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sábado, 8 de fevereiro de 2014

As Águas passam, as Pedrinhas ficam.



Em 2010, aconteceu em Brasília, o Seminário Nacional de Controle de Tuberculose no Sistema Prisional. Um juiz, falando em nome do CNJ, talvez pensando que falasse para pessoas que não conhecem as prisões, fez uma palestra piegas, cheia de pausas dramáticas e expressões faciais de piedade. Em resumo, narrou que, durante uma inspeção realizada pelo CNJ, os profissionais de saúde haviam dito aos juízes que não entrasse no pátio e nas celas, porque correriam sério risco de contrair doenças. Quando esperava as lágrimas emocionadas e os aplausos, entretanto, o orador foi surpreendido pela revolta da plateia. Os profissionais de saúde do cenário da história negaram que a recomendação tenha sido feita e disseram que foi uma decisão exclusiva dos magistrados. 

Então, veio a questão mais importante: se os juízes achavam que não poderiam entrar ali por alguns minutos sem danificar as suas saúdes, como permitiram que pessoas continuassem trabalhando e, principalmente, vivendo, encarceradas, ali? O Sistema Prisional raramente, ou nunca, funciona nas condições exigidas por lei. Todos sabem que as pessoas continuam presas ilegalmente. Porém, aparentemente, as autoridades que poderiam mudar a situação sentem que para cumprir o seu papel basta reconhecer que é errado, lamentar que é errado e ir embora. O estado onde se passava a história era o Maranhão. O narrador não disse o nome do estabelecimento. Talvez fosse Pedrinhas. A omissão, todavia, é indiferente, porque Pedrinhas, ao contrário do que parece, é apenas mais uma prisão e não uma situação excepcional.

Os estabelecimentos penais ficam lá quietinhos, fervendo por dentro, mas ignorados do lado de fora. Até que surgem imagens chocantes, como as cabeças decapitadas, ou um massacre de centenas de pessoas e a questão carcerária desponta. Vêm as críticas contundentes dos políticos e simpatizantes dos partidos de oposição, que, aliás, nunca falaram ou fizeram nada à respeito, quando foram situação. Vêm as justificativas e relatos de melhorias fictícias por parte dos políticos e simpatizantes dos partidos da situação. Vêm as desculpas de que "isto não me foi comunicado antes", por parte não políticos que poderiam ter agido. E surge a proposta mágica universal: mutirão para identificar penas vencidas e coisas semelhantes.

O problema do descumprimento sistemático dos direitos dos presos é silenciado. Isto começa a acontecer, na verdade, desde que os direitos são rebaixados ao status de benefícios, ou seja, favores, atos de generosidade do Estado. Chega ao ponto de um relatório elaborado pelo CNJ chamar de benefício até mesmo a extinção da pena por cumprimento integral, em um desses mutirões. Como tudo são só benevolências autorizadas pelos juízes, não é tão grave manter dez pessoas em uma cela para quatro.  Fica tolerável a manutenção de pessoa em regime semi-aberto em estabelecimento fechado e por aí vai. "Desculpa aí, senhor preso, mas hoje não dá para quebrar o seu galho".

Passam alguns dias, o assunto vai mudando e descamba para as "regalias" dos presos. Descobre-se, em um passe de mágica, que prisões tem líderes. Com uma surpresa ainda maior, chega-se à inesperada conclusão de que as lideranças fazem negociações com administrações prisionais. Mas, chega-se a revelações ainda mais estarrecedoras: "Presos têm televisões!" "Presos tem fogões!" "Presos usam drogas!" E o discurso muda para o ódio aos presos. Eles deixam de ser as pessoas que vivem em condições insalubres, com risco de serem decapitados ou massacrados. Voltam a ser os marginais, os cruéis, os monstros e, afinal, os únicos culpados por aquele mal estar.

Aí, a gente não lembra mais que praticamente todas as prisões têm mais presos que vagas. Aí, a gente continua decretando a prisão do menino que roubou três livros. Aí, a gente continua decretando prisão provisória por risco à ordem pública, sem nem explicar o que é isto. Aí, a gente aprova aumento de pena para isto e novo tipo penal para aquilo. Aí, a gente pede redução da maioridade penal. Aí, a gente amarra o garoto no poste. Aí, a gente reclama dos direitos humanos. Aí, o mutirão acaba e o estabelecimento continua com mais gente do que é capaz de suportar. Aí, a gente simplesmente esquece e tudo volta ao normal. As águas passam, as pedrinhas ficam. Afinal, na guerra do rochedo com o mar, sempre sobra para o siri. Ainda mais se o siri for daqueles mais escuros.

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