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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O Projeto de Dona Irene ( ou Vida de Sajuano)


Noite de quarta, em 2002. SAJU, porão da Faculdade de Direito UFBA.

-Rafito, você está muito ocupado?
- Não, nada urgente.
- Dê uma força pra Candice. Ela está sozinha, é caloura e chegou uma assistida. Tá muito insegura.

- E aí, Candice? Tem a ficha da triagem? Humm... Alvará para liberação de FGTS? Vamos lá. Você vai ver que o atendimento é muito tranquilo. Não tem mistério.

- Boa noite, Dona Irene? O que está havendo? Algum problema?
- Vários!
- Certo, mas qual te trouxe aqui?
- Estou indignada com a ingratidão desse país!
- Do Brasil?
-Quando o país precisou, eu ajudei com o meu projeto. Agora que preciso, a justiça me trata desse jeito! Total descaso!
- É... a justiça tem vários problemas... mas, o que houve exat...
- Comigo tinha que ser diferente! Eu não sou qualquer uma! Isto é coisa desse Fernando Henrique!
- O presidente?
- Claro! Pensa que me engana? Com essa eleição, pra matar os aposentados?
- O quê?
- Você não sabia? Essa eleição é um plano de Fernando henrique e Bill Clinton, para acabar com os aposentados.

( Candice levanta, sai e não volta.)

- Tem certeza?
- É óbvio que sim, afinal, ele sequer é presidente?
- Não?E quem é?
-Ora, essa! Eu, rapaz!
- Mas, vamos esquecer eles e falar sobre o seu problema de agora.
- Mas, o meu problema de agora é esta vergonha. Olhe, se eu fosse uma pessoa desequilibrada, pegava uma arma e matava todo mundo!

( Os olhos de Rafito procuram as mãos de Dona Irene e não deixam de acompanhá-las. Ele se esforça para não tremer e se pergunta quem poderá lhe defender.)

- Ainda bem que a senhora é equilibrada, Dona Irene. Mas, não tinha um problema de um FGTS? Vamos começar por ele?
- Que FGTS? Isto é uma bobagem! Eu estou preocupada é com o meu projeto! Roubaram o meu projeto!
- Mas, que projeto, Dona Irene?
- Você não conhece o meu projeto?
- Não...
- Você, em uma faculdade de direito, não conhece o meu projeto?

(Rafito faz um exame na memória. Será que tem mesmo um projeto? O olhar de desprezo e desapontamento da assistida pela sua ignorância chegam a machucar.)

- Olha, Dona Irene, eu sou só um estudante. Acho que ainda não vi essa matéria. Deve ser lá no final do curso. O que diz o seu projeto?
- Sei... Fala da Internet.
- Ah! É um site?
-Site? Site? Meu projeto é a própria Internet! Eu inventei a internet! E não querem me pagar nada!
- Você inventou? Não foram os americanos?
-Americanos? Ai,ai...
- Isto deve te deixar doente de raiva, né?
-Claro!
- E a senhora toma algum remédio, pra se acalmar?
- Eu tomo um que o médico passou. Mas, acabou na semana passada e eu ainda não comprei mais.
-Mas, vai comprar?
- Sim, amanhã.
-Então, vamos fazer o seguinte. A senhora vai pra casa descansar, eu estudo o seu projeto e semana que vem, quando tomar os seus remédios a senhora vem. Certo?
- Tudo bem. Mas, como você vai encontrar o meu projeto?
-Eu pesquiso, Dona Irene.
-Não, Fernando Henrique escondeu tudo, mas eu tenho uma cópia.

(Dona Irene, põe na mesa um calhamaço de leis. Em todas as folhas está assinado, de caneta vermelha: Maria Irene, Presidente do Brasil).

-Posso ficar?
-Claro que não! Você tira uma cópia!
-Mas, não tem xerox funcionando agora.
- Então, eu trago uma cópia semana que vem.
- Combinado.
-Olha, percebi que você é um rapaz estudioso, vou te recomendar para o meu filho. Ele é famoso.
-Obrigado, Dona Irene. Quem é ele?
-Ronaldinho.
-O Gaúcho ou o Fenômeno?
-Todos dois. Eram todos mendigos, quando eu peguei pra criar. O Rubinho também.
-Barrichelo?
-Sim, tudo mendigo.
-Fico feliz, Dona Irene. Sou fã dos seus filhos.
- Muito obrigada. Até a semana que vem.

( Rafito suspira, enquanto vê que Dona Irene vai embora. Na semana seguinte, a asistida voltou e não mencionou projetos, presidentes, internet, Ronaldinhos. Só FGTS. Por sorte, ela permaneceu sempre equilibrada. Até hoje, ele quer matar Candice, por deixar a mesa. Os estudantes aprenderam uma lição: sempre tem mistério.)

4 comentários:

  1. ahahahhahaaha adorei Rafito!
    bjs
    Danny

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  2. Olá Dr. Rafson, tudo bem? Saiba que é um privilégio para mim ter conhecido seu blog. Gostei muito. Por esse motivo passei a segui-lo. Ah, ai me esquecendo: sou fã dos “nordestinos”. O dr. é? Bem, não vem ao caso. Certo é que, aqui em São Paulo, o preconceito é grande. Também, é compreensível. Tendo em vista que a fonte de informação que eles têm (revistas e jornais sensacionalistas de péssima qualidade) é formada por pseudo-intelectuais, que não conseguem explicar nem mesmo sua existência. Desculpe-me, dr., é que fiquei um pouquinho empolgado. Voltando, sou acadêmico de direito e após formado quero prestar concurso para defensoria. Seria muito importante tê-lo como meu seguidor. Também tenho um blog mais nada comparado com esse aqui, onde os temas são abordados com muita maestria. Se puder ter a honra de tê-lo como seguidor, ficarei lisonjeado. Espero não ter criado um impacto negativo com esse comentário em relação à elite paulista.

    Um abraço e parabéns pelo blog!

    http://nilton-cezar.blogspot.com/

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  3. Velho,

    este episódio ainda é muito "fresco" em minha memória!
    Ótima recordação, rs!
    Até hoje é um mistério para mim.
    Além desse, me lembro de uma assistida que acreditava terem nela implantado um chip na cabeça. A idéia era vigiá-la...rs.
    Enfim, riquezas do SAJU.

    Abraço,
    Rodrigo Barata

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  4. Excelente! Você tem o dom da escrita.
    Os casos são realmente parecidos.

    Abraço.

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