nesta situação? O Código de Processo Penal diz que a prisão preventiva só poderia acontecer quando houver necessidade dela para garantir algumas dessas coisas: 1) que a produção de provas não será atrapalhada, 2) que o réu não vai fugir e 3) que não se abalaram a ordem pública e a econômica. Fora dessas hipóteses, a defesa deve ser exercida, em liberdade. Quem deve provar a necessidade do prisão é, obviamente, o acusador, afinal, o réu é, a priori, inocente.


Infelizmente, isto não passa de letra morta. É mais cômodo para o julgador prender que soltar. A primeira opção costuma agradar aos jornais. Daí se inverte a lógica do sistema e, ao invés de esperar a ação do Ministério Público, os juízes criaram, sem base legal, exigências a serem cumpridas pelo acusado, como condição para a soltura.


Em geral, os magistrados determinam que o acusado apresente comprovante de residência, comprovante de emprego e certidão negativa de antecedentes. A estranha explicação seria a de que precisam saber se o réu fala a verdade sobre a sua localização, se é trabalhador e se já teve passagens pela polícia , porque só assim terão certeza de que não fugirá, não destruirá provas e não perturbará a ordem pública.


Eu fico cada vez mais confuso! Além de se presumir a culpa do fato criminoso, ainda se presume que o réu fará esse monte de coisas, a menos que ele prove o contrário ( e olhe que nem estou discutindo que nada disto prova qualquer coisa). E a presunção de inocência, como fica? Pode até parecer que as exigências são banais, mas não são. Lembre que boa parte do nosso povo não tem residência, mais gente ainda está sem emprego e outro tanto de cidadãos nunca exerceu qualquer atividade formal. Pense ainda que as certidões de antecedentes, às vezes só se fornecem mediante o pagamento de taxas e não são entregues no mesmo dia.


Outro problema é definir o que seria a ordem pública. O conceito se adequa ao que o juiz quiser, é tudo e nada, ao mesmo tempo. Serve como justificativa coringa, para a manutenção da prisão. Às vezes, diz-se que garantir a ordem pública é evitar a descrença no judiciário. Mas, espere aí.,então se usaa liberdade dos outros como um joguete, com fim político institucional?


Àas vezes também se fala que garantir a ordem pública é prevenir delitos futuros. Neste caso, presume-se a culpa do crime em julgamento e já se faz o mesmo em relação a outros que ainda nem aconteceram. Por que meus professores, meus livros e até a constituição mentiram para mim, dizendo que havia presunção de inocência? Vivemos como no filme Minority Report? Agora é que eu não entendo mais nada!


De qualquer forma, perceber como as coisas funcionam é importante para desfazer outro mito: o de que quem é rico fica em liberdade porque pode contratar advogados caros. De fato, a inexistência da paridade de armas entre o Ministério Público e Defensoria Pública é um dado importante (os primeiros, acusadores, são em maior número e têm mais estrutura, por opção dos governos estaduais e federal).Esta seria, contudo, uma explicação simplista e confortável, principalmente para quem julga. Só que esconde o x do problema. A realidade é muito pior!


Preste atenção como o conjunto da obra, desde a inversão da presunção, às exigências judiciais desconexas com a lei, passando pelo conceito vago de ordem pública, dificulta a libertação do pobre e favorece a do rico. Quem terá mais facilidade para comprovar a residência fixa e o trabalho? Quem sofre assédio da polícia a vida inteira, e por isto tem mais chances de possuir a "ficha suja"? Quem mais sofre com o desemprego? Quem vive de bicos, sem qualquer registros na carteira de trabalho? Quem não é matriculado na escola? Quem não vai à universidade? Quem tem uma história de vida, uma organização familiar e até uma linguagem mais próximas do juiz? Quem tem , portanto, mais possibilidade de ser considerado um risco à sociedade, de acordo com a parcela desta que tem o poder de julgar?


