Poema-desabafo de autoria de Angélica Coelho de Oliveira, Defensora Pública da comarca de Brumado, no interior da Bahia, que resume bem a dor de exercer essa profissão e ver os estados sem nenhuma vontade política para mudar o quadro. "Defensoria
Trinta assistidos por dia, Essa é a média de atendimentos.
Assuntos? os mais diversos:
divórcios, cobranças, despejo,
possessórias de todo tipo,
e como não podia deixar de ser,
o velho pleito de alimentos.
Não conto com estagiário,
Tampouco com secretário,
Ainda faço audiências, dou cientes,
Elaboro petições,
Produzo réplicas e também contestações.
A tudo isso se soma,
a parte administrativa:
Ofícios, correspondências,
processos, Correios, água,
a limpeza, o cafezinho...
Ufa! Ainda bem que sou ativa.
Não há espaço,
A impressora emperra,
Leva dias pra consertar.
Falta privacidade ao povo,
pra sua história contar.
O assistido clama, grita
e às vezes até xinga,
mas nada disso adianta,
não há pra quem reclamar, reivindicar, suplicar.
Voce é Defensor! Pior, no interior.
Ainda não se acostumou?
Tem mais é que se virar!"
Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!:
O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo. 2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach. 7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.
A industrialização, a expansão populacional e o crescimento das
grandes cidades apresentaram consequências. Os contatos
interpessoais se espalharam no espaço e, por conseguinte, as
alternativas de conduta também. Ao mesmo tempo, a sensação de
anonimato aumentava. As instâncias de controle informal, como
família, religião e comunidade perderam força.
Nesse contexto, a cidade de Chicago do início do século XX era
paradigmática, pelo potencial fabril e por ser polo atrativo de
imigrantes das mais variadas nacionalidades. Lá, consolidou-se um
núcleo de pesquisas, batizado de escola de Chicago, ou Ecologia
Criminal, que visava contraditar as explicações positivistas acerca
das origens do delito em aspectos pessoais.
Para tanto, usaram como base a teoria das zonas concêntricas de Park
e Burgess. Eles notaram que Chicago, assim como a maioria das cidades
norte-americanas, tinha um formato radial, onde no centro (loop)
estavam as fábricas e o comércio. A segunda zona, (Slum) era sempre
invadida pelo loop e, por isto, bastante degradada. Tratava-se da
única opção de moradia para os mais pobres e os imigrantes
recém-chegados. A partir daí, quanto mais se afastava do centro,
mais organizada era a região e mais ricos os seus habitantes.2
Partindo da hipótese de que a distribuição da criminalidade era
desigual, os cânones da Escola de Chicago, Clifford Shaw e Henry
McKay verificaram os documentos da polícia, de 1900 a 1940, em mais
de 60.000 casos individuais.3
Era exatamente naquela segunda zona que se concentrava quase a
totalidade dos delitos conhecidos pelo Estado.
As áreas de delinquência eram as mais fisicamente degradadas. As
ruas eram mais sujas, as casas menores e feias, as condições
sanitárias piores, o acesso à saúde precário, as escolas com pior
estrutura e qualidade. A população, porém, era rotativa, seguindo
as ondas migratórias. Um grupo chegava e lá permanecia até
conseguir progredir financeiramente e mudar para as zonas melhores.
Assim, chineses, negros e europeus se alternavam como seus
habitantes.
As taxas de criminalidade mantinham-se estáveis, independente dos
ocupantes de cada momento. Se considerarmos que as pessoas (e suas
heranças genéticas) variavam, é fácil concluir que os desvios,
constantes, só poderiam ser fruto da outra constante: a degradação.
Era (ou deveria ser) uma ferida de morte nas teorias lombrosianas.
Escapava à Escola de Chicago, entretanto, o fato de que as
estatísticas oficiais, em que basearam a suas pesquisas não
refletiam a realidade. Desconhecia-se, na época, o conceito de
cifras ocultas. Também não se falava sobre a abordagem diferenciada
da polícia em cada região, concentrando seus esforços em umas e
imunizando outras.
Apesar de radicalmente opostos ao determinismo biológico dos
positivistas, os estudiosos da Escola de Chicago criaram outra
espécie de determinismo, o ecológico. Associaram o crime, genérico,
à pobreza, à falta de educação e à ausência das famílias, por
exemplo, quando alguns delitos exigem riqueza e boa instrução (como
os tributários) ou ocorrem, não raramente, dentro das famílias
(como os delitos sexuais e os homicídios).
Como consequência, ao pregar o combate à pobreza, o seu discurso
serviria de baliza para ações violentas contra as próprias
populações marginalizadas. Assim como para os positivistas a
intervenção no criminoso se justificava para curá-lo de um
problema individual cujas consequências ele não poderia evitar, a
intervenção contra pessoas pobres é justificada para curar a
comunidade em si de um mal, cujas consequências elas não poderiam
evitar.
