Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!
O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo. 2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach. 7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.
- MEU NOME NÃO É JOHNNY. LABELING APROACH.
É que na profissão de ladrão
Injustiça e preconceito
Dá chuva pra inundação
Para alguns fama e respeito
Pra outros a maldição
Pois o tamanho do roubo
Faz
a honra do ladrão.1
Há algo compartilhado entre todas as teorias apresentadas até aqui.
Elas concentram as suas lentes nas pessoas caracterizadas como
delinquentes. Observam os seus genes, as suas casas, os seus meios de
subsistência ou os seus valores culturais. Em nenhum momento se
prestou atenção nas reações aos delitos, ou mesmo na definição
do que é crime. Este é o giro proposto pelo Labeling Approach2,
cujo marco mais reconhecido é a obra Outsiders, de Howard S. Becker.
Os interacionistas3
notam que a definição das condutas desviantes varia no tempo e no
espaço. O que foi lícito ontem não é lícito hoje e vice-versa.
Uma mesma prática, ainda que violenta, é tida por legítima pela
sociedade em determinadas circunstâncias e ilegítima em outras. Não
haveria, portanto, como buscar uma característica comum entre os
desviantes, pelo fato de praticar determinadas condutas. João Ubaldo
Ribeiro descreveu com maestria a perplexidade pela transição das
qualificações das condutas, ao longo do tempo.
Mas a sabedoria dessas questões
do Bem e do Mal foi posta em evidência e sobejamente provada quando
tudo começou a acontecer conforme o previsto na doutrina. Antes da
Redução, a aldeia era composta de gente muito ignorante, que nem
sequer tinha uma lista pequena para o Bem e para o Mal e, na
realidade, nem dispunha de palavras para designar essas duas coisas
tão importantes. Depois da redução, viu-se que alguns eram maus e
outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir
à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça
do filho e lhe besunta a testa de banha esverdeada, dizendo palavras
mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio,
mulher má.4
7.1. Status Desviante.
Há casos em que, dentro da mesma sociedade, pessoas cometem
determinados delitos e não são apanhadas, enquanto algumas praticam
os mesmos atos e o são. (cifras ocultas ou cifras negras). Por
vezes, pessoas capturadas pelo mesmo delito possuem destinos
completamente distintos. Umas são condenadas e demonizadas. Outras
não são nem mesmo acusadas, são absolvidas, ou recebem sanções
brandas. Existem ainda situações em que alguém é acusado
injustamente e já recebe o ódio da sociedade, mesmo antes do fim do
processo. O que une, portanto, as pessoas consideradas criminosas não
é o que fizeram ou deixaram de fazer, mas o rótulo que receberam.
Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam o desvio ao fazer
as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas
regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse
ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa
comete, mas a conseqüência da aplicação por outros de regras e
sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse
rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele
que as pessoas rotulam como tal.5
As teorias etiológicas (que são todas as anteriores) buscam as
causas predominantes para os delitos. Procuram a fórmula para prever
a prática de crimes isolando as variáveis escolhidas, seja a
pobreza ou a predisposição genética. Os interacionistas sugerem
que não há como isolar nenhum fator. É uma sequência de fatos e
atos que levam uma pessoa a se comportar (ou não) de forma
desviante, a repetir este comportamento ou a deixar de repeti-lo.
O modelo sequencial leva ao conceito de carreira (o trânsito de uma
posição a outra, dentro de um sistema) e da sua contingência
(fatores que influem ou condicionam este deslocamento)6.
O modo de ingressar na carreira desviante é a realização dos
desvios, de modo intencional ou não.
Várias razões podem levar à estabilização da carreira, mas a
principal seria o aprendizado social dos motivos e interesses
desviantes7.
O passo mais decisivo para estimular este passo é ser rotulado, por
ser apanhado, ou por auto-definição. Assim, há a assunção de uma
nova auto-imagem e uma nova identidade pública.
