Translate

segunda-feira, 4 de março de 2013

O Inferno são os outros. Agora, em garrafas.


Varonil chegou apressado, mas se tranquilizou ao olhar o relógio. Embora o coro lá estivesse há um bom tempo, ensaiando para a abertura, cumpria o horário. Felizmente, o estacionamento era adequado para a grandiosidade da celebração. Existiam cerca de 400 automóveis no local, o que já era esperado, pois o público e os organizadores, juntos, somavam quase 500 pessoas.

Pensou na importância de se verificar antecipadamente o espaço destinado aos veículos. Hoje, qualquer empresa ou instituição que se preze precisa tomar certos cuidados. Na sua antiga faculdade, por exemplo, reinava o caos. Os estudantes eram obrigados a chegar bem mais cedo, ou a se arriscar, parando o carro muito longe. Imprudência da direção, afinal, onde existem 600 docentes, não podem haver apenas 300 vagas. Não é óbvio que 300 sempre sobrarão?

Nem tudo são flores, todavia. Se no estacionamento, os organizadores foram muito felizes, em outros aspectos foram deploráveis. O horário foi completamente inadequado. Plena hora do rush! É impossível chegar em qualquer lugar, sem se estressar. É até mais rápido ir a pé. O pior de tudo é olhar o velocímetro e notar que a máquina projetada para atingir 250 quilômetros por hora não consegue passar de 20! Pelo menos, não há risco de multas, que seriam inevitáveis, uma vez que, no país, não existe nenhuma via que admita aquela velocidade.

Mais sorte teve o Otávio. Pelo menos, desta frustração se livrou. Com o carro na revisão, saiu com o da esposa, que tem o motor 1.0. Porém, esta vantagem não é reconhecida por ele. Além de lamentar o preço cobrado, sente-se meio exposto e envergonhado, em um carro pequeno. Preferia pegar emprestado o que comprou para o filho, quando ele completou 18 anos. Mais potente, maior e mais másculo. O que se chama de "carro de patrão"! Contudo, o menino precisava dele para ir à academia. E, hoje, especificamente, não poderia pegar carona com a irmã, pois pretendia caminhar 30 minutos a mais, na esteira.

Durante a viagem, esforçava-se para esquecer o vexame. Era melhor se concentrar na estratégia de sobrevivência no asfalto que Carlos, outro colega, o ensinara. Consistia em pular de um caminho a outro e dançar entre as faixas, em busca de uma via menos lenta. Há algum tempo, desconfiava que não funcionava bem, quando praticada sem método. Corria o risco de somente aumentar as distâncias, trocando um congestionamento pelo outro. Por isto, ouvia sempre o rádio, à espera dos informes sobre o trânsito, para facilitar.

Érica não pensava do mesmo modo. De que adianta falarem do tráfego se sempre o conteúdo das notícias é o mesmo? Todas as vias estavam engarrafadas, em qualquer horário de qualquer dia. Optava por ouvir música. A mais tranquila possível, pois se escutasse algo agressivo, xingaria todos os outros que estivessem no caminho. Lamentavelmente, sua tática era tão ineficaz  quanto a do amigo. Por mais que João Gilberto entrasse pelo seu ouvido, era Metallica o que saía pela sua boca. O barquinho pode até ir, mas quando a tardinha cai, o carrinho está parado. Matem eles todos, pensava.

Desconfiava da razão do problema: Hoje, todo mundo tem carro. O porteiro do prédio dela vai ao trabalho dirigindo. O mestre de obras tem carro. Quando o presidente reduziu o IPI, tudo se agravou. Além dos financiamentos já serem acessíveis, os preços ainda baixaram. Chegava a ser quase uma irresponsabilidade esta política que facilitava a aquisição de automóveis. Apenas não a odiava por completo, porque sem ela não conseguiria comprar o seu segundo veículo. 

Lembrou, então, de culpar a faixa exclusiva para ônibus. Era inadmissível que as pistas, já estreitas, possuíssem um espaço reservado para o transporte coletivo. Para piorar, os motoristas invadiam as faixas restantes, tumultuando ainda mais a rua. Logo, devido a esta política, agora sim, sem dúvidas, irresponsável, os ônibus, espertinhos, andam depressa, enquanto os condutores, que pagavam os mesmos impostos, ou mais, são prejudicados. É o bolsa-buzu, puro populismo!

 Assim como Érica, Solano também concluíra que o governo favorecia quem andava de ônibus. Ele mesmo,  acharia melhor andar de coletivo, entretanto, todos sabem que isto é impossível nos dias de hoje! É verdade que a maior parte da população não possui carro, mas, convenhamos, não dá para comparar. Cada extrato social tem as suas peculiaridades e é capacitado para sobreviver a situações diversas. Pobre suporta ônibus. A classe média suporta os engarrafamentos. Assim como peixe nada, cachorro anda e ave voa. Sorte dos ricos, que usam helicópteros.

E ainda tem a questão da segurança. Quem tem coragem de andar na rua? Vejam as calçadas, totalmente desertas! Como todos acompanham os jornais, todos sabem que, ao sair a pé, você corre o risco, aliás, quase uma certeza, de ser assaltado e sequestrado. Isto se não for estuprado e assassinado, em plena luz do dia. Os bandidos são muito ruins. Mesmo que a violência sexual  e morte não ocorram, será muito difícil seguir a vida sem aquela nota de cinquenta que estava no bolso. Ou, pior ainda, sem o celular. São perdas irreparáveis. Como todos são prevenidos, todos ficam nos carros. Se todos estão nos carros, ninguém está na rua. Só caminham por aí o medo e os marginais.

Os amigos se encontram, felizes por terem comprado seus carros e mais ainda por serem visto com eles, mas infelizes sempre que os usam anonimamente. Contrariando as expectativas, ainda têm um tempinho para conversar, antes do início das atividades. Em frente ao espelho do saguão, apontavam, irritados, justificativas para os seus terríveis dramas existenciais. Após as reclamações de praxe, alguém pergunta como estava aquele rapaz que deixara a firma, há alguns anos. Solano rindo, comentou que ele, agora, usava uma bicicleta para ir ao trabalho.

Varonil estalou a língua, sucessivamente, no céu da boca. 
Otávio balançou a cabeça, com desprezo. 
Carlos mirou o céu, enfadado. 
Érica se repreendeu, mentalmente, por ter se envolvido em um breve romance com ele.
Solano teve a honra de finalizar o assunto, com a unânime e entusiástica aprovação dos demais:

- Paciência, companheiros. A esta altura, o pé deve ter se transformado em um grande calo. E ele pensa, seguramente, que é um monarca, como Luis XVI, ou até Napoleão. Não percamos tempo com malucos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! Vá em frente e comente! Somente não serão aceitas mensagens ofensivas. É um espaço de diálogo e não de agressões.