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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Mito da Modernidade 8.1 De Olhos Fechados



Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):

O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!


8. EXECUÇÃO PENAL BRASILEIRA.

Quando a lei de execuções penais (LEP)1, o elemento infraconstitucional mais importante sobre o tema, no Brasil, foi promulgada, a academia discutia outras teorias. Falava-se sobre o nascimento da nova criminologia, que abarcaria a criminologia crítica, a criminologia radical2 e a criminologia cultural e estudaria, de maneira mais profunda as relações econômicas, as relações de poder3 e a perspectiva do estigmatizado sobre as normas e a sua violação4.
Nenhuma daquelas escolas, relativamente recentes na época, conseguiu influenciar de modo significativo as regras que surgiam. Neste trabalho, nos limitamos a verificar como a LEP e as suas posteriores modificações e interpretações, recepcionaram as doutrinas da antiga criminologia. Assim, será possível verificar não só se temos uma legislação moderna hoje, mas se tínhamos uma legislação moderna, em 1984.

8.1. De Olhos Fechados. Labeling Approach e Execução Penal Brasileira.

O interacionismo apresentou alguns elementos chaves: a) a constatação de que o aparato penal, ao perseguir e rotular alguém como desviante, acaba por criar identidades das quais é difícil escapar; b) as instâncias de controle atendem a diversos interesses pessoais e se submetem a diversas pressões externas. Por isto, são seletivas, arbitrárias e precisam ser vistas com desconfiança.
Quando pensamos na rotulação, é impossível negar que um dos instrumentos mais eficazes para atingi-la é a prisão. É um ambiente rigidamente controlado, com horários e atividades determinadas por carcereiros e diretores, no qual é lembrada a diferença entre os internos e os que estão do lado de fora, a cada instante. A comunicação com o meio externo é limitada, punida e até criminalizada. Vinte e quatro horas por dia, o preso é lembrado de que é apenas isto, um preso, um sentenciado, um reeducando, ou qualquer desses rótulos pretensamente eufemísticos.
Apesar disto, nossa execução penal é amplamente centralizada na prisão. Mesmo nos momentos em que permite determinada abertura, ou arrefecimento das restrições dos contatos externos, o rótulo é lembrado e até estendido a terceiros. Pensemos nas visitas, que são autorizadas, porém, sujeitas a revistas vexatórias, com procedimentos invasivos, degradantes5 e inúmeros constrangimentos.
O fato é que embora a regulamentação do ingresso e visita aos familiares nos estabelecimentos penais estabeleça que a revista não exporá o revistado a constrangimento, não é esta a realidade verificada nas unidades prisionais do país. Thaís Lemos Duarte em estudo sobre procedimentos de revistas íntimas realizadas no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro identificou que durante revistas íntimas aos mencionados estabelecimentos mulheres devem se despir, ficando nuas diante das agentes penitenciárias. Via de regra, elas devem levantar e abaixar três vezes, primeiro de frente e depois de costas.(...) Em outros presídios, as mulheres precisam ficar com o tronco para baixo, abrir suas partes íntimas com as mãos e soprar uma garrafa plástica.6
As saídas temporárias7 são acompanhadas de restrições de cunho moralista, fixadas em lei, como a proibição de freqüentar bares e casas noturnas. Na progressão para o regime aberto, as mesmas vedações são repetidas pelos juízes, embora não haja previsão legal expressa8. Note-se que são atividades de lazer lícitas, praticadas exaustivamente pelos não rotulados, inclusive julgadores e legisladores, sem que isto os coloque em situação de suspeita.
Mesmo as penas tidas como alternativas à prisão não conseguem fugir das grades. Elas nunca puderam diminuir o índice de encarceramento, como reconhecem as pesquisas9. Uma das razões é que, ao invés de simplesmente diminuírem as punições, atingem condutas que não seriam punidas inicialmente com a cadeia, por absoluta desproporcionalidade. Constituem-se, assim, um sistema complementar e não diverso10.
De outra parte, sua aplicação gira sempre em torno da possibilidade da conversão na privação de liberdade. O condenado percebe que, na verdade, a sua realidade é a daquelas pessoas encarceradas. Embora como o seu defensor, o promotor, ou o juiz, ele não esteja atrás das grades, basta que falte ao trabalho para que ser encarcerado. Sua condição livre é, portanto, nitidamente precária11.

