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sábado, 24 de abril de 2010

Dobrou? Para quem?




Em 23 de abril, a Folha de São Paulo e outros veículos de comunicação anunciaram algo muito visível para quem trabalha no sistema prisional. A população carcerária brasileira dobrou nos últimos nove anos. No mesmo período a população geral cresceu apenas 11,8%. Hoje são quase 500.000 encarcerados, segundo os dados oficiais. Confesso que fiquei confuso! Todo mundo sempre disse que precisávamos prender mais, para diminuir a criminalidade e que ninguém ia para cadeia neste país. Abarrotamos as celas e mesmo assim só se vê notícias de delitos! E cada vez mais graves!


Não vou discutir agora a falácia sustentada há 200 anos de que a prisão seria um instrumento eficaz de combate ao crime. No momento me prenderei a outra constatação. Dos 473.626 internos, 152.612, ou 44% ,ainda estão sendo processados. É bom saber disto, pra falar um pouco sobre um dos mais importantes e mais incompreendidos princípios do direito penal: a presunção de inocência.


Uma pena, especialmente de prisão, é um castigo gravíssimo que traz sequelas à vida de qualquer pessoa e também dos seus familiares. Sendo a sanção mais forte, requer muita cautela para ser aplicada. Em função disto, todos os ordenamentos democráticos dizem que alguém só pode ser considerado culpado, após esgotar todos os meios de defesa e ser julgado por autoridade competente e imparcial. Antes de superadas estas etapas, não há meio termo, todos são inocentes.


É por causa da presunção da inocência que a dúvida favorece o réu. Ninguém precisa provar a inexistência de culpa, mas aquele que acusa deve deixar clara a existência de um delito e identificar cabalmente o autor. Se houver algo obscuro, o caminho é a absolvição. O mal causado pelo delito não será anulado pela pena. O sofrimento da vítima não deixará de existir. A sanção, porém, implica na produção de uma nova violência, ainda que pelo Estado. Punir um inocente, por conseguinte, é muito mais indesejável que deixar de castigar um culpado.


A imprensa, todavia, costuma fazer uma grande confusão, que é transmitida para a população geral. Trata quem é acusado, ou investigado, como culpado. O "julgamento" é imediato gera de frustração na sociedade., porque quando o réu não é condenado, fica a sensação de impunidade. Faça um exercício mental e se pergunte se em algum momento passou pela sua cabeça, por exempo, que Alexandre Nardoni pudesse ser inocente. Provavelmente, não passou e você torceu pela condenação. Mas, calma, não se envergonhe. por isto A grande maioria dos juizes, com profundos conhecimentos jurídicos também faz pré-julgamentos e nem nota.


Continuando, se a presunção é de inocência e a pena é tão grave, o encarcerarmento de uma pessoa sem julgamento definitivo só pode socorrer excepcionalmente. Como explicar, então, que quase a metade dos presos brasileiros se encontrem nesta situação? O Código de Processo Penal diz que a prisão preventiva só poderia acontecer quando houver necessidade dela para garantir algumas dessas coisas: 1) que a produção de provas não será atrapalhada, 2) que o réu não vai fugir e 3) que não se abalaram a ordem pública e a econômica. Fora dessas hipóteses, a defesa deve ser exercida, em liberdade. Quem deve provar a necessidade do prisão é, obviamente, o acusador, afinal, o réu é, a priori, inocente.


Infelizmente, isto não passa de letra morta. É mais cômodo para o julgador prender que soltar. A primeira opção costuma agradar aos jornais. Daí se inverte a lógica do sistema e, ao invés de esperar a ação do Ministério Público, os juízes criaram, sem base legal, exigências a serem cumpridas pelo acusado, como condição para a soltura.


Em geral, os magistrados determinam que o acusado apresente comprovante de residência, comprovante de emprego e certidão negativa de antecedentes. A estranha explicação seria a de que precisam saber se o réu fala a verdade sobre a sua localização, se é trabalhador e se já teve passagens pela polícia , porque só assim terão certeza de que não fugirá, não destruirá provas e não perturbará a ordem pública.


