Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!:
O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo. 2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach. 7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.
- AS FACES DA MOEDA. CAMINHO PARA O POSITIVISMO.
“Há um tempo atrás se falava em bandidos. Há um tempo atrás se
falava em solução. Há um tempo atrás se falava em progresso. Há
um tempo atrás, eu vi na televisão”1.
2.1. Iluminismo
Em distintos períodos históricos, a humanidade valorizou mais ou
menos a razão, em detrimento da fé, das tradições e da crença na
existência de seres elevados e inferiores. A depender de
circunstâncias geográficas, políticas, econômicas ou pessoais, a
“razão” questionou ou até mesmo rompeu com a ordem
estabelecida. Em outros momentos, o racionalismo foi utilizado para
restabelecer aquela velha ordem derrubada, com o mesmo misticismo ou
a mesma crença em pessoas naturalmente melhores ou piores.
A história de Henrique VIII é bastante ilustrativa deste fenômeno.
Cansado da sua esposa, que não seria apta à procriação, o monarca
inglês tenta se divorciar. Seu desejo, todavia, é negado pela
igreja católica. Ele pondera que não faz sentido viver atrelado a
dogmas e tradições que o desagradam e que não escolheu.
Insatisfeito com a irracionalidade de ter que se manter casado com
alguém que não quer, rompe com o clero.
O resultado, porém, não é um Estado laico. O chefe da nação mais
poderosa do planeta cria uma nova religião, a Anglicana. Eliminada a
crença que não controlava, Henrique VIII adotava outra que possuía
uma grande virtude: era chefiada por ele mesmo. O problema, portanto,
não era de fé ou lógica, mas de domínio político.
O nascimento da criminologia surgiu da demanda por racionalidade nas
normas penais e nas punições. Era o período da revolução
iluminista2.
A burguesia conquistava o poder econômico, embora o poder político
ainda fosse da nobreza e do clero. Normas baseadas na afirmação da
autoridade real, ou da vontade divina não eram satisfatórias para
ela.
A ampla liberdade dos nobres (incluindo os juízes) e da igreja para
definir o que é crime, como deve ser o processo e qual deve ser a
punição desagradava aos burgueses. O crime precisava de uma
resposta racional. A resposta devia atender finalidades lógicas e,
para alcançar estas finalidades, impunha-se um método específico e
direcionado. Houve consenso quanto à finalidade: a defesa social, ou
seja, a ideia de proteger os cidadãos do crime, evitando que este
aconteça.
Houve divisão, porém, que marca a disputa pelo pioneirismo da
criminologia, na busca das bases do pensamento que apontaria o
caminho ideal para a defesa social. Para uns, era necessário seguir
a linha da filosofia e assim surgia a Escola Clássica. Para outros,
o correto era se apoiar nos métodos empíricos das ciências
naturais e assim surgia o positivismo.
Seja qual for a tese aceita, um
fato é certo: tanto a escola clássica quanto as escolas
positivistas realizam um modelo no qual a ciência jurídica e a
concepção geral do homem e da sociedade estão estreitamente
ligadas. Ainda que suas respectivas concepções de homens e da
sociedade sejam profundamente diferentes, em ambos os casos nos
encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de uma
ideologia de defesa social, como nó teórico e político fundamental
do sistema científico.3
Se tanto a(s) Escola(s) Clássica(s), quanto a(s) Escola(s)
Positivista(s) são frutos do Iluminismo4
e possuem a finalidade comum da realização da ideologia de defesa
social, seus conceitos e métodos levam a efeitos opostos. Enquanto
os clássicos tendem a limitar de algum modo o poder punitivo, os
positivistas permitem a sua expansão com contornos inimagináveis.
No projeto dos clássicos, foi possível visualizar a circunscrição
do terreno de incidência do controle penal, estabelecendo, pois,
importantes limites formais às violências dos aparelhos repressivos
do Estado, mas a construção criminológico-positivista fomentaria a
expansão ilimitada destes mecanismos punitivos, pulverizando o
controle com o objetivo de reforçá-lo.
Não se trataria, portanto,
apenas de opção ou requinte metodológico, como constantemente
defendem os seguidores de modelos científicos puros e verdadeiros,
mas da assunção ideológica de projetos com finalidades díspares,
as quais redundam invariavelmente na minimização ou potencialização
da(s) violência(s) programada(s).5
2.2. Escola Clássica
No século XVIII, a burguesia, classe em ascensão, era considerada
parte do povo. Especialmente após a revolução industrial e a
criação dos bancos, seu poder crescia gradativamente. A nobreza e o
clero, porém, detinham o controle absoluto sobre os julgamentos. A
classe detentora dos recursos econômicos e dona do discurso
intelectual e as classes que teriam a possibilidade de utilizar
critérios obscuros para definir infrações e reprimendas eram
diferentes.