Seja sincero, responda o que vem à cabeça... É o preto ou o branco? É o morador de um condomínio fechado ou o da favela? É o pedreiro ou o empresário? Quem te faria sentir medo na rua, José Roberto Arruda, acusado de desviar milhões, ou um maltrapilho acusado de furtar um tênis? Embora sempre exista a possibilidade de subornos, o fato é que as exigências inventadas selecionam determinada classe social.


Falando nisto, a liberdade do ex-governador de Brasília não é nenhuma injustiça. Até agora, ele é inocente. Cabe ao judiciário realizar um julgamento célere e aplicar uma pena, caso o Ministério Público prove que ele tem culpa. Injustiçados mesmo são os mais de 100.000 pobres presos, sem julgamento, basicamente porque são pobres e porque se adota uma opção política covarde, ilegal e preconceituosa. Enquanto não se compreender e respeitar a presunção da inocência, bilhões vão ser jogados no lixo, anualmente, para construção de prisões. Mesmo assim elas continuarão lotadas de pobres, enquanto a mídia clamará pelo endurecimento das leis como a "novíssima" solução para a eterna crise da segurança pública.




quinta-feira, 22 de abril de 2010

Grandes Momentos do Esporte


O Canal esportivo ESPN está exibindo um programa interessantíssimo, para quem gosta de futebol. Chama-se “Os Clássicos dos Mundiais” e consiste na exibição integral das partidas mais famosas de todos os tempos. Tenho assistido quase todas e percebi que Pelé, Maradona e Zico eram realmente geniais, mas Ronaldinho Gaúcho, Kaká e Ronaldo também seriam destaques em qualquer época. Vi também que antigamente havia tantas jogadas bizonhas quanto hoje em dia (mesmo de Pelé, Zico ou Maradona) e que a violência era incomparavelmente maior.

Infelizmente, porém, a emissora não conseguiu comprar os direitos da transmissão daquele que seguramente foi o momento mais fantástico da história do esporte. As novas gerações estão, portanto, privadas de conferir os lances da melhor equipe do século XX, no meu modesto e imparcial entendimento: o espetacular Missão Percevejo! Os leitores do blog, todavia, poderão, ao menos conhecer os fatos e saber dos bastidores do seu maior duelo, contra os famosos Profetas.

No final da década de 90, um grupo de jovens rebeldes e talentosos, oriundos do tradicional colégio Instituto Social da Bahia, tinha o hábito de freqüentar a praia de Jaguaribe, onde falavam besteiras, faziam planos de dominar o mundo e disputavam incontáveis partidas de futebol, contra quem aparecesse pela frente. E ganhavam todas, menos as amistosas. Haviam aprendido com o Politheama de Chico Buarque que vencer amistosos era até uma descortesia. A equipe era conhecida como Missão Percevejo.

Naquele tempo, os duelos praianos já rendiam muitas histórias. Em um dos embates, houve a participação especial de Dado Villa Lobos (ex-guitarrista da Legião Urbana), que teve a honra de vencer, com os Percevejos. Caetano Veloso, Paulo Ricardo (do RPM) e Regina Casé já acompanharam jogos do camarote,na barraca de seu Raimundo, comendo caranguejo. Só não sei se sabem disto.

Às vezes, sofriam gols, é verdade, como quando a modelo Paula Bulamarqui estava na praia,de topless, deitada de bruços na areia. O Missão Percevejo sofreu um contra-ataque e, estupefatos, seus atletas perceberam que o goleiro simplesmente tinha desaparecido. Após o tento contrário, descobriu-se o que ocorrera. A modelo havia se levantado para tomar banho de mar e o guarda-redes, talvez por confiar em demasia nos companheiros, correu para a água, tentando acompanhá-la, de um ponto privilegiado. Até hoje, suspeita-se que ela foi contratada pelos maliciosos rivais.