Nos Estados Unidos surgiria, e depois se espalharia pelo mundo, a
política de Tolerância Zero. Baseava-se em parte da teoria das
janelas quebradas4,
com forte inspiração na Escola de Chicago, segundo a qual as
pequenas desordens, como uma janela quebrada, ou uma pichação
estimulariam as grandes desordens e os crimes violentos.
Segundo, no nível comunitário,
desordem e crime são intrinsecamente ligados, em um tipo de
sequência de desenvolvimento. Psicólogos sociais e policiais tendem
a concordar que se uma janela em um prédio for quebrada e deixada
sem concerto, todas as outras janelas logo serão quebradas5.
Seria necessária uma dura e inafastável repressão às pequenas
desordens praticadas pelas populações carentes e que, muitas vezes,
eram a sua única fonte de sobrevivência, como a prostituição, o
comércio informal e, principalmente, a venda e o uso de drogas.
Essa política é profundamente
discriminatória, visto que se assenta numa equivalência entre se
comportar fora da norma e ser um fora-da-lei, e tem como alvo os
bairros e populações suspeitos de antemão, se não considerados
culpados por princípio, por deficiências morais, bem como por
infrações legais.6
Mais recentemente, no Brasil, nova política claramente inspirada na
Escola de Chicago e também na teoria das janelas quebradas,
originaria as Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro e
suas cópias, em outros Estados. O projeto original foi implantado
pelo governador que chamou uma favela carioca de fábrica de
marginais.
Você pega o número de filhos
por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é
padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão.
Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta.7
Trata-se, em resumo, da ocupação militar de regiões consideradas
violentas (e, não por acaso, próximas de redutos turísticos8,
como o Copacabana, no Rio de Janeiro, ou a Barra, em Salvador),
associada à oferta de infra-estrutura até então inexistente.
Uma engenhosa arquitetura publicitária se esforça para omitir o
fato de que a entrada da PM, e não raro do exército, obviamente é
violenta e pouco controlada pela lei. São instaladas bases policiais
cujos agentes intervêm em todos os detalhes do cotidiano e atacam,
como na tolerância zero, os meios de sobrevivência dos
marginalizados.
Tudo isso nos leva ao ponto
final do que eu chamo de gestão policial da vida, imposta aos pobres
em seu cotidiano, comprovando aquelas teses, como a de Loic
Wacquant, que apontam o deslocamento da atenção social do Estado
para uma gestão penal da pobreza. Nunca a expressão de Edson
Passetti se adequou tanto à realidade dos bairros pobres e favelas:
o controle a céu aberto, naquela perspectiva do estado de exceção
de Agamben. A idéia de “campo”, área de controle penal total
sobre o cotidiano de seus moradores, agora tutelados em todos os
aspectos diretamente pela polícia. Tendo a pacificação do Alemão
como ato simbólico de um projeto de cidade, a mídia carioca
investiu ardilosamente na policização da vida em seus mínimos
detalhes, tendo o BOPE como o grande timoneiro.
(...)
Nesses anos todos de reflexão
sobre a questão criminal eu já tinha me dado conta da necessidade
de manter um inimigo à mão na passagem da ditadura para essa
democracia formal em que vivemos. Constatei também a importância do
medo para o disciplinamento dos pobres no capitalismo de barbárie.
Falei anteriormente do deslocamento de uma naturalização da
truculência policial para o seu elogio; isso é o mais assustador
dos tempos em que vivemos.9
A associação de crime e pobreza, sem questionamentos de ordem
política e econômica, leva a uma política não de auxílio, mas de
guerra aos pobres, como demonstra o papel central dos militares, a
utilização do exército e o uso de expressões bélicas. Ademais, a
condição de marginalidade passa a servir como indício de culpa no
processo penal e, ironicamente, para uma teoria que tentou refutar o
positivismo, como sinal de periculosidade, na execução da pena.
2
A estrutura espacial das grandes cidades brasileiras, atualmente, é
bastante diferente. Nem sempre a estrutura é radial. Muitas vezes,
bairros ricos e pobres se alternam e as periferias costumam ser os
locais mais degradados. O importante da pesquisa, porém, é
delimitar espaços notadamente distintos, onde há maior ou menor
degradação e as diferenças na distribuição da criminalidade
entre eles. Podemos perfeitamente transpor a descrição do Slum,
para zona leste de São Paulo, os morros cariocas, as favelas das
capitais nordestinas, onde se concentram os imigrantes e pobres em
geral.
3
DIAS, Jorge Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa Andrade.
Criminologia- O Homem Delinqüente e a Sociedade Criminógena.
Coimbra: Coimbra Editora, 1995 , p.276.
4
YOUNG, Jock. A sociedade excludente-
Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro. Revan: 2002.p.188.
“Não quero fazer
aqui uma crítica desta filosofia; estou dizendo que isto não é um
programa de tolerância zero contra todo o tipo de crimes, que
acredita que a polícia é o ator chave na criação de uma
sociedade ordeira e que acha que a ‘limpeza nas ruas’vai
produzir resultados miraculosos e imediatos. Trata-se de uma teoria
mais sutil, que prevê um papel mais marginal para a polícia e
situa a fonte da ordem social em partes mais fundamentais da
estrutura social.”
