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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Interesse Público em Privar os Pobres

Existe uma unanimidade entre os problemas relacionados à justiça, no Brasil: a precariedade das Defensorias Públicas, que não conseguem se espalhar por todo o território nacional. É indiscutível o fato de que a maioria da população pobre não possui, literalmente, defesa alguma. Não tem para quem recorrer, pois não existe nenhum defensor, na sua cidade. Na Bahia, por exemplo, 89% das comarcas estão nesta situação. Mesmo onde existem profissionais, o número é extremamente reduzido e o atendimento, por isto, de difícil acesso.

Defensores públicos, assim como juízes e promotores não nascem em árvores. São selecionados, através de concursos, que necessitam de previsão orçamentária. O pagamento dos seus salários também precisa estar definido no orçamento. É público e notório que os promotores e juízes são melhor remunerados que os defensores. Em alguns estados, recebem mais que o dobro. Entretanto, curiosamente, os mesmos  recursos estaduais, quando divididos, permitem entupir as cidades de julgadores e acusadores, que custam mais caro. Só falta dinheiro para contratar quem vai ficar do lado dos pobres, que custa mais barato.

As oposições de momento, sejam de que partido forem, sempre bradam contra esse quadro e denunciam o abandono aos carentes. Os governistas de momento, sejam de que partido forem, lamentam bastante e explicam que não podem fazer nada, em virtude da lei de responsabilidade fiscal (LC 101). É que esta norma fixa o valor máximo que pode ser gasto com pessoal. O do judiciário é de 6%, o do Ministério Público é de 2%. O da defensoria não é especificado. Entra na conta do poder executivo. Na Bahia e na maioria dos estados, na prática, não chega a 0,5%. Assim, eles nunca podem dar mais dinheiro para contratar defensores, pois ultrapassariam o seu limite. Eis o motivo declarado.

Em 19 de novembro, o Congresso Nacional aprovou uma alteração na lei de responsabilidade fiscal, para acabar com esse quadro (PLP 114). Pela nova lei, o limite da defensoria seria de 2%, igual ao limite do Ministério Público. Deste modo, não haveria mais razão para os pobres continuarem sem defesa em quase todo o território nacional. Os governadores poderiam, sem receio, estruturar as defensorias públicas dos seus estados. O povo passaria a ter direito a ter direitos. Seria o fim, definitivo desse mal, reconhecido por unanimidade, lembre-se. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, discursos hipócritas terminam sendo desmascarados.

Um projeto de lei, após ser aprovado, precisa da sanção do(a) presidente, para, finalmente, entrar em vigor. Enquanto defensores comemoravam a aprovação no congresso e davam como certa a sanção, fazendo planos de preenchimento dos os cargos, nos próximos anos, no planalto, o silêncio imperava. Silêncio para fora. Por dentro, governadores, aqueles que lamentavam que a lei de responsabilidade fiscal os impedia de estruturar as defensorias, algo tão necessário e tão aflitivo, falavam e pressionavam ministros e a presidente. Até que conseguiram o que sempre quiseram. O projeto foi vetado ( mensagem 581 de 19 de dezembro de 2012).

Assim, a presidente da república, atendendo a pedidos dos governadores, escancarou a realidade. As defensorias públicas não são estruturadas única e exclusivamente porque os governantes não querem estruturá-las. Não é falta de recursos, pois se fosse, Ministério Público e Judiciário sofreriam o mesmo. Não é impossibilidade por conta da responsabilidade fiscal, pois se fosse, o projeto de lei seria um bálsamo e não algo a ser vetado. A razão, pura e simples, é: os governos não se importam nem um pouco com a população pobre, a não ser na hora das eleições.


As habituais palavras benevolentes de lamento pela situação são mais falsas que notas de 3 reais. E partem do pressuposto de que todos são tão estúpidos para acreditar nelas, que até no veto, a presidente as usa. Nas palavras de Dilma Rousseff, na mensagem de veto 581: " Assim, ainda que meritória a intenção do projeto de valorizar as defensorias públicas, a restrição do limite de gasto do Poder Executivo Estadual ensejaria sérias dificuldades para as finanças subnacionais." Antes, disse que agia assim, porque o projeto de estruturar as defensorias contrariava o interesse público. Faltou apenas esclarecer a que público se referia.


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PARA ASSINAR PETIÇÃO ONLINE E AJUDAR A DERRUBAR O VETO, CLIQUE AQUI.

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domingo, 16 de dezembro de 2012

Decodificando a Piada

O Corinthians venceu o Chelsea, da Inglaterra, por 1 x 0. Imediatamente (re)surgiram piadas, muito parecidas e conectadas. Uma delas, representativa das demais, trazia a foto de uma cela superlotada e as palavras "Vai Curintia", além da legenda: "Campeão Mundial". Várias pessoas reproduziram esta ou outra semelhante, o que sugere que gostaram. Sugiro tentar decodificar o processo humorístico, para entender do que estão rindo.

A piada tem três informações: a) Os presos são corinthianos; b) os presos (que são corinthianos) falam (ou escrevem) errado; e c) corinthianos presos que não sabem falar são campeões mundiais. Certamente, os detratores da equipe paulista não riem do título mundial. Deste modo, não é aí que está a graça. Restam as duas assertivas anteriores.

Tanto o autor quanto quem ri da piada, obviamente, conhecem corinthianos que não são presidiários, falam e escrevem corretamente. Também é lógico que sabem da existência de torcedores de outras equipes, adequados ao perfil. A chave está no fato de que os alvi-negros são maioria dentre os que apresentam tais características. Nesse ponto, há equivalentes em outros estados, como o Flamengo, no Rio de Janeiro, ou o Bahia, na Bahia.

É bom advertir, porém, que os três clubes citados são maioria também, nas suas respectivas localidades, entre os que não se enquadram naquele perfil. Não, há, entretanto, as gracinhas equivalentes retratando pessoas bem sucedidas e respeitadas socialmente. Há uma escolha de alvo do desprezo e das ridicularizações. 

A característica comum entre a maioria dos que são presos e dos que não falam corretamente é a pobreza. A escolha por utilizá-los como recurso humorístico não é casual. São eles que são desprezados, independente dos clubes que apoiam. Por isto, não importa o que os times fazem em campo ou que títulos conquistam. As piadas se repetem porque não falam de jogos. Elas não são fundadas em futebol. 

As frases consideradas engraçadas, tirando o véu da superfície, na realidade, são:

a) Você é pobre (hahaha!);
b) Você é analfabeto (hahaha!);
c) Você está preso (hahaha!);
d) Quem é pobre é bandido (hahaha!);
e) Quem é pobre é burro (hahaha!);
f) A maioria da população brasileira é pobre (hahaha!);
g) A maioria da população brasileira é pobre e analfabeta (hahaha!);
h) Se você é pobre vai ter problemas com a polícia (hahaha!).