Os jogadores variavam, mas havia uma base sólida, com funções definidas. Igor, o Homem Motor, era o responsável pela correria, pelo fornecimento dos churrascos e da bebida favorita: leite Parmalat de morango, geladinho. Norba era o dono do chute mais potente e o verdadeiro craque do time, além de motorista, pois que o único a dirigir e possuía uma discreta caminhonete listrada, laranja e preta, apelidada de Tigrão. Alexandre era o xerife da zaga. Rodriguinho, cuja avantajada estatura o fez conhecido como Metade, era encarregado de contar piadas e gritar no meio campo. Mouse era o espetacular goleiro (embora estivesse ausente no incidente com Paula Bulamarqui). Danilo tinha a função de identificar os famosos presentes, como Dado. Dudu era o nosso craque de basquete e PC o craque do xadrez. Tínhamos certeza que acharíamos alguma utilidade para eles um dia. O destaque, capitão e artilheiro da equipe, contudo, era o humilde e modesto Rafito, clássico centroavante goleador.

Havia um tradicional torneio de futebol de salão, chamado Copa Maria Alice, cujos jogos se realizavam no ginásio do ISBA. Participavam jogadores profissionais, porém, como era uma competição amadora, as equipes usavam outros nomes. O Missão Percevejo decidiu expandir horizontes e levar a habilidade praieira para as quadras, transmitindo o verdadeiro espírito do futebol arte libertário, para aquelas almas de concreto, presas entre paredes.

Foram contratados reforços de peso, como Igor Kubiak, um técnico pivô, Robinho, ala esquerda, irmão de Rafito (gerando infundada acusação de nepotismo) e o goleiro reserva Gustavo, famoso por ser um doido completo.

Intensificaram-se os treinamentos: os craques tomavam banhos de mar, jogavam frescobol e bebiam leite Parmalat de morango quase todos os dias. De vez em quando, se a maré tivesse baixa, ainda jogavam bola. Só não comiam caranguejo, como Caetano, por falta de recursos financeiros. Estavam no esplendor técnico!

Na verdade, toda a competição era um mero pretexto para o confronto com um inimigo específico: os Profetas, equipe formada por professores de Educação Física e seus convidados. Vencer os mestres era um ato político, de libertação da juventude. Para os garotos recém saídos da escola, derrotar os docentes era tão importante, como foi para a Argentina vencer a Inglatera, após a guerra das Malvinas. Nos outros jogos, portanto, não importava o resultado, mas apenas a adaptação a todo aquele mundo estranho, em que se usava uniforme, caneleira, havia árbitros e os times tinham organização tática. Tinha até escanteio! O jogo para valer aconteceria no dia no dia 11 de setembro de 1999.

Antes disto, porém, no que consideravam meros amistosos, já surpreenderam o mundo com sua confiança, inteligência e habilidade. Na estréia, do torneio início, em que os jogos duravam apenas 15 minutos, enfrentaram o temido Mandinga, na época tetra-campeão. No cara ou coroa, mostraram que não estavam para brincadeira e venceram, escolhendo começar com a bola! Até na moeda eram bons!

No início do jogo, em um lance de pura magia, Metade tocou para Rafito, que percebendo o goleiro adiantado deu um leve toque por cobertura. A bola, caprichosamente, bateu no travessão. Os espectadores, comovidos, aplaudiram e concluíram, por unanimidade que o lance deveria entrar no rol dos mais belos gols perdidos, juntamente com o chute do meio campo de Pelé, ou o lance em que o rei driblou o goleiro, sem tocar na bola. No final, o Mandinga fez 5x0, mas ninguém ligava para o placar, ainda mais no torneio início. Na memória coletiva aquele foi o jogo do gol que Rafito não fez.

O período de preparação, porém, não foi um mar de rosas. Devido ao excesso de craques, houve um inevitável choque de egos. Nem todos aceitavam a reserva. Por conta disto, o indisciplinado PC, o principal enxadrista, rebelou-se e abandonou a equipe. Foi uma perda terrível, mas, por sorte, não um xeque-mate.

