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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Graça e Piedade



Ondina, 1989.

Sinal fechado. O menino, animado, falava das suas boas notas e tentava convencer a mãe a premiá-lo com um gibi. Mônica, Cebolinha, Cascão, tanto faz. Presente sempre é bom! A mulher fingia protestar, mas não disfarçava o sorriso. Adorava ver o filho indo bem na escola e, mais ainda, querendo ler. Verde, abriu. Vamos ver se a banca de seu Costa está aberta, hoje pode haver uma surpresa...

Graça, 2010. 

Os amigos conversavam no apartamento. Na verdade, discutiam, mas com amizade. Qualquer um poderia cometer um crime? Não, dizia o médico. Eu jamais praticaria nenhuma infração. Não desejo machucar ninguém. Em nenhuma eventualidade, tentaria matar outra pessoa. Para fazer isto, as pessoas precisam ter muita maldade. Ele era sincero, se achava bom. Alguém pediu para mudar de assunto e falou mal de outra pessoa.

Ondina, 2013.

Amanhecer chuvoso. Após discussão no trânsito, uma médica, branca, persegue um motociclista, branco, e sua companheira, branca, que socaram o seu carro. Há um choque. O carro roda e para em um poste. A moto se estatela no chão, as pessoas ela levavam morrem. Eram irmãos. A motorista vai para o hospital e é acusada de homicídio. Assunto de todos os jornais.

Piedade, 2013.

A família inteira grita. A médica quis matar os motociclistas. A médica não quis matar os motociclistas. A mãe arrematou: se ela correu atrás deles, é claro que queria matá-los. No mínimo, assumiu o risco. Após, segundos de constrangimento, o filho indagou: mas, mãe, você não lembra daquele dia?

Graça, 2013.

Todos comentam estupefatos, a tragédia do dia anterior. O médico, que estava de plantão, apenas agora, conhecia os detalhes. Ouvia em silêncio, com os olhos cada vez mais abertos. Após alguns minutos, sem lembrar que era segredo, soltou as primeiras palavras: meu Deus, igualzinho ao que aconteceu naquele dia...

Ondina, 1989.

Ao passar no cruzamento, com o filho falando sobre histórias em quadrinhos, ela sentiu a pancada violenta. Um bêbado não obedeceu a sinalização. Para piorar, não parou. A mãe soltou um palavrão, na frente da criança, e disparou à toda velocidade, buzinando e ultrapassando perigosamente cada  veículo da frente. Felizmente, o fugitivo encostou, em frente a uma delegacia. O menino não esqueceu. Ela não lembrava.

Ondina, 2010.

O médico, cansado, volta do hospital. Assustou-se com um barulho de vidro quebrado. Era um pé, no seu retrovisor. Uma moto seguia em frente. Imediatamente, ele usa, pela primeira vez, toda a potência do motor do carro. Corre atrás do agressor pela cidade, fazendo manobras arriscadas. Por sorte, não chovia. O motoqueiro esgueirou-se, após passar um ônibus e escapou. Esqueceu o assunto. Até chegar a hora de lembrar.

Piedade, 2013.

Todos voltaram-se para a mulher: Mãe, você tentou matar aquele homem? Ao persegui-lo, pensou que assumia o risco de matar alguém? Ou foi apenas imprudente?

Graça, 2013.

Todos voltaram-se para o médico:  Você tentou matar aquele homem? Ao persegui-lo, pensou que assumia o risco de matar alguém? Ou foi apenas imprudente?

Brasil, 2013 em diante.

Muitos brancos e pretos mataram muitos pretos, mas não saiu no jornal. Poucas médicas brancas foram acusadas de matar motociclistas brancos. Muitos pretos foram acusados de matar muitos pretos ou brancos e viraram manchete, especialmente no segundo caso. 

O julgamento daquela médica branca  serviu de base para o daqueles pretos. Eventualmente, sem que tivessem culpa, pagaram pelo dolo atribuído a ela. Com o agravante de que ninguém achava que as suas vidas estavam sendo destruídas. Onde se procura vinganças, para ela, resta uma desgraça. Para eles, nenhuma piedade.