A partir da rotulação, a história de uma pessoa passa a ser a
história do rótulo. Sua vida é interpretada retrospectivamente e o
seu futuro projetado a partir deste ato. É assim que os outros a
vêem. É assim que ela se vê. Perde-se a característica de jovem
ou velho, de alegre ou triste, de pobre ou rico. Desaparece a criança
e fica apenas o ladrão, o capitão da areia.
Mas os dois desabaram pela rua
Chile, porque o guarda já estava quase junto a eles. O homem olhava
meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda.
- Lhe roubaram alguma coisa,
senhor?
- Não. Por quê?
- Porque como aqueles malandrins
estavam aqui junto do senhor...
-Eram duas crianças... Por
sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura.
-São ladrões- retrucou o
guarda. - São dos Capitães da Areia.
(...)
Como não achou coisa melhor com
que limpar, fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira.
Quando terminou, jogou o cartão na rua. Pedro Bala perguntou:
- Por que tu não guarda?
- Pra que quero?- e o Professor
riu, Pedro Bala riu também e por um momento suas gargalhadas
encheram a rua. Riam assim sem motivo, pelo prazer de rir.
- O homem parece que era bem
capaz de ajudar a tu ser um pintor...- apanhou o cartão e leu o nome
do homem. – Tu devia guardar. Quem sabe?
Professor baixou a cabeça:
- Deixa de ser besta, Bala. Tu
bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que
quer saber da gente? Quem? Só ladrão, só ladrão...– e sua voz
se elevava, agora gritava com ódio.8
Existem, entretanto, diferentes status, com características
principais e auxiliares9,
que acompanham os rótulos. Isto quer dizer que cada posição social
é acompanhada de traços não diretamente relacionados com ela, mas
que compõem o seu estereótipo. O universitário é quem estuda em
uma universidade (status principal), mas espera-se que seja branco,
rico e educado (status auxiliares). O traficante de drogas é quem
vende drogas ilícitas (status principal), mas espera-se que seja
negro, pobre e violento (status auxiliares). Por um lado, o status
principal, faz presumir a existência dos seus auxiliares. Por outro,
é mais fácil ser estigmatizado com sucesso quando mais traços
secundários se apresentam.
Além disto, é preciso entender que alguns status tendem a
predominar sobre outros. A cor da pele, mais especificamente a preta,
é um caso. Um branco, quando atinge cargos altos na política é
lembrado por suas ideologias, ou suas práticas. Um negro é lembrado
como o presidente negro. Um jurista branco é chamado de jurista. Um
jurista negro é chamado de jurista negro, ou de moreno escuro10.
Deste modo, características que, em determinadas situações, são
auxiliares, em outras se tornam principais.
A identificação como criminoso não é somente influenciada pela
acusação do delito. Muitas vezes, os traços auxiliares é que são
determinantes11.
A análise conjunta dos filmes “Meu nome não é Johnny”, baseado
na vida de João Guilherme Estrela, “Cidade de Deus”12,
baseado na história de uma favela carioca, dominada pelo traficante
Zé Pequeno e “Tropa de Elite”13
e, principalmente as reações dos espectadores aos seus dramas,
ilustram bem este fato.
João Estrela, Zé Pequeno e muitos dos inúmeros mortos e torturados
pelo Capitão Nascimento, em Tropa de Elite, vendiam drogas. O
primeiro era branco e de família rica. Os demais negros e pobres.
João vendia drogas com a meta de “torrar um milhão de dólares”
e viajava para Europa de primeira classe. Zé Pequeno e os
“aviõezinhos” viviam em barracos miseráveis e usavam o comércio
ilícito como meio de sobrevivência. Enquanto o público aplaudia e
ria com as execuções sumárias dos “vapores” e “soldados”
do morro, comovia-se e chorava com o drama da prisão de João
Estrela. No seu julgamento, o homem branco e de família rica
sensibiliza e consterna a juíza, considerada “mão de ferro”,
ao dizer:
Aí eu abri o jornal, tinha lá
minha foto. Estava escrito lá: Bandido Johnny preso. Meu nome não é
Johnny. Meu nome é João. Eu não sou bandido. Não sou nenhum Pablo
Escobar. (...) Não queria que minha mãe tivesse aqui ouvindo isto.