Chegou o dia decisivo. Os percevejos tinham problemas. Além do abandono de PC, o goleiro Mouse, que vinha fazendo milagres não poderia jogar, por causa de alguma frescura não esclarecida. O paredão, como a torcida o chamava, fechava o gol, como ninguém. Graças a ele, a média de gols sofridos nos amistosos era menor que 15 por partida. A equipe teria que confiar no reserva Gustavo. Era grande a sua responsabilidade e pequeno o seu juizo. Os fãs se preocupavam.

Os Profetas eram uma grande equipe. Destacavam-se o famoso Alan Rezende e seu filho, o lendário Léo Ballet. Mesmo assim, havia confiança nos Percevejos. A equipe inicial foi escalada com Gustavo no gol, Alexandre de fixo, Norba na ala direita, Robinho na ala esquerda e o artilheiro Rafito de pivô. O jogo começou tenso. As equipes se estudavam, mas não conseguiam furar as defesas. As torcidas roíam as unhas.

Aos três minutos, o resistente Alexandre cansou e foi substituído por Dudu. Além de ter um bom preparo físico, porém, o maratonista era visionário e descobriu como fazer o craque do basket render no futebol. Ao sair, disse as palavras mais sábias da sua vida: “Dudu, arf, entra que eu, arf, tô morto”. O cestinha compreendeu perfeitamente as entrelinhas da mensagem. Na primeira vez que tocou na bola, executou um poderoso chute (a bola atingiu 5,2 Km/h), que entrou à esquerda do goleiro. Goooool!!! Dizem que PC chorou ao saber do ocorrido. Só então percebeu que a sua utilidade seria logo encontrada. Faltou paciência à juventude.

Os Profetas não se intimidaram e partiram em busca do empate, correndo os riscos do contra-ataque. Robinho roubou uma bola e da defesa lançou Rafito. O atacante dominou a bola no ar e, com categoria, chutou cruzado, de esquerda. A pelota bateu na trave e entrou. Um Golaço!
O lance até hoje causa polêmica no meio esportivo. Os especialistas lamentam a não inclusão da jogada entre as indicadas para gol do século pela Fifa. Suspeita-se de um golpe portenho, para permitir a vitória de Maradona.

Após o gol, Rafito saiu, aplaudido de pé pela torcida, e deu lugar a Igor Kubiak. Metade também entrara no lugar de Robinho. Entre um e outro grito no meio campo, o gigante resolveu chutar a bola, para ver no que dava. Com grande senso de colocação, Igor Kubiak pegou o rebote a mandou para as redes. 3x0!!!

Depois disto, o time naturalmente relaxou. Enquanto os alas saíram pra comprar leite Parmalat de morango, o fixo olhava o jornal, para saber quando a maré baixaria e o pivô foi buscar as raquetes de frescobol. Desesperado, o goleiro se viu sozinho e resistiu bravamente, mas, sofreu dois gols. O jogo tinha ficado perigoso!

A equipe parecia morta, mas, como no poema de Drumonnd ( O Sobrevivente), "os percevejos heróicos renascem". Faltando um minuto para o fim do confronto, articularam uma jogada, para definir a partida. A tática escolhida foi: Danilo fica quieto no banco, Igor corre e o resto chuta pro gol. O complexo plano funcionou com perfeição. O homem motor confundiu os adversários, correndo sem rumo, até que Norba mandou um petardo. Gooool!!!! 4x2!!!

Os autofalantes fizeram um pot-pourri com “We are the champions”, Carruagem de Fogo e o tema da vitória! Foi festa em todo o país! Galvão Bueno não parava de gritar. Vanusa cantava o hino nacional. Os heróis desfilaram pela cidade no Tigrão, a famosa caminhonete do craque Norba. O futebol mundial nunca mais foi o mesmo. Ninguém nem viu quando os profetas fizeram o seu terceiro gol. 4x2, 4x3... tudo dava no mesmo!

