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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Mito da Modernidade 3. Cara de Bandido


Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!:

O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.

    1. CARA DE BANDIDO. O POSITIVISMO.

Enquanto aquele papagaio curupaca implica
E com o carimbo positivo da ciência
Que aprova e classifica.1

Desde o princípio, a Escola Clássica sofria oposição de estudiosos que não acreditavam na igualdade entre as pessoas e que achavam seus métodos dedutivos, por demais abstratos. Para eles, não era o crime que deveria ser estudado, mas sim o criminoso. A pena devia sim proteger a sociedade, mas agindo no criminoso, neutralizando-lhe e, principalmente, transformando-lhe, extirpando um mal interno.
Na metade do século XIX, o contexto histórico havia mudado. As monarquias caíam ou eram amplamente dominadas pela burguesia. Não havia mais discrepância entre os detentores do poder político e do poder econômico. Não eram mais eles que precisavam temer a arbitrariedade de terceiros com o poder de acusar, julgar e punir. Princípios protetivos dos réus, como legalidade e proporcionalidade não permaneciam tão importantes2. Ao contrário, pareciam obstáculos para a perseguição dos novos adversários. Henrique VIII não precisava destruir a religião, mas apenas dominá-la.
Era preciso evitar o surgimento da classe operária como força revolucionária. Se esta obtivesse a solidariedade internacional, os governantes também se organizariam internacionalmente para contra-atacá-la. O controle social internacional destes ‘resistentes’(que seriam qualificados como delinqüentes) tinha de ser organizado e um caminho para isso eram os congressos internacionais.3

Capitaneados pelo médico Cesare Lombroso, os positivistas se tornavam hegemônicos. Para eles, o método de estudo da criminologia deveria ser o empírico. A origem do delito seria biológica, embora não fossem descartadas as influências sociais. Deste modo, não haveria, ou seria muito reduzido, o espaço para o livre arbítrio. Pessoas cometeriam crimes porque não eram evoluídas. Elas não tinham escolhas, a sua natureza as impelia para o delito.
Nas pessoas sãs é livre a vontade, como diz a metafísica, mas são determinados por motivos que contrastam com o bem-estar social. Quando surgem, são mais ou menos freados por outros motivos, como o prazer do louvor, o temor da sanção, da infâmia, da Igreja, ou da hereditariedade, ou de prudentes hábitos impostos por uma ginástica mental continuada, motivos que não valem mais nos dementes morais ou nos delinqüentes natos, que logo caem na reincidência.4