Second, at the community level, disorder and crime are
usually inextricably linked, in a kind of developmental sequence.
Social psychologists and police officers tend to agree that if a
window in a building is broken and is left unrepaired, all the rest
of the windows will soon be broken.
6
WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos
Estados Unidos [ A onda punitiva].3.ed. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P.442
As redes de supermercados brasileiros fizeram um levantamento do quanto é perdido com furtos ao longo do ano. R$ 1,5 bilhão por ano é o valor do prejuízo, que é repassado, em parte, para o consumidor. Mas engana-se quem acha que alimentos da cesta básica são os principais itens furtados. O chocolate é o campeão, segundo a Associação Brasileira de Supermercados. O pacote de carne é o segundo produto de uma lista inclui salgadinhos, lâmina de barbear, desodorante e bebidas. Com isso, os gastos com segurança têm aumentado gradativamente, embora isso não garanta a inexistência do ato. Mesmo em um supermercado com 108 câmeras, são registrados, em média, 15 furtos por mês. "Desde o produtor até o consumidor final é afetado quando existe a perda do produto. Este valor tem que ser composto novamente no produto", diz Geraldo Marques, diretor da Associação Brasileira de Supermercado. Outros dispositivos de segurança têm sido testados, mas alguns donos de negócios admitem que preferem deixar de vender certos produtos, que são os maiores alvos de furtos."
A manchete é impactante. 1,5 Bilhão é muito dinheiro. Mas, é bom ir além do que grita na matéria e analisar as letras miúdas, sem esquecer o que não é dito expressamente. Que conclusões podemos tirar e que cuidados, precisamos ter, ao ler esta matéria. E o que esta leitura diz de nós mesmos.
Primeiro, vamos a uma informação importante. Quem fez essa pesquisa? Com que métodos? Onde foi publicado? Quem assina? As "redes de supermercado"?
Outro silêncio que diz muito: Quantos supermercados existem no Brasil? Qual o lucro anual desses mesmos supermercados? Se só o prejuízo com os furtos é de 1,5 Bilhão (em caixa alta) e, mesmo assim, eles se mantém funcionando, qual será a cifra dos lucros que auferem? Se os números estiverem certos, talvez só com o que ganham os donos de supermercados brasileiros seja possível alimentar a humanidade inteira.
Agora, uma afirmação que esconde outro silêncio. A matéria adverte: "Mas engana-se quem acha que alimentos da cesta básica são os principais itens furtados. O chocolate é o campeão, segundo a Associação Brasileira de Supermercados. O pacote de carne é o segundo produto de uma lista inclui salgadinhos, lâmina de barbear, desodorante e bebidas". A frase oculta é "não me venham com essa conversinha de que as pessoas furtam pra comer. Ninguém come lâmina de barbear e desodorante. Esses safados só querem fazer churrasco na laje, barbeados, cheirosos, tomando todas e ainda com chocolate de sobremesa".
Mas, vamos esquecer os silêncios e considerar que nossos briosos empreendedores sofrem tanto com os malditos e ambiciosos gatunos. Teríamos um problema. Supermercados brasileiros sofreriam um prejuízo capaz de matar a fome mundial, por furtos de produtos como chocolates, carne, desodorante e cerveja. E agora? Sob que ótica podemos ver isto?
Uma possibilidade seria se unir aos empresários e reclamar da falta de segurança. Pedir penas maiores e mais céleres. Bradar contra a justiça que solta as pessoas que furtaram bens de pequeno valor. E, principalmente, pedir a prisão dessas pessoas, que não aprendem e vão continuar fazendo isto, eternamente. Afinal de contas, elas são más, ou, no mínimo, preguiçosas.
Outra alternativa seria refletir sobre um dado realmente impactante: tem gente (pessoas, seres humanos) que furta desodorantes. Por que você não imita eles e pega esses bens nos mercados e esconde nos bolsos? Não é porque é proibido, porque tem medo de ser preso. É porque o custo deles é insignificante diante do que você possui, do que você ganha e do que você precisa. São poucas coisas coisas que fazem alguém pegar sorrateiramente um chocolate, em uma loja. As principais são: brincadeira infantil, cleptomania e miséria. O brado, então, não se voltaria contra quem furtou, mas contra um estado de coisas que admite a miséria.
Não existe leitura neutra quanto a isto. Reagir, com ou sem indignação, significa decidir um lado. Pode-se ficar com quem se dá ao luxo de perder 1,5 bilhão por ano e mesmo assim tem lucro.Aí, vamos pedir a punição de quem furta de modo contumaz, ou a punição de quem furta pequenos bens para comprar drogas baratas. A outra alternativa é ficar ao lado de quem acha que R$2,00, R$10,00, ou R$50,00 são valiosos demais e prefere assumir o risco de ser preso, humilhado, espancado ou preso a gastá-los em lâminas de barbear, chocolates, cervejas ou desodorantes.