Depois, os Percevejos voltaram às praias. A sua lição ao planeta estava dada. Sem eles, não haveria Messi ou Neymar, claramente influenciados pela escola Percevejística de futebol. Hoje, Mouse é um ilustre fisioterapeuta das estrelas. Metade é músico, também conhecido como Pequeno Canivete. Robinho, um cientista da computação. Norba, analista de sistemas. Dudu é administrador de empresas. PC é um engenheiro arrependido. Danilo é bancário. Igor manda em toda a Internet. Igor Kubiak é médico. Alexandre é um jornalista premiado nacionalmente. Gustavo é maluco. Rafito é Defensor Público e , agora, blogueiro.

A maior contribuição de todos eles à história, todavia, foi aquele jogo inesquecível. Ali o mundo aprendeu algo. Infelizmente, até hoje eu não sei o que foi.

ps: Para os descrentes, a prova documental da história:

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Memória e Narração


Continuando a linha de questionamento das verdades aparentes, falarei de mais dois grandes livros. Ainda se trata do Direito penal, mas creio que o tema é interessante para todo mundo, que tem, ao menos, alguma atração por notícias sobre crimes. No próximo texto, eu prometo mudar de assunto para arejar.

O primeiro escrito é o Prova Penal e Falsas Memórias, de Cristina di Gesu (Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010). Ela põe em cheque a prova que, talvez seja a mais usada no processo penal brasileiro, hoje em dia, responsável pela maior parte das condenações: a produzida através de testemunhos.

Diz-se no meio jurídico que a testemunha é a prostituta das provas, pois propensa a mentiras. O caminho seguido por Di Gesu é outro e revela um horizonte mais preocupante. Ela analisa a própria formação da memória, para mostrar como os depoimentos são frágeis, mesmo que não haja vontade de ludibriar o juiz.

Recentemente, assisti na ESPN Brasil a reprise da final da Copa de 70, com narração e comentários atuais. Entre uma jogada de Pelé e outra de Gerson, meu pai comentou que assistiu àquela partida, ao vivo e a cores, na sua humilde residência, no Ceará. Eu respondi, repetindo o que lera antes, ser impossível, pois ainda não havia transmissão a cores no país, naquela época. Em 1970, pela primeira vez o planeta viu um mundial colorido; o Brasil, no entanto, continuou em preto e branco. Ele se irritou bastante e garantiu que falava a verdade. Lembrava de todos os detalhes,foi um dos 90 milhões em ação, gritando pra frente Brasil, salve a seleção. A cores!

Alguns minutos depois, o comentarista Paulo Vinícius Coelho disse mais ou menos a mesma coisa que eu, acrescentando que só na sede da Embratel foi possível ver as imagens coloridas. Provoquei, perguntando ao meu pai se ele morava na sede da Embratel, o que gerou revolta, contra mim e contra o jornalista. “Esse cara não sabe de nada! Tá me chamando de mentiroso?”.





Aí entrou o livro de Cristina di Gesu. A memória não é armazenada na nossa mente como arquivos de computador, em que basta clicar para vê-los, exatamente como deixamos. Ao contrário, vai sendo construída e re-construída, o tempo inteiro. Nessas remontagens, alguns aspectos são olvidados e outros novos acrescentados. É frequente a mistura de informações.

Meu pai não é mentiroso, afinal, no Ceará não tem disso não! Ele simplesmente passou tanto tempo ouvindo que aquela foi a primeira Copa transmitida para tv colorida, que passou a acreditar que a viu assim. O nome disso é falsa memória. Não tem detector de mentiras que descubra, pois para quem relata um fato inexistente, ele parece verdadeiro. Nem o aparelho do programa de Márcia Goldsmith dá jeito!