Lombroso e seus seguidores realizavam pesquisas dentro das prisões, para descobrir as características físicas, anatômicas, intelectuais, psicológicas e morais, entre os criminosos. Descobrir-se-ia, assim, o perfil do infrator, que poderia ser facilmente identificável. Seria possível, por meio de estudos clínicos medir o grau de periculosidade de cada um. Logo, independentemente de fatos concretos a serem imputados, os perigosos precisariam ser afastados provisória ou definitivamente das pessoas normais.
Criticavam a prisão, porque seria incapaz de diminuir a reincidência. A pena não deveria ser castigo, mas sim, tratamento. A sua duração não devia ser simplesmente proporcional ao delito, mas medida pelas respostas às técnicas aplicadas. Especialistas precisariam comprovar a regeneração. Na base de tudo, sempre estava a consideração do criminoso como o anormal a ser normalizado, o selvagem a ser civilizado e, finalmente, o anti-social a ser ressocializado5.
Hoje, são evidentes fragilidades nas ideias positivistas. Em relação a características físicas, Lombroso apontou marcas curiosas. Uma delas era o canhotismo6, que seria mais freqüente entre os criminosos. Além de considerar canhotos como Charles Chaplin, Jimmie Hendrix, Paul McCartney, Lula, Machado de Assis e Bill Gates pessoas atávicas, desconsiderou que as famílias ricas educavam seus filhos a serem destros, porque o uso da mão esquerda era “coisa do diabo”. Outros sinais de selvageria seriam exatamente as habilidades úteis à espécie de delito cometido e que, por isto são treinadas e desenvolvidas para a sua prática, como a maior agilidade dos assaltantes7.
Quando aborda características morais, aponta traços que obviamente não são menos comuns nas pessoas não perseguidas penalmente, como ciúmes8, mentiras9 e vaidade.
Em lugar dos afetos familiares e sociais, que se encontram apagados ou desligados nos delinqüentes, as outras paixões restantes dominam com tenacidade. Primeiro entre todos, o orgulho, ou melhor, a consideração da própria pessoa, que notamos crescer no vulgo, na razão inversa do mérito. (...)
A vaidade dos delinqüentes supera à dos artistas, dos literatos e das mulheres galantes.10
Além de atingir em cheio pessoas que usam paletós e togas e exigem serem tratadas por doutor ou excelência, estas definições demonstram que a categorização não se sustenta, sem que haja a crença em um grupo de homens e mulheres impolutos, quase que como sacerdotes (no discurso dos sacerdotes) ou heróis românticos, encontrados atualmente apenas em novelas e desenhos animados.
Mas, o erro central de Lombroso, que seria reproduzido por quase todos os seus sucessores e opositores, foi buscar raízes universais na prática de crimes, quando a própria definição dos delitos varia no tempo e no espaço. Por outro lado, ele também não refletia que nem todos os que cometiam delitos eram presos. O seu objeto de estudo poderia, em tese, refletir o perfil das pessoas que são encarceradas, mas não o das criminosas11. Em locais onde a maioria dos perseguidos pela polícia é negra, a “cara de bandido” será negra. A conveniência deste equívoco para a justificação das desigualdades sociais, porém, é intensa.
Apesar das fortes resistências, particularmente dos penalistas, a escola positivista se impôs e teve as repercussões internacionais por todos conhecidas. Correspondia ao momento que se estava vivendo e às necessidades e transformações da ideologia liberal. Existiam desigualdades sociais, mas elas se justificavam porque existiam desigualdades humanas. Os pobres eram pobres porque biologicamente inferiores e o delinqüente era assim porque pertencia a uma linhagem humana distinta e inferior.12
Conseguindo se impor nos países centrais, onde a pobreza era exceção, as teorias logo chegaram, e com muito mais força, nos países periféricos. Na América Latina, cujo desenvolvimento se baseou no genocídio da população nativa e na escravidão dos africanos, dominados pela minoria de europeus e seus descendentes brancos, o positivismo não apenas se consolidou, como foi fundamental para o nosso modelo de acumulação de capital.
O panóptico benthaniano poderia ser o modelo de controle social programado ideologicamente como instrumento disciplinador durante a acumulação originária de capital na região central, mas o verdadeiro modelo ideológico para o controle social periférico ou marginal não foi o de Bentham mas o de Cesare Lombroso. Este modelo partia da idéia de inferioridade biológica tanto dos delinqüentes centrais como da totalidade das populações colonizadas, considerando, de modo análogo, biologicamente inferiores, tanto os moradores das instituições de seqüestro centrais (cárceres, manicômios), como os habitantes originários das imensas instituições de seqüestro coloniais (sociedades incorporadas ao processo de atualização histórica).13

Atualmente, falar em Lombroso gera o mesmo tipo de reação que falar na inquisição. Em ambos os casos, é difícil encontrar quem manifeste qualquer simpatia. Fala-se, com alívio e terror de coisas que ficaram em um passado distante. Entretanto, assim como nossos processos penais são permeados de práticas inquisitoriais, nossa forma de pensar políticas penais, de noticiar delitos, de investigar crimes14, de abordar suspeitos15, de formular acusações, de legitimar ou deslegitimar falas e de executar penas, deixa muito claro que Lombroso está bem vivo. Apesar dos equívocos fundamentais, são inúmeras as marcas positivistas, sintetizadas pela retumbante aceitação entre juristas16, jornalistas17, políticos18 e a população em geral, do paradigma etiológico.
No tópico anterior, Salo de Carvalho esclareceu que na discussão sobre o nascedouro da criminologia, a oposição entre Escola Clássica e Positivismo tem claros matizes ideológicos. O predomínio quase absoluto da corrente que aponta Lombroso como o fundador da criminologia19 é, assim, bastante revelador da sua contemporaneidade.