Não acho nenhuma dessas frases engraçadas. Escondê-las, ou não vê-las, atrás do nome de um time de futebol não as torna engraçadas. São pensamentos idiotas. Merece ser ridicularizado e age de forma burra não é quem é pobre, está preso ou não sabe ler, mas sim quem reproduz esse discurso. Se você estava rindo, tem agora duas opções: ficar com raiva de mim, ou refletir no que faz. A escolha é sua.

E parabéns ao Corinthians!

sábado, 8 de dezembro de 2012

Billie Jean- Contestações.

Sempre existiu e sempre existirá, no mundo, a dúvida sobre a paternidade. Também sempre existiram pais que se recusam a reconhecer os seus filhos. Assim, é natural que pessoas cheguem ao poder judiciário, solicitando uma investigação, para determinar se alguém é ou não o pai de certa pessoa. Como deve ser feita a contestação, a primeira peça de defesa, nesses casos. Eu diria que há três modelos básicos. Vejam:

a) Contestação Padrão - Machista, Eu????

" A peça vestibular é eivada de inverdades e maledicências, refletindo a postura indecorosa e sem princípios da representante do autor. O réu jamais foi namorado, ou possuiu qualquer relação duradoura com aquela mulher. Apenas a conheceu em ocasião festiva, na qual ela lançou seus encantos de sedução aos quais ele, bravamente, resistiu.

Nem poderia, alíás, o réu praticar conjunções carnais com a representante do autor, uma vez que é pessoa cristã, bem casada e fiel cumpridor dos seus deveres familiares. É apenas a vítima das artimanhas de uma mulher gananciosa e diabólica, verdadeira erva venenosa, descendente de Lilith e, provavelmente, da própria serpente, irresponsavelmente, tentando destruir a reputação ilibada de um homem de bem.

É cediço no bairro que a representante do autor é pessoa de vida fácil, dada aos prazeres carnais e à bebida. Gosta de dançar e frequentar bares, além de trajar roupas que ofendem a moral e os costumes familiares, como anéis, pulseiras e saias. É impossível quantificar quantos parceiros sexuais, com o perdão da má-palavra, ela possui por semana. O réu, inclusive foi alertado por amigos que, na mesma noite em que quase foi seduzido, ela conhecera, no sentido bíblico, outros rapazes incautos.

Desta forma, data venia, o réu nega todo o alegado na exordial, por se tratar das mais deslavadas mentiras, além de requerer a condenação do autor, por litigância de má-fé".

b) Contestação de um Defensor ou Advogado sério- Abaixo Márcia Goldsmith!

" O réu não reconhece a paternidade, não identifica e não apresenta o autor como filho. Entretanto, tendo em vista os avanços da ciência, não há razão para discutir minucias de como se dera o seu alegado relacionamento com a representante dele.
Requer, portanto, a produção de prova pericial,através de exame de DNA e a improcedência dos pedidos iniciais".

c) Contestação, se você for Michael Jackson- Quem fizer a coreografia na sala de audiência, merece vencer a causa.

"Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito.


O Cara Que Não é o Único, brasileiro, solteiro, músico, por intermédio do seu procurador, vem, respeitosamente, apresentar a Contestação da ação movida pelo Garoto Que Não é Meu Filho, representado por sua mãe Billie Jean, já qualificados nos autos, pelos motivos de fato e de direito que seguem.





Michael Jackson

ROL DE TESTEMUNHAS

Luciano Tassis
Carolina Araújo
Caetano Veloso.

DOCUMENTOS ANEXOS:


"

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Um Projeto. Machado de Assis e o Direito Penal.


"Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão... Desde a sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e então jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o encontro do Quincas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não qual fora deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno.
Saí de casa, mas era cedo; iria achá-los à mesa. Outra vez pensei no Quincas Borba, e tive então um desejo de tornar ao Passeio Público, a ver se o achava; a idéia de o regenerar surgiu-me como uma forte necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do guarda; disse-me que efetivamente “esse sujeito” ia por ali às vezes.
— A que horas?
— Não tem hora certa.
Não era impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa enchia-me o coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de mim próprio... Nisto caía a noite; fui ter com Virgília".

Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo LXI. Disponível em http://pt.wikisource.org/wiki/Mem%C3%B3rias_P%C3%B3stumas_de_Br%C3%A1s_Cubas/LXI

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Herança. Machado de Assis e o Direito das Sucessões.


"Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, — minha irmã sentada num sofá, — pouco adiante, Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços cruzados e a morder o bigode, — eu a passear de um lado para outro, com os olhos no chão. Luto pesado. Profundo silêncio.
— Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos que valha trinta e cinco...
— Vale cinquenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinquenta e oito...
— Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cinquenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?
— Não fale nisso! Uma casa velha.
— Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.
— Parece-lhe nova, aposto?
— Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo...
— O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.
— O Prudêncio está livre.
— Livre?
— Há dois anos.
— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata?
Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela origem da propriedade; dizia meu pai que o Conde da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu bisavô Luís Cubas.
— Quanto à prata, continuou Cotrim, eu não faria questão nenhuma, se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentável. Você é solteiro, não recebe, não...
— Mas posso casar.
— Para quê? interrompeu Sabina.
Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo.
— Que é lá? redargui; não cedi coisa nenhuma, nem cedo.
— Nem cede?
Abanei a cabeça.
— Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar também com a nossa roupa do corpo; é só o que falta.
— Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos a juízo e provar com testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu cunhado e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem uma colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!
Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi oferecer um meio de conciliação; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia o bule e a quem o açucareiro; e depois desta pergunta, declarou que teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando menos em juízo. Entretanto, Sabina fora até à janela que dava para a chácara, — e depois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto, com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me convinha, mas Cotrim adiantou-se e disse a mesma coisa.
— Isso nunca! não faço esmolas! disse ele.
Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercação.
— Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para ser repartido por todos.
Mas Cotrim:
— Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo.
Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de criança, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas."

Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo XLVI (Disponível em http://pt.wikisource.org/wiki/Mem%C3%B3rias_P%C3%B3stumas_de_Br%C3%A1s_Cubas/XLVI)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Mercenário ou Rebelde?


A temporada do futebol vai chegando ao fim. Como todos os anos, jogadores alternam boas e más fases. Craques surgem e desaparecem. Mas, um atleta chama a atenção de forma especial, em razão da intensidade com que é odiado, inversamente proporcional à sua habilidade e inteligência.Trata-se do jogador mais talentoso que o mundo conheceu, após Maradona: Ronaldinho, o Gaúcho. Poucos percebem, mas as razões da repulsa estão entranhadas no fato de ele, provavelmente de forma inconsciente, rebelar-se contra alguns dos paradigmas da nossa sociedade.