Eu já escolhi o meu lado. O jornal, com os ditos e não ditos, escolheu o dele. Vamos lá, escolha o seu.
Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!:
O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo. 2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach. 7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.
Desde o princípio, a Escola Clássica sofria oposição de
estudiosos que não acreditavam na igualdade entre as pessoas e que
achavam seus métodos dedutivos, por demais abstratos. Para eles, não
era o crime que deveria ser estudado, mas sim o criminoso. A pena
devia sim proteger a sociedade, mas agindo no criminoso,
neutralizando-lhe e, principalmente, transformando-lhe, extirpando um
mal interno.
Na metade do século XIX, o contexto histórico havia mudado. As
monarquias caíam ou eram amplamente dominadas pela burguesia. Não
havia mais discrepância entre os detentores do poder político e do
poder econômico. Não eram mais eles que precisavam temer a
arbitrariedade de terceiros com o poder de acusar, julgar e punir.
Princípios protetivos dos réus, como legalidade e proporcionalidade
não permaneciam tão importantes2.
Ao contrário, pareciam obstáculos para a perseguição dos novos
adversários. Henrique VIII não precisava destruir a religião, mas
apenas dominá-la.
Era preciso evitar o surgimento
da classe operária como força revolucionária. Se esta obtivesse a
solidariedade internacional, os governantes também se organizariam
internacionalmente para contra-atacá-la. O controle social
internacional destes ‘resistentes’(que seriam qualificados como
delinqüentes) tinha de ser organizado e um caminho para isso eram os
congressos internacionais.3
Capitaneados pelo médico Cesare Lombroso, os positivistas se
tornavam hegemônicos. Para eles, o método de estudo da criminologia
deveria ser o empírico. A origem do delito seria biológica, embora
não fossem descartadas as influências sociais. Deste modo, não
haveria, ou seria muito reduzido, o espaço para o livre arbítrio.
Pessoas cometeriam crimes porque não eram evoluídas. Elas não
tinham escolhas, a sua natureza as impelia para o delito.
Nas pessoas sãs é livre a
vontade, como diz a metafísica, mas são determinados por motivos
que contrastam com o bem-estar social. Quando surgem, são mais ou
menos freados por outros motivos, como o prazer do louvor, o temor da
sanção, da infâmia, da Igreja, ou da hereditariedade, ou de
prudentes hábitos impostos por uma ginástica mental continuada,
motivos que não valem mais nos dementes morais ou nos delinqüentes
natos, que logo caem na reincidência.4
Lombroso e seus seguidores realizavam pesquisas dentro das prisões,
para descobrir as características físicas, anatômicas,
intelectuais, psicológicas e morais, entre os criminosos.
Descobrir-se-ia, assim, o perfil do infrator, que poderia ser
facilmente identificável. Seria possível, por meio de estudos
clínicos medir o grau de periculosidade de cada um. Logo,
independentemente de fatos concretos a serem imputados, os perigosos
precisariam ser afastados provisória ou definitivamente das pessoas
normais.
Criticavam a prisão, porque seria incapaz de diminuir a
reincidência. A pena não deveria ser castigo, mas sim, tratamento.
A sua duração não devia ser simplesmente proporcional ao delito,
mas medida pelas respostas às técnicas aplicadas. Especialistas
precisariam comprovar a regeneração. Na base de tudo, sempre estava
a consideração do criminoso como o anormal a ser normalizado, o
selvagem a ser civilizado e, finalmente, o anti-social a ser
ressocializado5.
Hoje, são evidentes fragilidades nas ideias positivistas. Em relação
a características físicas, Lombroso apontou marcas curiosas. Uma
delas era o canhotismo6,
que seria mais freqüente entre os criminosos. Além de considerar
canhotos como Charles Chaplin, Jimmie Hendrix, Paul McCartney, Lula,
Machado de Assis e Bill Gates pessoas atávicas, desconsiderou que as
famílias ricas educavam seus filhos a serem destros, porque o uso da
mão esquerda era “coisa do diabo”. Outros sinais de selvageria
seriam exatamente as habilidades úteis à espécie de delito
cometido e que, por isto são treinadas e desenvolvidas para a sua
prática, como a maior agilidade dos assaltantes7.
Quando aborda características morais, aponta traços que obviamente
não são menos comuns nas pessoas não perseguidas penalmente, como
ciúmes8,
mentiras9
e vaidade.
Em lugar dos afetos familiares e
sociais, que se encontram apagados ou desligados nos delinqüentes,
as outras paixões restantes dominam com tenacidade. Primeiro entre
todos, o orgulho, ou melhor, a consideração da própria pessoa, que
notamos crescer no vulgo, na razão inversa do mérito. (...)