Positivou-se, no sistema penal brasileiro, a possibilidade da aplicação de penas e medidas alternativas sempre com a sombra da privação da liberdade. Tem-se uma visão atinente às penas e às medidas alternativas como componentes de um sistema que apresenta a pena de prisão como principal mecanismo sancionador, devendo tudo que for alternativo vir maculado pelo “benefício” da não prisão.12

Em 2010, foi introduzida modificação legislativa, apresentada como meio de descarceirização, por instituir o monitoramento eletrônico. Trata-se o uso de pulseiras ou tornozeleiras, que permitem o rastreamento por satélite e a comunicação instantânea. O monitoramento eletrônico tem o inconveniente de explicitar publicamente o estigma do crime. A despeito disto, seria, em tese, um mal menor do que a permanência na prisão.
Contrariando a hipotética intenção de substituir a prisão pelas pulseiras, contudo, o nosso legislador previu o seu uso apenas em situações nas quais o preso já estaria na rua: as saídas temporárias, para o regime semi-aberto e a prisão domiciliar13. Não se criou nenhuma nova possibilidade de saída do cárcere, mas se acrescentou um elemento estigmatizante às situações de relativa liberdade14.
Em relação à necessária desconfiança sobre as instâncias de controle penal, a legislação infraconstitucional também não dá grandes passos. Todo e qualquer direito a ser conquistado pelo preso depende do atestado de conduta, fornecido pelo diretor da unidade, que concentra um grande poder de definir o conceito e controlar o tempo de produção do documento15.
Ampliando este poder, as faltas graves previstas pela Lei de Execuções Penais são permeadas de conceitos abertos, polissêmicos e autoritários, que podem ser preenchidos livremente pelos acusadores16. São infrações, por exemplo, desobedecer ou ser desrespeitoso com os agentes, não executar as tarefas e ordens recebidas ou incitar movimento para subverter a ordem e a disciplina17.
No inciso I temos a previsão de que comete falta grave o condenado que incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina. Note-se que a amplitude da expressão “subverter a ordem ou a disciplina” é tamanha que, no fundo, qualquer fato contraditório poderia, pela via da argumentação, ser considerado falta grave.18

As faltas médias e leves são definidas pelos Estados e apresentam resultados ainda piores. Na Bahia, considera-se falta média “praticar atos que perturbem a ordem nas ocasiões de descanso, de trabalho ou de reuniões” 19, ou “divulgar notícia que possa perturbar a ordem e a disciplina”20. No Rio Grande do Sul, é infração demonstrar desleixo na execução de tarefas ou descuidar-se da higiene pessoal21. A discricionariedade das autoridades é imensurável.
O exemplo maior da absoluta falta de desconfiança em relação às instâncias de controle está na falta grave prevista no artigo 52 da LEP.
Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado (...).22

Além dos conceitos abertos de subversão da ordem e disciplina interna, para justificar o regime disciplinar diferenciado, o dispositivo condiciona a existência da falta à “prática de fato definido como crime”. A maioria da doutrina e quase a unanimidade da jurisprudência concluíram que para constatar a existência do fato não é preciso aguardar o julgamento, mas é suficiente a prisão em flagrante, ou a abertura de inquérito.
Não se referindo a lei a “condenação”, mas à “ prática de fato previsto como crime”, a aplicação da sanção disciplinar independe de que o fato ainda esteja sendo objeto de investigação ou ação penal, devendo apenas ser obedecidos a lei e o regulamento referentes ao procedimento disciplinar para que a sanção seja imposta.23
Em um Estado de Direito, com garantias mínimas, só podemos afirmar que um crime foi praticado por alguém, após haver condenação transitada em julgado. Para a maioria, porém, bastaria à polícia dizer que houve um delito, para se presumir a culpa do acusado. Não seria preciso haver uma acusação formal, direito de defesa ou julgamento. Nesta assustadora cegueira em relação à presunção de inocência, se existe algum grau de desconfiança, é difícil imaginar a liberdade que se daria caso houvesse confiança.
É escasso o aprendizado pela LEP dos ensinamentos do labeling approach. Mas, neste ponto, é preciso advertir que a observação da Constituição levaria ao reconhecimento da nulidade das normas aqui citadas. Esta análise da lei maior, para a lei menor, porém, raramente é feita. Nossos julgadores têm preferido interpretar a Carta Magna à luz da LEP e não o contrário.




1 Lei 7210 de 11 de julho de 1984.
2 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3.ed. Curitiba: Lumen Juris, 2009.
3 FOUCAULT Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
4 LINCK, José Antônio Gerzson. Malandro quando morre vira samba: Criminologias marginais de Madame Satã a Mano Brown.In Criminologia Cultural e Rock. LINCK, José Antônio Gerzson, MAYORA, Marcelo, PINTO NETO, Moisés e CARVALHO, Salo. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2011, p.47.