No filme "Troia", Ulisses convence Aquiles a participar de uma guerra, explicando que seria travada a maior batalha de todos os tempos e que a sua fama seria eternizada, caso aceitasse. Trata-se de um valor muito caro nos nossos dias: a fama, o reconhecimento de ser o melhor. Pelé, até hoje, reage com raiva, sempre que se insinua que alguém poderá superá-lo. Ronaldinho, por sua vez, achou que não valia a pena treinar tanto e fazer tantos sacrifícios, apenas para ser o novo Maradona. Em tempos de facebook e youtube, ele possuía chances, mas não quis nem tentar ser reconhecido como o melhor de todos os tempos. Isto irrita, porque é considerado um desperdício. É difícil entender que alguém prefira levar uma vida prazerosa à ter a fama eterna de Aquiles.

O ódio ao Gaúcho, entretanto, é bem mais antigo. Vem de quando ele ainda era garoto e forçou a saída do Grêmio, clube que o formou. Isto foi considerado uma traição. O problema se agravou quando, após anos na Europa, ele voltou ao Brasil, fazendo uma espécie de leilão, para ver quem pagaria mais. Flamengo, Palmeiras e, novamente, o Grêmio, a cada dia anunciavam que estava tudo certo para contratá-lo e se surpreendiam com os anúncios alheios. No fim, ele escolheu o Flamengo, que propôs salários compatíveis para o melhor jogador do mundo (o que ele já não era, nem queria ser), frustrando, principalmente, o time de Porto Alegre que, de tão confiante, preparara uma festa e se sentiu enganado outra vez.

Este problema deriva da falta de compreensão de que a relação entre um jogador e um clube não é de carinho, amizade e muito menos amor. É de trabalho. Como o torcedor se identifica e se sente dono do time, costuma analisar as coisas pelo lado do patrão. Assim, repetimos que o Grêmio deu tudo a ele, que o jogador deveria mostrar gratidão. Porém, os clubes não dão nada a ninguém. Eles investem nos jogadores. O que o Grêmio, o Bahia ou o Sport Recife deixam para os 90% dos seus atletas de divisão base que não vingam entre os profissionais? Que apoio ou formação existe? Nenhuma, óbvio. Não há choro, pena, ou solidariedade. Existe apenas a demissão, sem notícia ou pesar. A exigência de gratidão é unilateral.

Quando temos várias opções de emprego, tentamos escolher o mais atrativo para nós, aquele que vai nos pagar melhor e oferecer melhores condições de trabalho ou perspectivas de crescimento. Se o empregador deixa de pagar, procuramos saber quais são os nossos direitos e, se for vantajoso, vamos embora e o processamos. Foi aquela a atitude de Ronaldinho, quando vários clubes queriam contratá-lo. Foi esta a atitude dele, quando o Flamengo deixou de pagá-lo. Mas, o público pensa que é o dono do time e, para o empresário, o grevista sempre é o vilão, desagregador e indisciplinado.

O homem que sempre está rindo, que comemorava os gols homenageando os garotos surdos, para quem o aplauso é feito com as mãos chacoalhando em "hang loose", não deveria ser chamado de pilantra ou canalha, por quem nem sequer o conhece pessoalmente. Talvez, precisássemos de mais gente para demonstrar que a vida não é só uma busca desenfreada pela fama, pela competição individual e pela aprovação dos patrões. O malandro contemporâneo tem aparato de malandro oficial, contrato, gravata, capital e nunca se dá mal. Se for possível pensar nisto, vendo alguns golaços, desde que não sejam contra o Bahia, evidentemente, melhor ainda.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Mito da Modernidade 8.5. É Somente Requentar e Usar. 9. Conclusão.


Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):

O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!

8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira.

Para Lombroso e os seus seguidores, a sanção deveria ser um tratamento médico, psicológico e social, visando à cura do crime. Os presos deviam ser separados e a pena medida de acordo com a sua personalidade e a sua periculosidade. Seriam necessárias, então, diversas avaliações, para verificar as respostas aos métodos de cura, determinando a quantidade e a intensidade do castigo.
Se a influência das outras escolas foi mínima, ou teve aplicação distorcida, o mesmo não se pode dizer do positivismo. É evidente, porém, que após o fortalecimento dos direitos humanos e, principalmente, dos movimentos de minorias, como os índios, negros e as mulheres, o discurso precisava ser temperado1. Não era mais possível falar em seres atávicos. Ainda assim, o objetivo primordial da pena, segundo a motivação dos proponentes, é o tratamento, como se vê na exposição de motivos da LEP, por exemplo, nos itens 072, 37 e 393.
37. Trata-se, portanto, de individualizar a observação como meio prático de identificar o tratamento penal adequado, em contraste com a perspectiva massificante e segregadora, responsável pela avaliação feita “através das grades: ‘olhando’ para um delinqüente por fora de sua natureza e distante de sua condição humana”.4

A expressão é repetida na lei de execuções penais, quando fala que na guia de recolhimento, documento indispensável à abertura do processo executivo, devem estar presentes todas as peças do processo de conhecimento indispensáveis para o adequado tratamento penitenciário5.
Os exames de personalidade6 para classificar os presos são obrigatórios7. Assim, como fez Lombroso, são apresentados como modo de humanizar a pena8. Da classificação, devem participar médicos psiquiatras e psicólogos9, além de “chefes de serviço” e assistentes sociais. A presença dos profissionais de saúde, ao lado dos de segurança evidencia a busca de uma causa etiológica interna para a prática do delito.
Sabe-se que os mais perversos modelos de controle social punitivo são aqueles que fundem o discurso do direito com o discurso da psiquiatria, ou seja, que regridem aos modelos positivistas de coalizão conceitual do jurídico com a criminologia naturalista. O sonho da medição da periculosidade, forjado no interior do paradigma criminológico positivista (etiológico), encontra guarida nesse sistema. Assim, retomando conceitos como propensão ao delito, causas da delinqüência e personalidade voltada para o crime, o discurso etiológico se reproduzia, condicionando o ato judicial ao exame clínico-criminológico – “psicólogos, psiquiatras, pedagogos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos de caso e diagnósticos, da maneira mais acrítica, com as mesmas categorias utilizadas na introdução das idéias de Lombroso no Brasil”.10

Mas não é só no início do processo que avaliações etiológicas estão presentes. Para obter livramentos condicionais e progressões de regime não é raro que o preso necessite se submeter a avaliações psicológicas destinadas a apontar se está preparado para receber alguma parcela da liberdade11. A exposição de motivos deixa clara a finalidade de estudar a inteligência (os criminosos, para Lombroso, são selvagens), a vida afetiva (os criminosos, para Lombroso, são desprovidos de sentimentos e depravados) e os princípios morais (os criminosos, para Lombroso, são degenerados).
31. A gravidade do fato delituoso ou as condições pessoais do agente, determinante da execução em regime fechado, aconselham o exame criminológico, que se orientará no sentido de conhecer a inteligência, a vida afetiva e os princípios morais do preso, para determinar a sua inserção no grupo com o qual conviverá no curso da execução da pena.12