Eu uso droga desde moleque e nos tempos antes de ser preso, eu estava
cheirando muito. Desculpa, mãe. Eu só queria falar pra senhora o
que eu estou sentindo agora. Todo mundo tem sonhos na vida. Eu também
tenho meus sonhos.14
Certamente, os negros moradores das favelas têm motivos mais fortes
para participar de qualquer das atividades relacionadas ao uso de
cocaína, que “torrar um milhão de dólares”. Seguramente, eles
também possuem mães e sonhos. No entanto, público e os juízes
vêem neles todos os traços auxiliares do status de traficante. É
por isto que a violência em Tropa de Elite e Cidade de Deus não é
dramática. É por esta razão que Johnny tem mais chances de êxito
ao negar o apelido relacionado ao tráfico e dizer que não é
bandido. Ele consegue deixar de ser traficante e volta a ser João
Estrela. Zé Pequeno pode até deixar de ser Dadinho, como era
chamado antes de se tornar traficante, mas dificilmente deixaria de
ser Zé Pequeno.
Quando a rotulação é eficaz, acaba por impelir os resultados que
prevê. Trata-se de uma profecia auto-realizadora. “Ela põe em
movimento vários mecanismos que conspiram para moldar a pessoa
segundo a imagem que os outros possuem dela”15.
Se alguém é identificado como criminoso, espera-se que seja ocioso,
que viva entre criminosos e que volte a praticar delitos. As
oportunidades de empregos lícitos e aceitação em grupos não
estigmatizados são, em conseqüência, duramente dificultadas. Sem
empregos lícitos e companhias “recomendadas”, o rotulado vive
ociosamente entre criminosos e, para sobreviver, volta a delinqüir.
A consolidação da carreira desviante ocorre, segundo o
interacionismo, com o ingresso em um grupo desviante. Por um lado, há
a identificação e solidariedade em relação ao desvio praticado e
ao tratamento recebido dos não desviantes. Facilita-se, então, que
se racionalize e justifique a prática, bem como que se elejam
inimigos comuns, a serem responsabilizados pelo sofrimento do grupo.
Por outro lado, a troca de experiências conduz ao aprendizado de
como realizar o desvio com mais perfeição, potencializando os
resultados favoráveis e diminuindo os riscos.
Assim, o jovem ladrão
encontra-se com ladrões mais velhos, mais experientes, que lhe
explicam como se livrar da mercadoria roubada sem correr o risco de
ser apanhado. Cada grupo desviante tem um grande repertório de
conhecimentos desse tipo, e o novo recruta aprende rapidamente.
Assim, o desviante que ingressa
num grupo desviante organizado e institucionalizado tem mais
probabilidade que nunca de continuar nesse caminho. Ele aprendeu, por
um lado, como evitar problemas; por outro, assimilou uma
fundamentação para continuar.16
7.2. Criação e Imposições de Regras.
Além de investigar o impacto da rotulação, os interacionistas
procuram explicar como e quando as regras são feitas e impostas. Em
primeiro lugar, é preciso existir um valor, um conceito ambíguo,
genérico, compartilhado por determinada parcela da sociedade. Por
exemplo, a saúde. Alguém precisa convencer os demais de que existe
uma situação problemática, que põe em risco aquele valor, como
por exemplo, os acidentes de trânsito.
Deste valor, necessariamente amplo, podem ser extraídas regras
específicas, completamente distintas, para enfrentar as situações
adversas. Da necessidade de proteção à saúde, enfrentando o
problema do trânsito, pode-se inferir uma regra criminalizando o ato
de dirigir após o consumo de álcool, ou outra proibindo a produção
de veículos com capacidade para atingir determinada velocidade. O
conflito entre os incontáveis valores e as diversas regras que podem
ser extraídas deles é resolvido por complexas disputas de poder
entre os grupos variados.