A vaidade dos delinqüentes
supera à dos artistas, dos literatos e das mulheres galantes.10
Além de atingir em cheio pessoas que usam paletós e togas e exigem
serem tratadas por doutor ou excelência, estas definições
demonstram que a categorização não se sustenta, sem que haja a
crença em um grupo de homens e mulheres impolutos, quase que como
sacerdotes (no discurso dos sacerdotes) ou heróis românticos,
encontrados atualmente apenas em novelas e desenhos animados.
Mas, o erro central de Lombroso, que seria reproduzido por quase
todos os seus sucessores e opositores, foi buscar raízes universais
na prática de crimes, quando a própria definição dos delitos
varia no tempo e no espaço. Por outro lado, ele também não
refletia que nem todos os que cometiam delitos eram presos. O seu
objeto de estudo poderia, em tese, refletir o perfil das pessoas que
são encarceradas, mas não o das criminosas11.
Em locais onde a maioria dos perseguidos pela polícia é negra, a
“cara de bandido” será negra. A conveniência deste equívoco
para a justificação das desigualdades sociais, porém, é intensa.
Apesar das fortes resistências,
particularmente dos penalistas, a escola positivista se impôs e teve
as repercussões internacionais por todos conhecidas. Correspondia ao
momento que se estava vivendo e às necessidades e transformações
da ideologia liberal. Existiam desigualdades sociais, mas elas se
justificavam porque existiam desigualdades humanas. Os pobres eram
pobres porque biologicamente inferiores e o delinqüente era assim
porque pertencia a uma linhagem humana distinta e inferior.12
Conseguindo se impor nos países centrais, onde a pobreza era
exceção, as teorias logo chegaram, e com muito mais força, nos
países periféricos. Na América Latina, cujo desenvolvimento se
baseou no genocídio da população nativa e na escravidão dos
africanos, dominados pela minoria de europeus e seus descendentes
brancos, o positivismo não apenas se consolidou, como foi
fundamental para o nosso modelo de acumulação de capital.
O panóptico benthaniano poderia
ser o modelo de controle social programado ideologicamente como
instrumento disciplinador durante a acumulação originária de
capital na região central, mas o verdadeiro modelo
ideológico para o controle social periférico ou marginal não
foi o de Bentham mas o de Cesare Lombroso. Este modelo partia da
idéia de inferioridade biológica tanto dos delinqüentes centrais
como da totalidade das populações colonizadas, considerando, de
modo análogo, biologicamente inferiores, tanto os moradores das
instituições de seqüestro centrais (cárceres, manicômios), como
os habitantes originários das imensas instituições de seqüestro
coloniais (sociedades incorporadas ao processo de atualização
histórica).13
Atualmente, falar em Lombroso gera o mesmo tipo de reação que falar
na inquisição. Em ambos os casos, é difícil encontrar quem
manifeste qualquer simpatia. Fala-se, com alívio e terror de coisas
que ficaram em um passado distante. Entretanto, assim como nossos
processos penais são permeados de práticas inquisitoriais, nossa
forma de pensar políticas penais, de noticiar delitos, de investigar
crimes14,
de abordar suspeitos15,
de formular acusações, de legitimar ou deslegitimar falas e de
executar penas, deixa muito claro que Lombroso está bem vivo. Apesar
dos equívocos fundamentais, são inúmeras as marcas positivistas,
sintetizadas pela retumbante aceitação entre juristas16,
jornalistas17,
políticos18
e a população em geral, do paradigma etiológico.
No tópico anterior, Salo de Carvalho esclareceu que na discussão
sobre o nascedouro da criminologia, a oposição entre Escola
Clássica e Positivismo tem claros matizes ideológicos. O predomínio
quase absoluto da corrente que aponta Lombroso como o fundador da
criminologia19
é, assim, bastante revelador da sua contemporaneidade.
2
MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos para a luta pela modernização
e expansão do direito penal e para a crítica do discurso de
resistência. Tradução de Érika Mendes de Carvalho. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. P.127.
“No discurso liberal, as garantias penais, ademais da função
discursiva formal e estratégica de encobrir os efeitos materiais
reais causados a partir dos dispositivos da face oculta do discurso,
têm dimensão múltipla. Para a classe poderosa, são garantias em
sentido formal, e materialmente também funcionam como garantias”.
3OLMO, Rosa del. A
América Latina e sua criminologia.
Tradução: Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia Moretzsohn. Revan.
Rio de Janeiro: 2004. P.78.
4LOMBROSO, Cesare. O
homem delinqüente. 1. reimpressão.
Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo:
2010.p.223.
5CASTRO,
Lola Anyar de. Criminologia da Libertação. Tradução:
Sylvia Moretzohn.Rio de Janeiro: Revan, 2005.P. 48.
“Por seu turno, a reabilitação (ou
ressocialização, reeducação, reinserção, readaptação, etc.,
são centenas os qualificativos similares) constitui o mais refinado
instrumento ideológico de dominação. Através desses conceitos,
que têm como pressuposto básico a inquestionabilidade dos valores
representados no código, ou, ao menos, a presunção de um consenso
em torno dos indivíduos de conduta dissonante (delinqüentes) serão
forçados a aceitar de novo os valores rejeitados. Forçado no seu
nível mais íntimo – e portanto – mais refinadamente violento –
o do convencimento, o da aceitação profunda do sistema.”