“A desvinculação entre crime e maldade era para ser um dos principais contributos da criminologia crítica para o pensamento. Tal intuito seria bastante facilitado se criminalizados participassem das teses acadêmicas, debatessem em congressos jurídicos e, ao invés ou conjuntamente aos congressistas estrangeiros, nós conseguíssemos compreender, sem tradutores, os dialetos inscritos na própria cidade em que vivemos.”
5 LEAL, César Barros. Execução Penal na América Latina à Luz dos Direitos Humanos- Viagem pelos caminhos da dor. Curitiba: Juruá, 2009. p.247
6 VENÂNCIO, Firmiane. Princípio da Intranscendência da Pena e o Modelo Penal Vigorante. IN XIMENES, Rafson Saraiva e PRADO, Daniel Nicory do(Coord.). Redesenhando a Execução Penal.- a superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade Baiana,2010.p.100.
7 Lei 7210/84, artigo 124.
Art. 124. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano.
§ 1o  Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado: (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
I - fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício; (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
II - recolhimento à residência visitada, no período noturno; (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
III - proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres. (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
§ 2o  Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.258, de 2010)
§ 3o  Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra. (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
8 Lei 7210/84, artigo 115.
Art. 115. O Juiz poderá estabelecer condições especiais para a concessão de regime aberto, sem prejuízo das seguintes condições gerais e obrigatórias:
I - permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga;
II - sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados;
III - não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial;
IV - comparecer a Juízo, para informar e justificar as suas atividades, quando for determinado.
9 Ministério da Justiça. Disponível em http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBRNN.htm acesso em 28 de novembro de 2011.
10 PAVARINI, Massimo e GIAMBERARDINO, André. Teoria da Execução Penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P. 117.
A hipótese explicativa mais convincente é aquela segundo a qual o sistema de penas e medidas ´extra-cárcere´ e as possibilidades de se evitar o processo acabam por constituir um sistema complementar, e não substitutivo, da pena privativa de liberdade, com o efeito de não produzir a redução da população carcerária mas, bem pelo contrário, configurar mais punição.”
11 Lei 7210/84, artigo 181
Art. 181. A pena restritiva de direitos será convertida em privativa de liberdade nas hipóteses e na forma do artigo 45 e seus incisos do Código Penal.
§ 1º A pena de prestação de serviços à comunidade será convertida quando o condenado:
a) não for encontrado por estar em lugar incerto e não sabido, ou desatender a intimação por edital;
b) não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa em que deva prestar serviço;
c) recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço que lhe foi imposto;
d) praticar falta grave;
e) sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa.
§ 2º A pena de limitação de fim de semana será convertida quando o condenado não comparecer ao estabelecimento designado para o cumprimento da pena, recusar-se a exercer a atividade determinada pelo Juiz ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras "a", "d" e "e" do parágrafo anterior.
§ 3º A pena de interdição temporária de direitos será convertida quando o condenado exercer, injustificadamente, o direito interditado ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras "a" e "e", do § 1º, deste artigo.
12SOUZA Bethania Ferreira de. Penas e Medidas Alternativas. Redução do Aprisionamento ou Expansão Punitiva IN XIMENES, Rafson Saraiva e PRADO, Daniel Nicory do(Coord.). Redesenhando a Execução Penal.- a superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade Baiana,2010.p.200
13 Lei 7210 /84, art.146-B.
. Art. 146-B.  O juiz poderá definir a fiscalização por meio da monitoração eletrônica quando: (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
II - autorizar a saída temporária no regime semiaberto;  (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)
IV - determinar a prisão domiciliar; (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)

14 SILVA, José Adaumir Arruda da e SILVA NETO, Arthur Corrêa da Silva Neto. Execução Penal: novos rumos, novos paradigmas. Manaus: Editor a Aufiero, 2012. P.119.
15 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.P.226.
“A quantidade de óbices aos direitos dos presos em decorrência das sanções administrativas leva a afirmar que o sistema de penalidades disciplinares, regulados inquisitorialmente pela LEP, constitui sistema sancionatório autônomo e adicional á pena imposta na sentença condenatória.”
16 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2005. P.143.
“A amplitude semântica proporcionada pela descrição típica do artigo 50 da LEP é indubitavelmente um fator de desestabilização das garantias dos reclusos. Isto porque as decisões disciplinares no interior das instituições totais são desprovidas de predeterminações regulamentares e, quando o são, apresentam-se de forma ambígua e lacunar, ampliando o arbítrio do corpo administrativo.”
17 Lei 7210/84, art.39.
Art. 39. Constituem deveres do condenado:
I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;
II - obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se;
III- urbanidade e respeito no trato com os demais condenados;
IV - conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina;
V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;
VI - submissão à sanção disciplinar imposta;
VII - indenização à vitima ou aos seus sucessores;
VIII - indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho;
IX - higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;
X - conservação dos objetos de uso pessoal.
Parágrafo único. Aplica-se ao preso provisório, no que couber, o disposto neste artigo.

18 SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, A Crise da Legalidade na Execução Penal. In Crítica à Execução Penal. 2.ed. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P.46
19 BAHIA. Decreto 12447/2010, artigo 80, II.

20 BAHIA. Decreto 12447/2010, artigo 80, XIII.
21 RIO GRANDE DO SUL. Decreto 46.534/2009, artigo 13.
22 Lei 7210/84, artigo 52.
23 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: Comentários à lei 7210 de 11-7-1984. 11 ed. Revista e Atualizada. São Paulo: Atlas. P.148

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