1 SEIXAS, Raul. Todo mundo explica.
2 MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do direito penal e para a crítica do discurso de resistência. Tradução de Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. P.127.
“No discurso liberal, as garantias penais, ademais da função discursiva formal e estratégica de encobrir os efeitos materiais reais causados a partir dos dispositivos da face oculta do discurso, têm dimensão múltipla. Para a classe poderosa, são garantias em sentido formal, e materialmente também funcionam como garantias”.
3 OLMO, Rosa del. A América Latina e sua criminologia. Tradução: Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia Moretzsohn. Revan. Rio de Janeiro: 2004. P.78.
4 LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. 1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo: 2010.p.223.
5CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação. Tradução: Sylvia Moretzohn.Rio de Janeiro: Revan, 2005.P. 48.
“Por seu turno, a reabilitação (ou ressocialização, reeducação, reinserção, readaptação, etc., são centenas os qualificativos similares) constitui o mais refinado instrumento ideológico de dominação. Através desses conceitos, que têm como pressuposto básico a inquestionabilidade dos valores representados no código, ou, ao menos, a presunção de um consenso em torno dos indivíduos de conduta dissonante (delinqüentes) serão forçados a aceitar de novo os valores rejeitados. Forçado no seu nível mais íntimo – e portanto – mais refinadamente violento – o do convencimento, o da aceitação profunda do sistema.”
6 LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. 1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo: 2010. P.51
7 LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. 1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo: 2010.p.51
8 LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. 1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo: 2010.p.61
9 LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. 1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo: 2010.p.62
10LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. 1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo: 2010.p. 113-114
11BARATTA, Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Traduçào Juarez Cirino. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.40.
12 OLMO, Rosa del. A América Latina e sua criminologia. Tradução: Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia Moretzsohn. Revan. Rio de Janeiro: 2004. P.89.
13ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas- A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Ravan,1991.P.77.
14PRADO, Daniel Nicory. Autos da Barca do Inferno- O discurso narrativo dos participantes da prisão em flagrante. Salvador: Faculdade Baiana de Direito, 2010, p.88-89.
Há uma particularidade nas perguntas quanto à pessoa do conduzido, ausente do depoimento das outras personagens: é a questão a respeito dos antecedentes criminais e do consumo de substâncias entorpecentes. (...) Fica claro que o objetivo é aproximá-lo do estereótipo do criminoso, do indivíduo desviante, marginal, que merece a resposta penal não só pelo ato supostamente ilícito pelo qual foi capturado, como, em tese, deveria ocorrer num Estado Democrático, em que vige o Direito Penal do Fato, mas pelo seu modo de vida, numa injustificável, porém ainda presente, reminiscência de uma ideologia fascista de punição do ‘ser’. “
15 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis-Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan,2003 p.102-103
O artifício da atitude suspeita faz parte do universo dessas medidas. Se estas medidas apontam para a contenção de uma periculosidade difusa, a atitude suspeita aponta para uma seletividade nas práticas da implementação dessas medidas. (...)Analisando a fala dos policiais o que se vê é que a ‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é o atributo do ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres pardos ou negros estão em atitude suspeita andando na rua, passando num táxi, sentados na grama do Aterro, na Pedra do Leme ou reunidos num campo de futebol”.
16 JAKOBS, Günter. Direito Penal do Inimigo. 2. ed..Organização e Introdução Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de Oliveira.Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.11-12.
As outras inúmeras regulações do Direito Penal permitem deduzir que, quando a expectativa de comportamento pessoal é frustrada de modo duradouro, desvanece a disposição para tratar o criminoso como pessoa.”
17ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas- A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Ravan,1991.P.129.
“Em nível de conjunturas nacionais, os meios de comunicação de massa têm a função de gerar a ilusão de eficácia do sistema, fazendo com que apenas a ameaça de morte violenta por ladrões ou de violação por quadrilhas integradas por jovens expulsos da produção industrial pela recessão sejam vistos como perigo.”

18 “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta quinta - feira (8) que os representantes de cartéis não têm cara de bandido nem de malandro. "O cidadão que pratica cartel não tem cara de bandido. Você pensa que está diante do maior defensor do livre comércio e de processos abrangentes de licitação. Mas, não está. Alguns eu tive a oportunidade de ver. Eles nunca têm cara de bandido nem de malandro", disse Lula, durante solenidade de comemoração do Dia Nacional do Combate a Cartéis, no Ministério da Justiça.”. Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?id=932164 , acesso em 28 de outubro de 2011.
19 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação. Tradução: Sylvia Moretzohn.Rio de Janeiro: Revan, 2005.P.42.
“A criminologia não nasce, como se quis afirmar repetidamente, com a escola positivista. Ao ser controle social- algo que trataremos de demonstrar aqui – devemos reconhecê-la na chamada escola clássica do direito penal, que fez a maior sistematização controladora da ordem de que se tem memória no campo repressivo.”

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