. Embora e LEP tente diferenciar exames de personalidade de exames criminológicos, eles são solicitados pelo Ministério Público e determinados pelos magistrados, indistintamente, como exames criminológicos, avaliações psicológicas ou avaliações psico-sociais. Para quem tem dúvidas quanto à natureza positivista, basta ver na exposição de motivos a referência direta. O exame criminológico, declaradamente, atende aos reclames dos “pioneiros da criminologia”. O pioneiro que pretendia estudar a inteligência, os valores morais e a vida afetiva do preso, tem nome e sobrenome, por mais que isto envergonhe e ofenda alguns juristas. Chama-se Cesare Lombroso.
34. O Projeto distingue o exame criminológico do exame da personalidade como a espécie do gênero. O primeiro parte do binômio delito-delinqüente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social, como o reclamavam os pioneiros da Criminologia. O segundo consiste no inquérito sobre o agente para além do crime cometido. Constitui tarefa exigida em todo o curso do procedimento criminal e não apenas elemento característico da execução da pena ou da medida de segurança. Diferem também quanto ao método esses dois tipos de análise, sendo o exame de personalidade submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológico, funcional e psíquico, como recomendam os mais prestigiados especialistas, entre eles DI TULLIO (Principi di criminologia generale e clínica. Roma: V. Ed., p. 213 e ss.).
35. O exame criminológico e o dossiê de personalidade constituem pontos de conexão necessários entre a Criminologia e o Direito Penal, particularmente sob as perspectivas de causalidade e da prevenção do delito.13

Para a progressão ao regime aberto, além de exigir que o preso esteja trabalhando, ou comprove a possibilidade de fazê-lo imediatamente (como espécie de prova de que está regenerado), a LEP determina que ele apresente “pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foi submetido, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo regime”.14 Tratam-se, entretanto, de exigências tão flagrantemente inconstitucionais que poucos as aplicam.
Outra inconstitucionalidade gritante relacionada à matéria, mas quase não reconhecida pelos julgadores, está na definição dos requisitos para o livramento condicional, feitas pelo código penal. Demanda-se a comprovação de condições pessoais que façam presumir que não voltará a delinquir15. Exatamente como desejavam os positivistas, as condições pessoais afastam a presunção de inocência e inauguram a presunção de culpa prévia dos selvagens que não responderam bem ao tratamento.
Saliente-se que lei posterior afastou a exigência dessas avaliações16, modificando o artigo 112 da LEP e estabelecendo como requisitos para a progressão de regime apenas a boa conduta e o tempo17. Isto não foi, contudo, suficiente para afastá-las da prática cotidiana, pois contra os considerados inimigos e perigosos a legalidade e as regras sobre os conflitos de normas no tempo são relativizadas18.
Os exames são realizados por psicólogos. Curiosamente, a sua instância máxima afirma incessantemente que eles não devem ser realizados. O Conselho Federal de Psicologia apresentou moção de repúdio às avaliações criminológicas, justamente porque amparadas em traços pessoalizados e baseados em busca de periculosidade, que as tornariam violadoras dos Direitos Humanos. 19 A resposta dos juristas foi ignorá-lo e editar súmula vinculante defendendo a sua prática20.
O Conselho Federal de Psicologia, então, editou resolução 09/2010, em que considerava a prática daquelas avaliações como violação da ética profissional21. Psicólogos passaram a se recusar a fazer os laudos. A resposta dos juristas não foi refletir se os exames teriam valor técnico ou ético. Desta vez, também não se limitaram a ignorá-los. Simplesmente, começaram a ameaçar os psicólogos de prisão por desobediência e constrangeram o CFP a suspender e posteriormente revogar aquela resolução22. Parece que o apego ao que Lombroso propôs como revolução científica tem mais relação com a fé e a conveniência que com a ciência.
A teoria psicanalítica, assim como qualquer outra teoria psicológica que conheçamos, não nos autoriza a fazer previsões sobre o comportamento ou sobre a saúde ou a doença. Através da reconstrução do passado, tal como ele ficou inscrito na memória e nas vivências peculiares de alguém, pode-se lançar alguma luz sobre a natureza de seus conflitos atuais. A psicanálise é sempre retrospectiva. O passado para elucidar o presente. E o futuro continua pertencendo a Deus...23

A persistência e a força dos conceitos de periculosidade e personalidade criminosa são também bastante utilizadas para preencher os vazios das expressões vagas que descrevem faltas e deveres dos presos. Presume-se o erro de quem aparenta ser perigoso.
Deste modo, como desejavam os positivistas, é a resposta ao tratamento que determina se uma pessoa pode ou não passar de um regime mais grave para um mais brando. É a resposta ao tratamento que determina se uma pessoa pode alcançar a liberdade condicional, deixando o cárcere. Caso persistam problemas de personalidade, caso não tenha se provado a ressocialização, caso não tenha havido a cura, os métodos são aplicados por mais tempo, ou com mais rigor. Não há dúvidas, Lombroso venceu.

É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.24

9. CONCLUSÃO.

Embora seja possível vislumbrar traços de todas as teorias estudadas aqui, na Lei de Execução Penal, é com o positivismo que ela demonstra maior sintonia. Em relação às outras, além de mais escassa a formalização de suas ideias, os seus efeitos colaterais, especialmente referentes à criminalização da pobreza, são muito mais presentes que as suas essências.
A LEP, de fato, não é respeitada em alguns pontos pelos poderes judiciário e executivo. É correto dizer, neste sentido, que ela não vale nada. Mas, ainda que fosse integralmente cumprida, reproduziria um modelo elitista, médico, etiológico. Para quem não concorda com as teses lombrosianas, ela continuaria a não valer nada, mas agora no sentido de que é nociva e atrasada.
Mais importante que clamar pelo respeito à LEP é pedir o respeito à Constituição Federal, como limitadora da punição e controladora da própria lei 7210/84. Além disto, é necessário buscar a desconstrução dos mitos que giram em torno dela, como o do seu caráter avançado e humano. Talvez a consciência da ideologia penal vigorante no Brasil, com todas as consequências racistas e opressoras que a acompanham, permita uma postura de enfrentamento real do nosso sanguinário sistema penal.




1ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas- A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Ravan,1991.P.43.

“Desde o final da última guerra mundial- e apesar dos tardios surtos racistas, como o boliviano e alguns outros – o discurso criminológico moderou suas expressões abertamente racistas, mantendo-se numa linha “etiológica” que, apesar de pretensamente mais “científica”, não oculta, de forma alguma da sua raiz positivista e periculosista.”
2 Mensagem 242 de 1983 (Do Poder Executivo). Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal.