Neste contexto, a Escola Clássica, cujo expoente máximo foi o
Marquês de Beccaria, conquistou mais adeptos entre os burgueses que
o positivismo. Sua principal obra, Dos Delitos e das Penas, mais do
que apresentar ideias originais, sintetizava as preocupações do
grupo. “É que, para não ser
um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo
essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas
aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e
determinada pela lei”.6
Sentindo-se potencial alvo da persecução penal, os burgueses
desejavam uma pena certa, determinada previamente por lei e não
fixada pelo desejo despótico do rei7.
Queriam ainda, para controlar os legisladores e os julgadores, que as
punições fossem racionalmente proporcionais aos delitos8.
As justificativas filosóficas assentavam, principalmente, sobre o
contrato social, em que se fundariam todas as relações da
sociedade. As pessoas se agrupariam em torno do Estado, abdicando de
parte da sua liberdade, por saber que, do contrário, a coexistência
selvagem levaria a que umas destruíssem as outras. No entanto, como
em qualquer negócio, o objetivo comum é o mínimo de prejuízo
possível.
Desse modo, somente a
necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade;
disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum
a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era
necessário para empenhar os outros e mantê-la na posse do
restante.9
Ao contrário da doutrina inquisitória medieval que a antecedeu, a
Escola Clássica não buscava a punição dos pensamentos criminosos
(ou pecaminosos). Apenas os atos concretos poderiam ser motivos de
sanção. “Se a intenção fosse punida, seria necessário ter não
apenas um Código particular para cada cidadão, mas uma nova lei
penal, para cada crime.” 10
Pressupunha que as pessoas eram iguais e racionais, movidas pelo seu
livre arbítrio. As penas serviriam para prevenir delitos futuros.
Para tanto, bastaria que o mal causado por ela fosse superior aos
bens que adviriam do crime, além de que houvesse a certeza da
punição. Não havia nada para tratar no apenado. Ele e a sociedade
aprenderiam com cada castigo que “o crime não compensa”.
Por fim, a pena certa, proporcional, determinável de uma maneira
quase matemática precisaria atingir um bem universalmente precioso.
A liberdade era o denominador comum. O numerador, por sua vez, também
seria valioso para todos: o tempo11.
De outro lado, a expansão do mercado industrial e a necessidade de
mão de obra desaconselhavam que os castigos incapacitassem as
pessoas para o trabalho. Ao contrário, deveriam ser usados para
produzir riquezas12.
Assim, abandonavam-se as penas, então, consideradas cruéis e
degradantes e consolidava-se como pena por excelência a, hoje,
sabidamente cruel e degradante, prisão.
2
YOUNG, Jock. A sociedade excludente-
Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro. Revan: 2002.p.58
3
BARATTA, Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do
Direito Penal: introdução à sociologia do direito
4
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia.
2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais,2008, p.84.
Clássicos e positivistas, na realidade, sào distintas faces da
moeda iluministas, tese e antítese que não podem superar esta
relação dialética de oposição senão quando produzem a síntese.
5
CARVALHO, Salo de. Antimanual
de Criminologia. 2.ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris,2008,p.144.
6
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.
São Paulo:Martin Claret, 2002, .p.107.
7
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.São Paulo:Martin
Claret, 2002, .p.22.
“O Juiz deve fazer
um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação
conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se
o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o fizer
por sua conta, tudo se torna incerto e obscuro”.
8
CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação.
Tradução: Sylvia Moretzohn.Rio de Janeiro: Revan, 2005.P.44.
“A legitimação do poder se produz, então, apenas pelo formal e
ritual cumprimento das estruturas jurídicas, habilmente elaboradas
para garantir os interesses da classe que historicamente emergiu
após o feudalismo, isto é, a burguesia”.
9
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.São Paulo:Martin
Claret, 2002, .p.19.
10
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.São Paulo:Martin
Claret, 2002, .p.71.
11
FOUCAULT Michel. Vigiar
e Punir. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.104.
12
RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição
e Estrutura Social. 2. ed.. Tradução
de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan,
2004, p.103.
“De todas as
motivações da nova ênfase no encarceramento como método de
punição, a mais importante era o lucro, tanto no sentido estrito
de fazer produtiva a própria instituição, quanto no sentido amplo
de tornar todo o sistema penal parte do programa mercantilista do
Estado. “
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