Agora, imaginem o risco disso, em um processo que decidirá sobre a liberdade de alguém. A vítima não lembra o rosto do seu algoz, mas o delegado diz que prendeu o suspeito, mostrando-o. Se esse homem tiver qualquer aspecto que faça parecer possível ter sido ele, ou, mais grave, se tiver características comuns aos estereótipos de delinqüentes há grande chance de que uma produção de nova memória. A partir daquele momento, a lembrança incluirá o novo rosto apresentado.

O segundo livro fala de um tema parecido, porém em viés completamente diverso. Chama-se Autos da Barca do Inferno- O Discurso Narrativo dos Participantes da Prisão em Flagrante (Editora Podium/ Faculdade Baiana de Direito, Salvador, 2010). O autor é Daniel Nicory do Prado, jovem e brilhante Defensor Público baiano.

Quem não milita na área penal desconhece que, hoje em dia, o inquérito policial costuma terminar na prisão em flagrante. Isso significa que, muitas vezes, após a prisão, não se investiga mais nada e todo o processo tem por base os relatos colhidos naquele momento.

Nicory analisa aqueles depoimentos a partir da teoria literária. Depois de estudar diversos documentos, ele demonstra incríveis semelhanças na construção do discurso da prisão com a construção de um texto de ficção. O resultado é surpreendente.

Ele esclarece, por exemplo, que, em regra só existem dois discursos no flagrante (o do condutor, quem leva o preso à delegacia, e o do preso), apesar de existirem testemunhas obrigatórias. As prisões são geralmente feitas por policiais e as testemunhas dela são outros policiais. Naturalmente, eles se esforçam para confirmar o que foi dito pelo colega. Ás vezes, nem há esse esforço, porque o segundo depoimento se limita às palavras “ratifica o que disse o condutor”.

Outra constatação interessante é que as palavras do preso também são guiadas para um fim, através das perguntas que são feitas (e muitas vezes omitidas). Quando há negativa de autoria, os questionamentos seguintes tendem a tentar desacreditar aquela resposta. Se há confissão não se faz o mesmo.

O motivo parece claro. Uma investigação só é exitosa, quando aponta um possível culpado. O objetivo, portanto, de quem investiga, pode não ser a produção da verdade, mas sim apresentar um suspeito.

Para atingir aquele intento, é preciso preencher os vazios discursivos, os fatos sem explicação, ou cuja explicação se quer ocultar. Abundam, então, expressões como “atitude suspeita” ou “velho conhecido da polícia”. O que seria uma atitude suspeita? Quem é o velho conhecido da polícia? Conhecido como?

O livro de revela o óbvio e surpreende por isto: é óbvio, mas ninguém vê. Os autos de prisão em flagrante são facilmente manipuláveis. Não é culpa dos policiais, pois não existem discursos neutros. Um processo penal com base neste documento é, então, um eficaz meio para “prender os suspeitos de sempre”.

Na história que contei sobre a conversa com meu pai, os fatos não aconteceram exatamente daquela maneira. Suprimi alguns dados e criei outros, buscando um objetivo: tornar a leitura mais agradável. Sempre isto é feito por todos que proferem discursos, incluindo os policiais.

Nenhum dos dois livros citados prega o fim da prova testemunhal. Eles são poderosos, entretanto, para apontar a delicadeza da sua utilização. Os riscos tão grandes que envolvem uma fonte tão banalizada de condenação reforçam a necessidade do respeito à presunção da inocência e sua consequência lógica: a dúvida favorece o réu. O difícil é que os operadores do direito efetivamente (e não apenas no discurso) sigam esse princípio. Ler as duas obras pode ser, no mínimo, um grande estímulo.