“7. Foi essa a posição que sustentamos no Relatório da Comissão Parlamentar de inquérito instituída em 1975 na Câmara dos Deputados para apurar a situação penitenciária do País. Acentuávamos, ali, que a doutrina evoluíra no sentido da constitucionalidade de um diploma federal regulador da execução, alijando, assim, argumentos impugnadores da iniciativa da União para legislar sobre as regras jurídicas fundamentais do regime penitenciário. Com efeito, se a etapa de cumprimento das penas ou medidas de segurança não se dissocia do Direito Penal, sendo, ao contrário, o esteio central de seu sistema, não há como sustentar a idéia de um Código Penal unitário e leis de regulamentos regionais de execução penal. Uma lei específica e abrangente atenderá a todos os problemas relacionados com a execução penal, equacionando matérias pertinentes aos organismos administrativos, à intervenção jurisdicional e, sobretudo, ao tratamento penal em suas diversas fases e estágios, demarcando, assim, os limites penais de segurança. Retirará, em suma, a execução penal do hiato de legalidade em que se encontra (Diário do Congresso Nacional, Suplemento ao n. 61, de 04.06.1976, p. 9).”

3 Mensagem 242 de 1983 (Do Poder Executivo). Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal

“39. No Relatório da CPI do Sistema Penitenciário acentuamos que “a ação educativa individualizada ou a individualização da pena sobre a personalidade, requisito inafastável para a eficiência do tratamento penal, é obstaculizada na quase totalidade do sistema penitenciário brasileiro pela superlotação carcerária, que impede a classificação dos prisioneiros em grupo e sua conseqüente distribuição por estabelecimentos distintos, onde se concretize o tratamento adequado”... “Tem, pois, esta singularidade o que entre nós se denomina sistema penitenciário: constitui-se de uma rede de prisões destinadas ao confinamento do recluso, caracterizadas pela ausência de qualquer tipo de tratamento penal e penitenciárias entre as quais há esforços sistematizados no sentido da reeducação do delinqüente. Singularidade, esta, vincada por característica extremamente discriminatória: a minoria ínfima da população carcerária, recolhida a instituições penitenciárias, tem assistência clínica, psiquiátrica e psicológica nas diversas fases da execução da pena, tem cela individual, trabalho e estudo, pratica esportes e tem recreação. A grande maioria, porém, vive confinada em celas, sem trabalho, sem estudos, sem qualquer assistência no sentido da ressocialização” (Diário do Congresso Nacional, Suplemento ao n. 61, de 04.06.1976, p. 2).”

4Mensagem 242 de 1983 (Do Poder Executivo). Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal.
5 Lei 7210/84. Art. 106

Art. 106. A guia de recolhimento, extraída pelo escrivão, que a rubricará em todas as folhas e a assinará com o Juiz, será remetida à autoridade administrativa incumbida da execução e conterá:
I - o nome do condenado;
II - a sua qualificação civil e o número do registro geral no órgão oficial de identificação;
III - o inteiro teor da denúncia e da sentença condenatória, bem como certidão do trânsito em julgado;
IV - a informação sobre os antecedentes e o grau de instrução;
V - a data da terminação da pena;
VI - outras peças do processo reputadas indispensáveis ao adequado tratamento penitenciário

6BARATTA, Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.39.

“O desenvolvimento da escola positiva levará, portanto, através de Grispigni, a acentuar as características do delito como elemento sintomático da personalidade do autor, dirigindo-se sobre tal elemento a pesquisa para o tratamento adequado.”
7 Lei 7210/84. Art.5º
Art. 5º Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.

8 Mensagem 242 de 1983 (Do Poder Executivo). Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal

“26. A classificação dos condenados é requisito fundamental para demarcar o início da execução científica das penas privativas da liberdade e da medida de segurança detentiva. Além de constituir a efetivação de antiga norma geral do regime penitenciário, a classificação é o desdobramento lógico do princípio da personalidade da pena, inserido entre os direitos e garantias constitucionais. A exigência dogmática da proporcionalidade da pena está igualmente atendida no processo de classificação, de modo que a cada sentenciado, conhecida a sua personalidade e analisado o fato cometido, corresponda o tratamento penitenciário adequado.

27. Reduzir-se-á a mera falácia o princípio da individualização da pena, com todas as proclamações otimistas sobre a recuperação social, se não for efetuado o exame de personalidade no início da execução, como fator determinante do tipo de tratamento penal, e se não forem registradas as mutações de comportamento ocorridas no itinerário da execução.”
9 Lei 7210/84. Art. 7º.

Art. 7º A Comissão Técnica de Classificação, existente em cada estabelecimento, será presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por 2 (dois) chefes de serviço, 1 (um) psiquiatra, 1 (um) psicólogo e 1 (um) assistente social, quando se tratar de condenado à pena privativa de liberdade.

10 CARVALHO, Salo de. O (Novo) Papel dos “Criminólogos” na Execução Penal: As Alterações Estabelecidas pela Lei 10792/2003. In Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P.162.
11 FOUCAUT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução Rachel Ramalhete. 36 ed.Petrópolis: Vozes, 2009.P.23.

“O laudo Psquiátrico, mas de maneira mais geral a antropologia criminal e o discurso repisante da criminologia, encontram aí uma de suas funções precisas: introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos susceptíveis de um conhecimento científico, dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser.”
12 Mensagem 242 de 1983 (Do Poder Executivo). Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal
13 Mensagem 242 de 1983 (Do Poder Executivo). Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal
14 Lei 7210/84. Art. 114.
Art. 114. Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que:
I - estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente;
II - apresentar, pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foi submetido, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo regime.
15 Decreto Lei 2848/1940. Art. 83.
Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV - tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza. (Incluído pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)
Parágrafo único - Para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

16 Lei 10.792/2003.
17 Lei 7210/84. Art. 112
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003)
§ 1o A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003)
§ 2o Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

18 KARAM, Maria Lúcia. Disciplina do Livramento Condicional no Ordenamento Jurídico-Penal Brasileiro e Violações a Direitos Fundamentais. In Execução Penal. Constatações, Críticas, Alternativas e Utopias. MARCHI JUNIOR, Antonio de Padova e PINTO, Felipe Martins (COORD). Curitiba: Juruá, 2008. P.172.

“A insistência da jurisprudência dominante em considerar a progressão ao livramento condicional a uma discricionária decisão do juiz sobre a realização de “um exame criminológico”, que não só agora está ausente da lei, mas cuja anterior previsão foi afastada pela lei nova, é assustador exemplo de total descompromisso com os postulados do Estado de direito democrático, de total descompromisso com o primado dos princípios e normas garantidores de direitos fundamentais assentados nas declarações universais de direitos e na Constituição Federal brasileira, como, de resto, em todas as Constituições democráticas.”

19 Moção contra Exame Criminológico. Disponível em http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/noticias/noticia_081125_003.html
Seu uso reifica discursos que sustentam a compreensão do conflito a partir de uma suposta natureza perigosa amparada em traços pessoalizados e não a partir de uma relação dialética entre indivíduo e produções sócio-históricas. A prática do exame criminológico tem reduzido as possibilidades de atuação dos profissionais que atuam na área das assistências previstas nas legislações brasileiras referentes à população carcerária, ferindo em muitas ocasiões os direitos humanos e impedindo tais profissionais de atender às reais necessidades das pessoas presas na perspectiva de sua reintegração social.” 
20 Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 26.
“Súmula Vinculante 26
Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crimehediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.”