Eu fico cada vez mais confuso! Além de se presumir a culpa do fato criminoso, ainda se presume que o réu fará esse monte de coisas, a menos que ele prove o contrário ( e olhe que nem estou discutindo que nada disto prova qualquer coisa). E a presunção de inocência, como fica? Pode até parecer que as exigências são banais, mas não são. Lembre que boa parte do nosso povo não tem residência, mais gente ainda está sem emprego e outro tanto de cidadãos nunca exerceu qualquer atividade formal. Pense ainda que as certidões de antecedentes, às vezes só se fornecem mediante o pagamento de taxas e não são entregues no mesmo dia.


Outro problema é definir o que seria a ordem pública. O conceito se adequa ao que o juiz quiser, é tudo e nada, ao mesmo tempo. Serve como justificativa coringa, para a manutenção da prisão. Às vezes, diz-se que garantir a ordem pública é evitar a descrença no judiciário. Mas, espere aí.,então se usaa liberdade dos outros como um joguete, com fim político institucional?


Àas vezes também se fala que garantir a ordem pública é prevenir delitos futuros. Neste caso, presume-se a culpa do crime em julgamento e já se faz o mesmo em relação a outros que ainda nem aconteceram. Por que meus professores, meus livros e até a constituição mentiram para mim, dizendo que havia presunção de inocência? Vivemos como no filme Minority Report? Agora é que eu não entendo mais nada!


De qualquer forma, perceber como as coisas funcionam é importante para desfazer outro mito: o de que quem é rico fica em liberdade porque pode contratar advogados caros. De fato, a inexistência da paridade de armas entre o Ministério Público e Defensoria Pública é um dado importante (os primeiros, acusadores, são em maior número e têm mais estrutura, por opção dos governos estaduais e federal).Esta seria, contudo, uma explicação simplista e confortável, principalmente para quem julga. Só que esconde o x do problema. A realidade é muito pior!


Preste atenção como o conjunto da obra, desde a inversão da presunção, às exigências judiciais desconexas com a lei, passando pelo conceito vago de ordem pública, dificulta a libertação do pobre e favorece a do rico. Quem terá mais facilidade para comprovar a residência fixa e o trabalho? Quem sofre assédio da polícia a vida inteira, e por isto tem mais chances de possuir a "ficha suja"? Quem mais sofre com o desemprego? Quem vive de bicos, sem qualquer registros na carteira de trabalho? Quem não é matriculado na escola? Quem não vai à universidade? Quem tem uma história de vida, uma organização familiar e até uma linguagem mais próximas do juiz? Quem tem , portanto, mais possibilidade de ser considerado um risco à sociedade, de acordo com a parcela desta que tem o poder de julgar?


Seja sincero, responda o que vem à cabeça... É o preto ou o branco? É o morador de um condomínio fechado ou o da favela? É o pedreiro ou o empresário? Quem te faria sentir medo na rua, José Roberto Arruda, acusado de desviar milhões, ou um maltrapilho acusado de furtar um tênis? Embora sempre exista a possibilidade de subornos, o fato é que as exigências inventadas selecionam determinada classe social.


Falando nisto, a liberdade do ex-governador de Brasília não é nenhuma injustiça. Até agora, ele é inocente. Cabe ao judiciário realizar um julgamento célere e aplicar uma pena, caso o Ministério Público prove que ele tem culpa. Injustiçados mesmo são os mais de 100.000 pobres presos, sem julgamento, basicamente porque são pobres e porque se adota uma opção política covarde, ilegal e preconceituosa. Enquanto não se compreender e respeitar a presunção da inocência, bilhões vão ser jogados no lixo, anualmente, para construção de prisões. Mesmo assim elas continuarão lotadas de pobres, enquanto a mídia clamará pelo endurecimento das leis como a "novíssima" solução para a eterna crise da segurança pública.




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