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sábado, 27 de novembro de 2010

Sede de Sangue.

Ela tinha apenas 13 anos e já estava morta. O casal chorava, como nunca imaginou ser possível. Os peitos apertavam, a garganta secava, os olhos transbordavam. Rezavam para que fosse um pesadelo. As pernas tremiam, o mundo rodava e a vista escurecia. Não há maior sofrimento para um pai ou para uma mãe, que enterrar o próprio filho, ou a própria filha.

Dias antes, eles se viram em um dilema. Tinham o poder de decidir se a menina poderia ou não se submeter a uma transfusão de sangue. O procedimento seria, em tese, capaz de salvá-la. Mas, haveria um custo: seria uma ofensa a Deus. Pode não ser o seu Deus ou o meu, mas o deles não perdoava o uso do sangue, como alimento.

Eles discutiram,ponderaram e chegaram à conclusão que parecia mais sábia. Ela talvez vivesse até os 100 anos, contudo o faria indignamente, aos olhos do criador. Os seus incertos dias na terra seriam seguidos pela aflição na vida eterna. Tê-la ao lado era mais confortável para os pais e, a curto prazo, melhor para a criança. Mas, no futuro, ela pagaria muito caro e por muito mais tempo. Sua expectativa de vida era insignificante, frente ao juízo final. Por pior que fosse a dor, era melhor suportá-la.

Os dois viam a menina no seu quarto vazio e nos seus brinquedos, abandonados. Lembravam dela a cada vez que viam seus livros fechados ou passavam por sua escola, repleta de alunos, mas sem ela. Pensavam no que disseram e deixaram de dizer, no que fizeram e deixaram de fazer, no que viveram e deixaram de viver com ela. A cada lembrança, impiedosamente, voltava o pensamento: "vocês decidiram assim". Não há maior sofrimento para um pai ou para uma mãe, que enterrar o próprio filho, ou a própria filha e saber que, talvez, pudesse ter evitado a tragédia.

A angústia não aumentava e um policial os visitou. Precisariam comparecer à delegacia, para prestar depoimento. Não bastava o que passaram e o que passavam. Precisariam relatar tudo novamente, para um delegado. Depois, para um juiz. Por fim, para sete jurados, diante de uma plateia ensandecida.

Teriam que responder a perguntas, sempre desconfiadas e acusatórias, dos policiais, dos promotores, dos juiz e dos jurados. Sem falar nos jornalistas. Teriam as vidas devassadas, as crenças questionadas e as próprias existências recriminadas. Diante de um grande crucifixo, os acusadores repetiriam que o país é laico. Os algozes diriam que é inaceitável uma religião que pregue vincule a dignidade está no sangue, embora fosse achassem recomendável uma que a põe no hímen.

Durante a execração pública, seriam obrigados a relembrar por "n" vezes tudo o que passaram e, por fim, seriam condenados à prisão. O mundo certamente estaria melhor. e sentiria mais seguro. Jamais alguém voltaria a morrer. A menina, do céu, celebraria, vendo que os seus pais foram punidos. Agradeceria a Deus se a pena usasse a maior severidade possível.

Para nós, virtuosos, cidadãos de bem, racionais por excelência, não bastaria o sofrimento de um pai e de uma mãe, que enterrou a própria filha, sabendo que, talvez, pudessem ter evitado a tragédia. Somente poderiamos dormir tranquilos, com a certeza de que os dois pagaram pelo que fizeram. Estariamos vingados.O sangue, finalmente, nos alimentaria. Por hoje.

Texto inspirado na Matéria "Entre a vida e a crença", da revista Istoé nº2141. Veja aqui.


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