21 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução 009/2010. Disponível em http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/resolucao/# . Acesso em 25 de novembro de 2011.
“Art. 4º. Em relação à elaboração de documentos escritos:
  1. Conforme indicado nos Art. 6º e 112º da Lei n° 10.792/2003 (que alterou a Lei n° 7.210/1984), é vedado ao psicólogo que atua nos estabelecimentos prisionais realizar exame criminológico e participar de ações e/ou decisões que envolvam práticas de caráter punitivo e disciplinar, bem como documento escrito oriundo da avaliação psicológica com fins de subsidiar decisão judicial durante a execução da pena do sentenciado;
  2. O psicólogo, respaldado pela Lei n° 10792/2003, em sua atividade no sistema prisional somente deverá realizar atividades avaliativas com vistas à individualização da pena quando do ingresso do apenado no sistema prisional. Quando houver determinação judicial, o psicólogo deve explicitar os limites éticos de sua atuação ao juízo e poderá elaborar uma declaração conforme o Parágrafo Único.
Parágrafo Único. A declaração é um documento objetivo, informativo e resumido, com foco na análise contextual da situação vivenciada pelo sujeito na instituição e nos projetos terapêuticos por ele experienciados durante a execução da pena.
Art. 5º. Na atuação com outros segmentos ou áreas, o psicólogo deverá:
  1. Visar à reconstrução de laços comunitários, sociais e familiares no atendimento a egressos e familiares daqueles que ainda estão em privação de liberdade;
  2. Atentar para os limites que se impõem à realização de atendimentos a colegas de trabalho, sendo seu dever apontar a incompatibilidade de papéis ao ser convocado a assumir tal responsabilidade.

Art. 6º. Toda e qualquer atividade psicológica no sistema prisional deverá seguir os itens determinados nesta resolução.

Parágrafo Único – A não observância da presente norma constitui falta ético-disciplinar, passível de capitulação nos dispositivos referentes ao exercício profissional do Código de Ética Profissional do Psicólogo, sem prejuízo de outros que possam ser arguidos.”

22 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução 012/2011. Disponível em http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/resolucao/# . Acesso em 25 de novembro de 2011.
23 RAUTER, Cristina.Criminologia e Subjetividade no Brasil.Rio de Janeiro: Revan, 2003. P.90
24 ZÉ, Tom. Parque Industrial.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Nojo

Em meio a um congresso de Direito, um médico aparece para palestrar. Aparentemente, ele achou que falava para estudantes e profissionais de medicina, acostumados a ver sangue, fraturas expostas, tripas, intestinos, em fim, o nosso corpo por dentro. Juristas não são treinados para isto. 

Nas faculdades e na prática do direito, tenta-se ver o mundo com base na ficção da ordem absoluta. Tudo está no se belíssimo local. Quem desafia esta ordem é considerado um tumor malígno a ser extirpado ou, no mínimo, um órgão defeituoso a ser corrigido, com base em alguns antibióticos, cheios de efeitos colaterais.

As ações que se pretendem curativas, porém, são feitas sem olhar e sem chegar perto do suposto paciente. São cirurgias feitas, apenas no papel, sem ver o corpo por dentro, sem sentir o odor, sem se aproximar de ossos quebrados. É algo mágico, infantil. Acredita-se que basta falar ou escrever as palavras mágicas e tudo mudou. Abracadabra, sinsalabim, o STF disse, então, é assim!

O médico explicava o procedimento para mudança de sexo e mostrava fotos sem censura: A pele da bolsa escrotal vira vagina, após vários cortes. Um pedaço de um braço vira pênis. A produção de alguns hormônios é inibida. Outros precisam ser fornecidos. Acrescentam-se peitos a uns, retiram-se peitos de outros. A plateia não consegue segurar as expressões de nojo. Arghhhh... Uuuuhhhh... Eca....

Mesmo com náuseas, todos veem o quanto a ciência avançou, para fazer as pessoas viverem bem com os seus corpos e as suas sexualidades. É extremamente doloroso o procedimento, mas é possível. São operações que parecem cenas ficções científicas. O acúmulo de sabe-se lá quantas horas de estudos e pesquisas permitiu este progresso maravilhoso, para fazer pessoas felizes.

Então, o médico diz que há ainda alguns problemas. Evidentemente, uma intervenção tão complexa no corpo humano não deixaria de ter obstáculos. Imaginávamos que tipos de doenças terríveis surgiriam, que decomposições apareceriam. Até que ele passou o slide. No topo da lista dos problemas das pessoas que se submeteram a esta maratona de modificações, após anos de intenso sofrimento e angústia, aparece o seguinte:

IDENTIFICAÇÃO CIVIL.

Subitamente, veio a incontrolável vontade de vomitar. 
E a vergonha.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O Mito da Modernidade. 8.2. Sociedade dos Cativos. 8.3 Da Inovação ao Conformismo. 8.4 Pobreza, a falta grave.


Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):

O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!


8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira.

As teorias das subculturas, em síntese, falam de grupos menores que, sem desprezar os objetivos culturais da sociedade mais ampla, estabelecem metas diferentes, que admitem como legítimos meios rechaçados pelos demais. Descrevem também a distribuição diferencial não só dos meios legítimos, mas também dos ilegítimos e ainda falam das associações diferenciais que propiciam o aprendizado de condutas ilícitas.
Novamente, o nosso modelo punitivo baseado na prisão, é incompatível com essas assertivas. Com a segregação, desaparece qualquer opção à criação de laços sociais entre os segregados, que além de se encontrarem na mesma situação, possuem um inimigo comum: o Estado que os pune. Nesta micro-sociedade, a sociedade dos cativos1, surgirão novas regras internas, novos valores.
De fato, como pode pretender a prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio com a sociedade e o incapacita, por esta forma, para as práticas de sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social quando é a própria prisão que o impele para a “sociedade dos cativos”, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna respeitável para a massa carcerária?2