Conformada a regra específica, ela precisa ser imposta. A aplicação
de uma regra, assim como a criação, é um empreendimento17
feito por pessoas e não decorrência natural de uma infração.
Alguém precisa descobrir o desvio e entender que a sua apuração
não será desvantajosa para si ou para a sociedade. Ainda no mesmo
exemplo, existindo uma regra reprimindo a combinação de bebida e
direção, pode parecer ao Estado que em determinado período do ano,
a sua aplicação causará danos à economia, inibindo festas e o
turismo. Diante disto, a tolerância a infrações pode ser
intensificada ou reduzida, temporariamente, ou em determinado local.
Os criadores e os impositores de regras são os tipos de
empreendedores morais18.
Os primeiros são pessoas para quem as regras existentes são
perturbadoramente insatisfatórias, no enfrentamento de determinado
problema. A modificação é essencial para a salvação da
coletividade e das próprias pessoas. A premissa básica é a de que
eles sabem o melhor para os outros, ainda que os outros discordem.
Qualquer semelhança com o discurso da prisão como tratamento não é
mera coincidência.
Quando a cruzada pela nova regra é vencedora, ela é
institucionalizada e surgem os impositores (polícia, promotores,
juízes, diretores de unidades prisionais). Para os impositores, há
dois interesses fundamentais na aplicação da regra. Primeiro,
justificar a existência do seu trabalho e, segundo, manter o
respeito dos outros envolvidos.
Para demonstrar a importância do seu ofício, o impositor precisa
convencer a sociedade de que tem conseguido bons resultados, porém,
por circunstâncias novas, o problema tende a se agravar, a menos que
obtenha mais recursos. O discurso sobre o crime, em qualquer época
da história da humanidade é exatamente igual: clamor por leis mais
duras, mais punições e reforço do policiamento, sob o argumento de
que a sociedade estaria se deteriorando. Não há qualquer diferença
substancial entre a carta de um leitor a um jornal carioca, publicada
há mais de quarenta anos, transcrita abaixo, e o senso comum dos
dias de hoje.
Um fato que vem merecendo cada
vez mais a atenção dos nossos governantes é o combate aos tóxicos,
daí as sucessivas campanhas. Pena que isto só acontece quando
ocorrem suicídios, crimes ou mortes suspeitas. O que me admira é as
autoridades não terem, ainda, partido para medidas mais objetivas
que poderiam reduzir em muito o consumo de drogas, principalmente
entre os jovens de nossa tão deteriorada sociedade, os quais serão,
um dia, dirigentes da nação.
(...)
Claro que, para o sucesso da operação dela teriam que fazer parte o abominável período de incomunicabilidade, após a prisão e o enquadramento dos culpados na Lei de Segurança Nacional, com penas bem rigorosas, já que a proliferação dos tóxicos poderá, amanhã, atentar contra ela19.
Claro que, para o sucesso da operação dela teriam que fazer parte o abominável período de incomunicabilidade, após a prisão e o enquadramento dos culpados na Lei de Segurança Nacional, com penas bem rigorosas, já que a proliferação dos tóxicos poderá, amanhã, atentar contra ela19.
A busca pelo respeito, muitas vezes, condiciona a própria repressão
mais que o próprio delito. O impositor pretende manter a
superioridade dele em relação ao desviante. Qualquer tipo de
contestação ou menosprezo à sua autoridade, aos seus ritos, ou à
própria norma que ele impõe pode ser o fato decisivo para a seleção
do rotulado, ou para a medida da reação contra ele. Desta maneira,
o músico Lobão descreve o seu próprio julgamento, onde não
chorou, ou falou da família, ao contrário de João Estrela.