6LOMBROSO, Cesare. O
homem delinqüente. 1. reimpressão.
Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo:
2010. P.51
7LOMBROSO, Cesare. O
homem delinqüente. 1. reimpressão.
Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo:
2010.p.51
8LOMBROSO, Cesare. O
homem delinqüente. 1. reimpressão.
Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo:
2010.p.61
9LOMBROSO, Cesare. O
homem delinqüente. 1. reimpressão.
Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora. São Paulo:
2010.p.62
10LOMBROSO,
Cesare. O homem delinqüente.
1. reimpressão. Tradução: Sebastião José Roque. Ícone Editora.
São Paulo: 2010.p. 113-114
11BARATTA,
Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito
Penal: introdução à sociologia do direito penal. Traduçào
Juarez Cirino. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.40.
12OLMO, Rosa del. A
América Latina e sua criminologia.
Tradução: Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia Moretzsohn. Revan.
Rio de Janeiro: 2004. P.89.
13ZAFFARONI,
Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas- A perda de
legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa e
Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Ravan,1991.P.77.
14PRADO,
Daniel Nicory. Autos da Barca do
Inferno- O discurso narrativo dos
participantes da prisão em flagrante. Salvador: Faculdade Baiana de
Direito, 2010, p.88-89.
“Há uma particularidade nas perguntas quanto
à pessoa do conduzido, ausente do depoimento das outras
personagens: é a questão a respeito dos antecedentes criminais e
do consumo de substâncias entorpecentes. (...) Fica claro que o
objetivo é aproximá-lo do estereótipo do criminoso, do indivíduo
desviante, marginal, que merece a resposta penal não só pelo ato
supostamente ilícito pelo qual foi capturado, como, em tese,
deveria ocorrer num Estado Democrático, em que vige o Direito Penal
do Fato, mas pelo seu modo de vida, numa injustificável, porém
ainda presente, reminiscência de uma ideologia fascista de punição
do ‘ser’. “
15BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis
Ganhos Fáceis-Drogas e Juventude
Pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan,2003 p.102-103
“O artifício da
atitude suspeita
faz parte do universo dessas medidas. Se estas medidas apontam para
a contenção de uma periculosidade difusa, a atitude suspeita
aponta para uma seletividade nas práticas da implementação dessas
medidas. (...)Analisando a fala dos policiais o que se vê é que a
‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não
é o atributo do ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, pertencer
a um determinado grupo social; é isso que desperta suspeitas
automáticas. Jovens pobres pardos ou negros estão em atitude
suspeita andando na rua, passando num táxi, sentados na grama do
Aterro, na Pedra do Leme ou reunidos num campo de futebol”.
16JAKOBS, Günter. Direito
Penal do Inimigo. 2. ed..Organização
e Introdução Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de Oliveira.Tradução
de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009, p.11-12.
“As outras inúmeras
regulações do Direito Penal permitem deduzir que, quando a
expectativa de comportamento pessoal é frustrada de modo duradouro,
desvanece a disposição para tratar o criminoso como pessoa.”
17ZAFFARONI,
Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas- A perda de
legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa e
Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Ravan,1991.P.129.
“Em nível de conjunturas nacionais, os meios de comunicação de
massa têm a função de gerar a ilusão de eficácia do sistema,
fazendo com que apenas a ameaça de morte violenta por ladrões ou
de violação por quadrilhas integradas por jovens expulsos da
produção industrial pela recessão sejam vistos como perigo.”
18
“O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva disse nesta quinta - feira (8)
que os representantes de cartéis não têm cara de bandido nem de
malandro. "O cidadão que pratica cartel não tem cara de
bandido. Você pensa que está diante do maior defensor do livre
comércio e de processos abrangentes de licitação. Mas, não está.
Alguns eu tive a oportunidade de ver. Eles nunca têm cara de
bandido nem de malandro", disse Lula, durante solenidade de
comemoração do Dia Nacional do Combate a Cartéis, no Ministério
da Justiça.”. Disponível em
http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?id=932164
, acesso em 28 de outubro de 2011.
19
CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação.
Tradução: Sylvia Moretzohn.Rio de Janeiro: Revan, 2005.P.42.
“A criminologia não nasce, como se quis afirmar repetidamente,
com a escola positivista. Ao ser controle social- algo que
trataremos de demonstrar aqui – devemos reconhecê-la na chamada
escola clássica do direito penal, que fez a maior sistematização
controladora da ordem de que se tem memória no campo repressivo.”
O réu, acusado de tráfico de drogas, responde às perguntas, para qualificá-lo, no interrogatório:
-Estado Civil?
- EMBOLADO.
- Nome de sua companheira:
- FULANA.
- E o sobrenome?
- SEI NÃO.
Há quanto tempo convive com ela?
- 5 ANOS.