Quanto à transmissão futebolística, aquele cearense teimoso não se convenceu sobre a falsa memória. Ainda sustenta que viu todos os verdes, amarelos, azuis e brancos da Copa de 70. O mistério, portanto, continua...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

João Ubaldo e a Crítica ao Direito Penal



O presente blog foi criado no mesmo dia em que finalizei a leitura da obra "Viva o Povo Brasileiro"(editora Objetiva,2007), de João Ubaldo Ribeiro. Enquanto me divertia com a história, pensava como era possível que eu, um baiano, não a tivesse lido antes. Em dezembro passado conclui a mesma coisa, ao conhecer a cidade de Lençóis.

Bem, em resumo, a deliciosa história é uma aula sobre a formação do nosso país e dos seus preconceitos sociais e raciais. Em uma narrativa não linear, parte-se da luta pela independência e em muitas idas e vindas, viajamos do século XVII ao século XX. Ubaldo fala da guerra do Paraguai, da abolição da escravatura, da proclamação da república e da guerra de canudos, porém, sempre sob várias óticas (especialmente a do povo explorado).

O que me intrigou bastante é que, talvez sem saber, o escritor toca em alguns dos pontos mais sensíveis do Direito Penal. Um exemplo são as teorias positivistas e suas derivadas, que tentam encontrar na natureza do homem a explicação para a criminalidade. Essas teorias, ainda muito fortes, embora haja um certo pudor em admitir a simpatia por elas, têm uma fragilidade essencial: consideram o direito penal, como dado pré-existente.

Explicando melhor: as leis não brotam espontâneamente, mas são criadas pelo homem. Não é raro que haja uma espécie de "arrependimento" por criminalizar ou não determinadas condutas. Por exemplo, escravizar alguém já foi alvo de estímulo e admiração, sendo considerada até mesmo por nobres reis, como algo essencial. Hoje é um delito. Por outro lado, o adultério já foi contemplado pelo Código Penal e hoje é mera questão particular. Os exemplos são infinitos e abrangem, ao menos parcialmente, todos os crimes (até mesmo o homicídio). Desse modo, como procurar dentro do homem, uma razão intrínseca para cometer delitos, se o próprio conceito de delitos é volátil?

Agora notem como João Ubaldo, com sua ironia impagável, narra o mesmo absurdo, ao falar dos conceitos de bem e mal, no século XVII:

"Mas a sabedoria dessas questões do Bem e do Mal foi posta em evidência e sobejamente provada quando tudo começou a acontecer conforme o previsto na doutrina. Antes da Redução, a aldeia era composta de gente muito ignorante, que nem sequer tinha uma lista pequena para o Bem e para o Mal e, na realidade, nem dispunha de palavras para designar essas duas coisas tão importantes. Depois da redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunta a testa de banha esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio, mulher má." (página 37)

Percebem como a mesma conduta, após o incremento de uma nova cultura dominante, passou a ser valorada? Antes, não havia problema se uma mulher andava nua, depois da doutrina, o mesmo ato se tornou reprovável e a sua autora também ganhou um atributo, tornando-se "má".

O mesmo acontece com a definição do caráter criminoso, para algumas condutas e alguns agentes. O que falar da conduta da venda de entorpecentes? Porque vender cerveja é lícito e vender maconha é um crime hediondo? É evidente que houve uma opção política de atribuir o valor negativo a uma conduta e não a outra, embora sejam equivalentes os prejuízos sociais que podem causar. Como alguém, mau, teria tendência a comercializar marijuana,enquanto outros, bons, apenas tendência ao tráfico de álcool?

"O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias." (epígrafe)

Tendo em vista esta realidade, tão bem retratada pelo grande escritor, parece claro que é invíavel procurar falhas de caráter biológicas ou adquiridas, para explicar a criminalidade. É muito mais interessante, como faz o livro, perguntar quem escolhe o que é o bem e o mal, ou analogamente, o lícito e o crime e sobre quem, invariavelmente, cai o segundo conceito. Antes de pensar no perfil criminoso, é melhor pensar em como esse perfil é criado.

"Viva o povo brasileiro! Viva nós!"(página459)