O cativo tem acesso a novos meios para cometer crimes e possui um campo amplo de aprendizagem e troca de experiências. Além disto, conhece as normas da prisão e os meios de conviver melhor com elas. Os que obtêm mais êxito nesse aprendizado, tornam-se líderes das celas, dos pavilhões ou da unidade inteira. Assim, conseguem ditar, ou liderar a nova ordem, estabelecendo e até positivando normas de condutas. Um exemplo é a “Cartilha Ordem e Progresso”, elaborada e impressa pelos internos da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.
Como qualquer código oficial, o documento publicado pela comissão usa o tom jurídico para estabelecer as regras. A diferença são os termos utilizados nos tópicos. Nas leis da cadeia não há artigos, mas “Obediências”. Em cada uma está prevista uma punição, como a que é direcionada para os presos que “subtraírem” pertences de outros detentos. “(...) para continuar a conviver em nossa comunidade, prestará serviços de faxineiro na varrição do pátio e orar um Pai-nosso, ou pregar os joelhos no chão”.
Entre outras coisas, a cartilha traz regras de etiqueta para os dias de visitação, prevê punições severas para agiotagem e é implacável com os presos que mantiverem relações amorosas com ex- mulheres e familiares dos colegas.
Em alguns momentos, o código parece ensinar ao Estado a melhor forma de ressocializar o contingente carcerário. “O princípio básico do alicerce humano reside na educação”.  Uma das regras deixa claro que os presos querem impor quais detentos devem permanecer em cada módulo. A punição para quem faltar a “Obediência III” é a retirada do preso do convívio dos demais, o que significaria a sua transferência. “ O direito de defesa será dado ao acusado na possível primeira falta. Na reincidência, deixará automaticamente o nosso convívio”.3

Obviamente, as normas já existiam e eram aplicadas antes de serem transpostas para o papel. No caso mencionado, o documento foi apresentado a todas as autoridades, semanas antes de descoberto pela imprensa. A administração prisional teve a honestidade de reconhecer que era natural a existência de lideranças e negociações dentro das prisões.
A disciplina, a segurança e a relativa tranqüilidade nas prisões dependem fundamentalmente da disposição da massa carcerária em cooperar. E como têm mostrado vários estudos, não há cooperação sem negociação; e negociação não se faz sem lideranças dentro da massa carcerária. A idéia de que a autoridade legal, isto é, o próprio Estado através de seus funcionários, se veja constrangida a negociar com foras-da-lei as regras de aplicação da própria lei pode parecer um outro absurdo. Mas trata-se simplesmente de mais um dos dilemas inscritos na natureza das prisões: o poder total- ou à primeira vista, total- da administração não tem como fugir à negociação e transigência. A alternativa quase sempre será um nível de violência e repressão que nenhuma sociedade poderá tolerar.4


8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira.

Para a teoria da anomia, os crimes derivariam, principalmente, da discrepância entre os fins culturais e acesso aos meios legítimos para alcançá-los. Sendo assim, haveria apenas dois modos de lidar com a questão: reduzir os fins ou ampliar os meios.
A segunda alternativa é aparentemente levada em conta pela nossa execução penal, pois em diversos momentos, a LEP se refere à obrigação do Estado em fornecer cursos profissionalizantes e ensino de 1º grau5. O trabalho prisional (também obrigação do Estado) tem finalidade educativa6. Como estímulo à participação dos presos nestas atividades, ainda oferece a remição da pena pelo trabalho e, desde 2011, pelo estudo7.
A observação mais atenta da lei e da sua interpretação e aplicação, porém, permite que se desfaça o engano. O ensino de 1º grau, ainda que fosse de excelente qualidade, não seria apto a preparar ninguém para almejar ocupações lícitas que permitissem o acesso aos fins culturais. O jurista Gerivaldo Neiva, comentando convênio celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP)8, constatou que, segundo dados do Ministério da Justiça9, 75, 35% da população carcerária brasileira possuía, no máximo, este nível educacional.
O problema é que o mercado, mesmo para a construção civil mais pesada, anda a reclamar da qualidade da mão-de-obra nacional. Sendo assim, o que o mercado e a sociedade têm a oferecer para 93,27% da população carcerária deste país, que mal sabem assinar o nome, além da reincidência? Aliás, não é mera coincidência que o percentual de reincidência (70% segundo o Ministro Peluso) seja parecido com o percentual de detentos que apenas “desenham o nome” (75,35%, segundo o Infopen)10.

A oferta de cursos profissionalizantes também padece do mesmo defeito. Não basta ter uma profissão, para ter acesso aos fins culturais. É necessário que esta carreira ofereça vantagens materiais e imateriais suficientes, para a aquisição dos bens desejados. Uma propaganda do mesmo convênio entre Conselho Nacional de Justiça e FIESP dá uma ideia de que ocupações são oferecidas, pois o vídeo começa com uma placa anunciando vagas para servente, pedreiro, carpinteiro e pintor11.
É sabido que as ofertas não são muito diferentes daquelas. São cursos de costura, para as mulheres e de trabalhos braçais para os homens. Nenhuma das atividades permite muitas perspectivas de sucesso no nosso capitalismo. É evidente que não foi a impossibilidade de trabalhar como pedreiro que levou aquelas pessoas a delinquir. Retomando a classificação de Merton, continuará existindo a inacessibilidade aos fins culturais, pelos meios legítimos.
Isso me leva a perguntar: será o problema do criminoso um déficit de socialização? Ou será ele apenas mais um numa sociedade em que os vínculos éticos estão destruídos? Nesse caso, que modelos propor a ele a fim de “transformá-lo”, como desejam os ressocializadores? O do “bom trabalhador”? Mas esse “bom trabalhador” é mesmo alguém valorizado e desejado nessa sociedade? Tenho minhas dúvidas se falta socialização ao criminoso ou, ao contrário, sobra.12

A remição da pena, que é o fruto específico do trabalho e do estudo prisional é um instituto absolutamente precário. Ao cometer uma falta grave o preso perde até 1/3 dos dias remidos13. Por um lado, ofende-se o princípio da coisa julgada, já que pena remida é pena cumprida14 e, deste modo, a sanção pela falta equivaleria uma nova pena15. Por outro lado, retira-se o que foi conquistado pelo trabalho16 ou estudo, em razão de fato que muitas vezes não tem qualquer relação com eles.
Punir este preso- disciplinado no trabalho, indisciplinado no Pavilhão- com a perda dos dias remidos significa não reconhecer o seu mérito por ter respeitado as normas da instituição total num determinado espaço, pois o privará dos frutos da atividade exercida nesse espaço em que teve bom comportamento.17

Apesar de instituir o trabalho prisional como dever e direito do preso, parece que apenas a primeira modalidade é levada a sério. O ofício foi pensado primordialmente como punição, uma vez que o parágrafo segundo do artigo 28 da LEP exclui os presos do regime celetista. Eles não têm direito à férias, a 13º salário, a repouso remunerado e nem sequer ao salário mínimo18. A Constituição Federal19 garante a todos os trabalhadores, sem excepcionar os que estão presos20, aqueles direitos21. Praticamente todos os juízes, promotores e, neste ponto, a grande maioria dos defensores públicos aceitam passiva e acriticamente a prevalência da LEP em relação à Carta Magna também nesta situação.
Se os presos não têm direitos trabalhistas, como o “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”, é forçoso concluir que não são considerados trabalhadores.
De fato, quem é obrigado a trabalhar e, mais que isto, a trabalhar recebendo apenas uma pequena ajuda de custo não é empregado. É cativo, ou se preferir, escravo. Definitivamente, escravos não têm condições de atingir os fins culturais aceitos pela sociedade. Com a oferta de ensino primário, cursos profissionalizantes subalternos, trabalhos precários e mais assemelhados à escravidão, talvez seja mais correto imaginar que a proposta da nossa execução penal, no sentido mertoniano, seja a simples transformação de pobres inovadores em pobres subalternos conformados.