Seu defensor público, o tenista e craque de futebol, André Maia, ouve a tudo atentamente. Nenhum detalhe dito passa despercebido. Sua tese é minuciosamente preparada. Já sabe o que alegará em cada momento processual. Mas, ao fim da audiência, não perde a oportunidade de usar um argumento extra-autos, para ajudar a firmar o convencimento do julgador.
- Excelência, no caso de uma eventual e improvável condenação, tais declarações do réu devem ser levadas em consideração na dosimetria da pena.
O promotor estranhou e tentou desqualificar o argumento.
- A favor, ou contra ele, doutor?
De pronto, ouviu a resposta.
- Claro que a favor, doutor! Se ele não sabe o nome da companheira é porque, durante os cinco anos desse longo relacionamento, só a chama, carinhosamente, por "meu amor".
Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!:
O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo. 2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach. 7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.
AS FACES DA MOEDA. CAMINHO PARA O POSITIVISMO.
“Há um tempo atrás se falava em bandidos. Há um tempo atrás se
falava em solução. Há um tempo atrás se falava em progresso. Há
um tempo atrás, eu vi na televisão”1.
2.1. Iluminismo
Em distintos períodos históricos, a humanidade valorizou mais ou
menos a razão, em detrimento da fé, das tradições e da crença na
existência de seres elevados e inferiores. A depender de
circunstâncias geográficas, políticas, econômicas ou pessoais, a
“razão” questionou ou até mesmo rompeu com a ordem
estabelecida. Em outros momentos, o racionalismo foi utilizado para
restabelecer aquela velha ordem derrubada, com o mesmo misticismo ou
a mesma crença em pessoas naturalmente melhores ou piores.
A história de Henrique VIII é bastante ilustrativa deste fenômeno.
Cansado da sua esposa, que não seria apta à procriação, o monarca
inglês tenta se divorciar. Seu desejo, todavia, é negado pela
igreja católica. Ele pondera que não faz sentido viver atrelado a
dogmas e tradições que o desagradam e que não escolheu.
Insatisfeito com a irracionalidade de ter que se manter casado com
alguém que não quer, rompe com o clero.
O resultado, porém, não é um Estado laico. O chefe da nação mais
poderosa do planeta cria uma nova religião, a Anglicana. Eliminada a
crença que não controlava, Henrique VIII adotava outra que possuía
uma grande virtude: era chefiada por ele mesmo. O problema, portanto,
não era de fé ou lógica, mas de domínio político.
O nascimento da criminologia surgiu da demanda por racionalidade nas
normas penais e nas punições. Era o período da revolução
iluminista2.
A burguesia conquistava o poder econômico, embora o poder político
ainda fosse da nobreza e do clero. Normas baseadas na afirmação da
autoridade real, ou da vontade divina não eram satisfatórias para
ela.
A ampla liberdade dos nobres (incluindo os juízes) e da igreja para
definir o que é crime, como deve ser o processo e qual deve ser a
punição desagradava aos burgueses. O crime precisava de uma
resposta racional. A resposta devia atender finalidades lógicas e,
para alcançar estas finalidades, impunha-se um método específico e
direcionado. Houve consenso quanto à finalidade: a defesa social, ou
seja, a ideia de proteger os cidadãos do crime, evitando que este
aconteça.
Houve divisão, porém, que marca a disputa pelo pioneirismo da
criminologia, na busca das bases do pensamento que apontaria o
caminho ideal para a defesa social. Para uns, era necessário seguir
a linha da filosofia e assim surgia a Escola Clássica. Para outros,
o correto era se apoiar nos métodos empíricos das ciências
naturais e assim surgia o positivismo.
Seja qual for a tese aceita, um
fato é certo: tanto a escola clássica quanto as escolas
positivistas realizam um modelo no qual a ciência jurídica e a
concepção geral do homem e da sociedade estão estreitamente
ligadas. Ainda que suas respectivas concepções de homens e da
sociedade sejam profundamente diferentes, em ambos os casos nos
encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de uma
ideologia de defesa social, como nó teórico e político fundamental
do sistema científico.3
Se tanto a(s) Escola(s) Clássica(s), quanto a(s) Escola(s)
Positivista(s) são frutos do Iluminismo4
e possuem a finalidade comum da realização da ideologia de defesa
social, seus conceitos e métodos levam a efeitos opostos. Enquanto
os clássicos tendem a limitar de algum modo o poder punitivo, os
positivistas permitem a sua expansão com contornos inimagináveis.
No projeto dos clássicos, foi possível visualizar a circunscrição
do terreno de incidência do controle penal, estabelecendo, pois,
importantes limites formais às violências dos aparelhos repressivos
do Estado, mas a construção criminológico-positivista fomentaria a
expansão ilimitada destes mecanismos punitivos, pulverizando o
controle com o objetivo de reforçá-lo.