O Meritíssimo convoca a
primeira testemunha, o Ricardo, que atuou de acordo com o combinado
pela estratégia de defesa: declarou ao juiz o meu suposto
arrependimento. Na hora que ele começou a falar, não agüentei, foi
mais forte que eu: levantei o dedo pedindo a palavra para contestar
aquela afirmação: afirmei que, de forma alguma, não estava
arrependido, muito pelo contrário, e não poderia admitir o Estado
me tutelar. Logo de cara, percebi que o juiz não nutria muita
simpatia pela minha pessoa.
(...)
E o nosso querido juiz levanta a
voz e pergunta: ´O réu está a rir de quê?' ' Nada, Excelência,
estou muito cansado, estava meio sonolento e acabei dormitando; devia
estar sonhando com alguma coisa engraçada. ´ E, sem transição,
nosso emérito magistrado sapeca pro escrivão: ´ Corrige aí: o réu
não tem má personalidade, o réu tem péssima personalidade!´ Não
me contive e retruquei: ´ Puxa, pensava que isso aqui fosse um
julgamento, e não um consultório psicanalítico. ´ E novamente,
sem transição, nosso impávido juiz dispara batendo o martelo: ´ O
réu está condenado a um ano de prisão, sem direito a sursis.´20
A escassez de recursos e a impossibilidade de cobrir todas as
infrações a todas as regras específicas levam os impositores a
estabelecer prioridades entre as regras a fiscalizar. Além disto, há
que se escolher o momento de agir ou de se omitir e as pessoas contra
quem agir ou se omitir. São criados critérios próprios, que, às
vezes, estão aquém, mas às vezes vão além dos estabelecidos.
A polícia elege o que investigar, o promotor o que acusar e o juiz o
que julgar e condenar. Na escolha, entram fatores como a
possibilidade de êxito nas investigações ou acusações. Esta
possibilidade é influenciada pela facilidade na colheita das provas,
pelas chances de as falhas probatórias serem convenientemente
toleradas pelos julgadores e pela possibilidade de reação do alvo.
Entram em cena os estereótipos, caracterizados pela adesão ou não
dos status principais e auxiliares dos criminosos. Também são
moedas do jogo o poderio econômico e político, além do acesso
formal e informal aos julgadores.
Quando fui fazer a sentença, veio à cabeça uma dúvida não aventada pelas partes: se a moto foi subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela foi encontrada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda inexperiente e inseguro, faltou coragem para rechaçar a pretensão do Ministério Público naquele momento, pois temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui me aconselhar sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o amigo e combativo promotor de justiça, que também chamamos de Parquet. Obviamente, como era parte na causa ele reiterou sua tese e procurou rechaçar as teses de crime continuado e de post factum impunível. Destacou que o acusado era reincidente e que também respondia por um furto cujo interrogatório já estava aprazado.
Informalmente, e sem perceber, aquele diálogo com o Parquet terminou sendo mais importante para a formação de um juízo sobre o destino da causa do que a leitura fria das razões das partes.21
Um fato que costuma gerar atrito entre os cruzados morais22
criadores das regras e os impositores é quando aqueles descobrem as
interferências e a seletividade destes. Nesse momento, a inércia da
polícia, da justiça ou do governo é apontada como causa para a
persistência do problema. Então, finalmente, florescem as teses de
que temos ótimas leis, mas elas não são aplicadas.
1
ZÉ, Tom. Profissão de Ladrão.
2
Também chamado de Interacionismo, ou Teoria da
Rotulação Social.
3
Para simplificar, e sem disfarçar a ironia,
etiquetaremos de interacionistas todos os teóricos do Labeling
Approach, interacionismo ou Rotulação Social.
4
RIBEIRO, João Ubaldo.Viva o Povo Brasileiro.
Ed, Objetiva. Rio de Janeiro, 2007. P.37.
5
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.21-22.
6
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.35.
7
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.41
8
AMADO, Jorge. Capitães
da Areia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008. P.141-142.