8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira.

A Escola de Chicago associou a criminalidade à desorganização social e à degradação dos ambientes. Trouxe como principal inconveniente a associação da delinqüência à pobreza. Uma execução penal de acordo com aquelas ideias teria necessariamente que prever formas de atuação nas comunidades de onde vêm os apenados, de modo a fornecer saúde, saneamento básico, limpeza, moradia digna, etc. Obviamente, nossas leis não prevêem nada disto.
Para produzir os efeitos colaterais, porém, temos dispositivos bastante eficientes. Embora seja prevista na LEP a assistência social 22, a especificação das suas atividades esclarece que a função primordial é avaliar e julgar o preso23. Assim, os assistentes sociais terminam sendo obrigados a utilizar todo o seu tempo para descrever as condições de moradia, ou estruturação da família.
Os dados obtidos não são usados como ponto de partida para uma atuação estatal firme nas localidades. Servem apenas como indícios de impossibilidade de obtenção de direitos que concedem parcelas de liberdade, como a progressão de regime, ou o livramento condicional. Passa a existir uma inconstitucional presunção de culpa de futuros delitos, a partir das condições sócio-econômicas degradadas.
Desperdiçando o potencial dos assistentes sociais, a redação original da LEP e a interpretação francamente inconstitucional que se faz dela e das suas alterações invertem a sua função social e transformam o seu trabalho em mero instrumento de criminalização da pobreza.
Aos assistentes sociais diante desta realidade, cabe ocupar campo profissional, com responsabilidade ética e política, colaborando com as transformações necessárias, inserindo, como salienta Iamamoto (1992), “o novo fazer profissional”, que para tanto, necessita negar a base tradicional e conservadora, afirmando um novo perfil técnico, não mais um agente subalterno ou apenas executivo, mas um profissional competente técnica, teórica e politicamente.24


1 SYKES, Greshmam M. The Society of Captives- a Study of a Maximum Security Prision. Princetown. Princetown University:2007. Original publicado em 1958.

2 COELHO, Edmundo Campos. A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade.. Rio de Janeiro. Record:2005. P.32

3 Disponível em http://www.alemdanoticia.com.br/ultimas_noticias.php?codnoticia=399 . Acesso em 23 de novembro de 2011.
4 COELHO, Edmundo Campos. A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade.. Rio de Janeiro. Record:2005. P.36
5Lei 7210/84. Arts. 17,18 e 19.
Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado.
Art. 18. O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa.
Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico.
Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição

6 Lei 7210/84. Art.28.
Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.
§ 1º Aplicam-se à organização e aos métodos de trabalho as precauções relativas à segurança e à higiene.
§ 2º O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho.
7 Lei 7210/84. Art.126.
Art. 126.  O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011).
§ 1o  A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 2o  As atividades de estudo a que se refere o § 1o deste artigo poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados.  (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 3o  Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de trabalho e de estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem.  (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 4o  O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 5o  O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 6o  O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui liberdade condicional poderão remir, pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional, parte do tempo de execução da pena ou do período de prova, observado o disposto no inciso I do § 1o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 7o  O disposto neste artigo aplica-se às hipóteses de prisão cautelar. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 8o  A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)

10 NEIVA, Gerivaldo. COMO SE COMEÇA DE NOVO SEM NUNCA TER COMEÇADO ANTES?-Comentários sobre o Programa Começar de Novo, do CNJ. Disponível em http://www.gerivaldoneiva.com/2011/09/como-se-comeca-de-novo-sem-nunca-ter.html . Acesso em 23 de novembro de 2011.

11 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=pWN_H_si4nQ . Acesso em 23 de novembro de 2011.

12PINTO NETO, Moysés. Hiperssocializados. Disponível em http://moysespintoneto.wordpress.com/2011/09/14/hiperssocializados/ . Acesso em 23 de novembro de 2011.

13 Lei 7210/84, Art 127.
Até 2011, quando foi promulgada a lei 12433, a perda era total.
14 Lei 7210/84, Art. 128.
15 BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. São Paulo; Quartier Latin, 2006. P.251

A doutrina insiste que a remição não pode ser considerada como simples abatimento dos dias trabalhados mas como pena efetivamente cumprida pelo sentenciado. Sendo assim, não nos parece correto desconsiderar este período diante do cometimento de falta, o que seria absolutamente contraditório àquela definição, pois a pena efetivamente cumprida não pode ser reconsiderada para ser novamente cumprida. O condenado estaria cumprindo duas vezes a mesma pena.
16
CHIES, Luiz Antonio Borges. Prisão: Tempo, Trabalho e Remição. Reflexões Motivadas pela Inconstitucionalidade do Artigo 127 da LEP e outros Tópicos Revisitados. In Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P.546

Com efeito, e o que é agravado pela realidade concreta do sistema penitenciário brasileiro, o conteúdo do artigo 127 da LEP encontra insanável vício, uma vez que afeta a segurança contratual daquela que pode se considerar como a principal contraprestação devida ao apenado trabalhador, na relação que estabelece com o Estado.
17
PRADO, Daniel Nicory. Perda dos dias remidos e o princípio da proporcionalidade. IN XIMENES, Rafson Saraiva e PRADO, Daniel Nicory do(Coord.). Redesenhando a Execução Penal.- a superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade Baiana,2010.p.183
18 Lei 7210/84. Art. 29
Art. 29. O trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo.
19 Constituição Federal. Art.7º
20ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Ensaio sobre uma Execução penal mais racional e redutora de danos. In Ideias para a construção de uma Execução Penal mais democrática. 1.ed. Rio de Janeiro: NUSPEN, Defensoria Pública do Rio de Janeiro,2010. p.34.
21 SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. In Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P.236
22 Lei 7210/84. Art.22.
Art. 22. A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade.
23Lei 7210/84. Artigo 23.
Art. 23. Incumbe ao serviço de assistência social:
I - conhecer os resultados dos diagnósticos ou exames;
II - relatar, por escrito, ao Diretor do estabelecimento, os problemas e as dificuldades enfrentadas pelo assistido;
III - acompanhar o resultado das permissões de saídas e das saídas temporárias;
IV - promover, no estabelecimento, pelos meios disponíveis, a recreação;
V - promover a orientação do assistido, na fase final do cumprimento da pena, e do liberando, de modo a facilitar o seu retorno à liberdade;
VI - providenciar a obtenção de documentos, dos benefícios da Previdência Social e do seguro por acidente no trabalho;
VII - orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima.
24 TORRES, Andrea Almeida. A Lei de Execução Penal e as Atribuições do Serviço Social no Sistema Penitenciário: Conservadorismo pela via da “Desassistência” Social. In Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Ps.202-203.