Não se trataria, portanto,
apenas de opção ou requinte metodológico, como constantemente
defendem os seguidores de modelos científicos puros e verdadeiros,
mas da assunção ideológica de projetos com finalidades díspares,
as quais redundam invariavelmente na minimização ou potencialização
da(s) violência(s) programada(s).5
2.2. Escola Clássica
No século XVIII, a burguesia, classe em ascensão, era considerada
parte do povo. Especialmente após a revolução industrial e a
criação dos bancos, seu poder crescia gradativamente. A nobreza e o
clero, porém, detinham o controle absoluto sobre os julgamentos. A
classe detentora dos recursos econômicos e dona do discurso
intelectual e as classes que teriam a possibilidade de utilizar
critérios obscuros para definir infrações e reprimendas eram
diferentes.
Neste contexto, a Escola Clássica, cujo expoente máximo foi o
Marquês de Beccaria, conquistou mais adeptos entre os burgueses que
o positivismo. Sua principal obra, Dos Delitos e das Penas, mais do
que apresentar ideias originais, sintetizava as preocupações do
grupo. “É que, para não ser
um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo
essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas
aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e
determinada pela lei”.6
Sentindo-se potencial alvo da persecução penal, os burgueses
desejavam uma pena certa, determinada previamente por lei e não
fixada pelo desejo despótico do rei7.
Queriam ainda, para controlar os legisladores e os julgadores, que as
punições fossem racionalmente proporcionais aos delitos8.
As justificativas filosóficas assentavam, principalmente, sobre o
contrato social, em que se fundariam todas as relações da
sociedade. As pessoas se agrupariam em torno do Estado, abdicando de
parte da sua liberdade, por saber que, do contrário, a coexistência
selvagem levaria a que umas destruíssem as outras. No entanto, como
em qualquer negócio, o objetivo comum é o mínimo de prejuízo
possível.
Desse modo, somente a
necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade;
disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum
a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era
necessário para empenhar os outros e mantê-la na posse do
restante.9
Ao contrário da doutrina inquisitória medieval que a antecedeu, a
Escola Clássica não buscava a punição dos pensamentos criminosos
(ou pecaminosos). Apenas os atos concretos poderiam ser motivos de
sanção. “Se a intenção fosse punida, seria necessário ter não
apenas um Código particular para cada cidadão, mas uma nova lei
penal, para cada crime.” 10
Pressupunha que as pessoas eram iguais e racionais, movidas pelo seu
livre arbítrio. As penas serviriam para prevenir delitos futuros.
Para tanto, bastaria que o mal causado por ela fosse superior aos
bens que adviriam do crime, além de que houvesse a certeza da
punição. Não havia nada para tratar no apenado. Ele e a sociedade
aprenderiam com cada castigo que “o crime não compensa”.
Por fim, a pena certa, proporcional, determinável de uma maneira
quase matemática precisaria atingir um bem universalmente precioso.
A liberdade era o denominador comum. O numerador, por sua vez, também
seria valioso para todos: o tempo11.
De outro lado, a expansão do mercado industrial e a necessidade de
mão de obra desaconselhavam que os castigos incapacitassem as
pessoas para o trabalho. Ao contrário, deveriam ser usados para
produzir riquezas12.
Assim, abandonavam-se as penas, então, consideradas cruéis e
degradantes e consolidava-se como pena por excelência a, hoje,
sabidamente cruel e degradante, prisão.
1
SCIENSE, Chico. Nação Zumbi. Banditismo
por uma questão de classe.
2
YOUNG, Jock. A sociedade excludente-
Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro. Revan: 2002.p.58
3
BARATTA, Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do
Direito Penal: introdução à sociologia do direito
4SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia.
2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais,2008, p.84.
Clássicos e positivistas, na realidade, sào distintas faces da
moeda iluministas, tese e antítese que não podem superar esta
relação dialética de oposição senão quando produzem a síntese.
5CARVALHO, Salo de. Antimanual
de Criminologia. 2.ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris,2008,p.144.
6
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.
São Paulo:Martin Claret, 2002, .p.107.
7
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.São Paulo:Martin
Claret, 2002, .p.22.
“O Juiz deve fazer
um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação
conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se
o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o fizer
por sua conta, tudo se torna incerto e obscuro”.
8
CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação.
Tradução: Sylvia Moretzohn.Rio de Janeiro: Revan, 2005.P.44.
“A legitimação do poder se produz, então, apenas pelo formal e
ritual cumprimento das estruturas jurídicas, habilmente elaboradas
para garantir os interesses da classe que historicamente emergiu
após o feudalismo, isto é, a burguesia”.
9
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.São Paulo:Martin
Claret, 2002, .p.19.
10
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.São Paulo:Martin
Claret, 2002, .p.71.
11FOUCAULT Michel. Vigiar
e Punir. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.104.
12RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição
e Estrutura Social. 2. ed.. Tradução
de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan,
2004, p.103.
“De todas as
motivações da nova ênfase no encarceramento como método de
punição, a mais importante era o lucro, tanto no sentido estrito
de fazer produtiva a própria instituição, quanto no sentido amplo
de tornar todo o sistema penal parte do programa mercantilista do
Estado. “