9
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.42
10
Neste ponto, vale lembrar a declaração de um Deputado brasileiro
sobre o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa:
“O ex-governador de Mato Grosso e deputado federal
Júlio Campos (DEM-MT), em reunião da bancada do partido na Câmara,
referiu-se ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim
Barbosa, como "moreno escuro". Ao criticar a eficácia do
foro privilegiado destinado às autoridades no país e defender a
manutenção de prisão especial para autoridades, o deputado fez
menção ao ministro.
- Todo mundo sabe que essa história de foro privilegiado não dá em nada. O nosso amigo Ronaldo Cunha Lima precisou ter a coragem de renunciar ao cargo para não sair daqui algemado. E depois, meus amigos, você cai [sic] nas mãos daquele moreno escuro lá no Supremo, ai já viu - disse o deputado em reunião da bancada. Questionado sobre o assunto, o deputado disse ter esquecido o nome do ministro e citou-o como moreno escuro, porém sem nenhuma maldade. “
- Todo mundo sabe que essa história de foro privilegiado não dá em nada. O nosso amigo Ronaldo Cunha Lima precisou ter a coragem de renunciar ao cargo para não sair daqui algemado. E depois, meus amigos, você cai [sic] nas mãos daquele moreno escuro lá no Supremo, ai já viu - disse o deputado em reunião da bancada. Questionado sobre o assunto, o deputado disse ter esquecido o nome do ministro e citou-o como moreno escuro, porém sem nenhuma maldade. “
Deputado Júlio Campos chama Ministro do STF de
´moreno escuro´. Disponível em
http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/03/22/deputado-julio-campos-chama-ministro-do-stf-de-moreno-escuro-924066964.asp
. Acesso em 02 de novembro de 2011.
11YOUNG,
Jock. A sociedade excludente-
Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro. Revan: 2002.p.74
“Mas é talvez a seletividade ou “amostragem” aumentada em
relação a clientes prospectivos que se torna mais interessante. No
tocante à suspeita, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e
passou a suspeitar de categorias sociais. Por exemplo, quanto a
parar e revistar: é mais efetivo suspeitar das categorias mais
propensas a cometer infrações (e.g. Negros, irlandeses, homens
jovens da classe operária) do que suspeitar de indivíduos.”
12
CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles.Produção: Andréa
Barata Ribeiro e Maurício Andrade Ramos. Roteiro: Bráulio
Montovani. Intérpretes: Mtheus Nachtergaele, Leandro Firmino da
Hora, Alexandre Rodrigues, Jonathan Haagensen, Phelipe Haagensen,
Douglas Silva, Daniel Zettel e Seu Jorge. 1 DVD ( 130 min) O2 Filmes
e Videofilmes, 2001
13
TROPA DE ELITE-Missão dada é missão cumprida. Direção: José
Padilha.Produção: Marcos Prado e José Padilha. Roteiro: José
Padilha, Rodrigo Pimentel e Bráulio Montovani. Intérpretes: Wagner
Moura, André Ramiro, Caio Junqueira, Milhem Cortaz, Fernanda
Machado, Maria Ribeiro e Fábio Lago. 1 DVD ( 116min) Universal
Studio, 2008
14
MEU NOME NÃO É JOHNNY. Direção: Mauro Lima.
Produção: Mariza Leão. Roteiro: Mariza Leão e Mauro Lima.
Intérpretes: Selton Mello, Cléo Pires, Júlia Lemmertz, Cássia
Kiss. 1 DVD (MIN). Atitude Produções, 2008.
15
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.44
16
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.49
17
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.129
18
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.153
19
Jornal do Brasil, 10 de junho de 1979. Carta do
leitor Sérgio Rocha, do Rio de Janeiro.
20
LOBÃO e TOGNOLLI, Cláudio. 50 anos a mil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2010. p.313-315
21
TOSCANO JÚNIOR, Rosivaldo. Nosso Rol secreto de
arrependimentos. Disponível, em
http://www.rosivaldotoscano.com/2011/01/nosso-rol-secreto-de-arrependimentos.html
. Acesso em 27 de novembro de 2011.
22
BECKER, Howard, Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.153
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