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terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Morte do Violão.


Acabei de receber a notícia. O Luthier Paulo Roberto foi cuidadoso, mas não podia evitar a informação: ele tem pouco tempo de vida. Meu violão Yamaha não tem cura Está muito enpenado e não resistiria a uma intervenção. Não completou nem 20 anos. Na flor da idade! Não pestanejei e comprei até cordas novas. Ele merece uma morte digna.

Passamos por muitas coisas juntos. Foi com ele que fiz os primeiros acordes (após muita insistência, é verdade). Lembro como se fosse hoje. A primeira música que saiu foi "No Woman no Cry". Depois veio "La Bamba", "Pra não dizer que não falei das flores" e Mamonas Assasinas.

Ele acompanhou minha adolescência e as brincadeiras da época. Não eram só os Mamonas Assassinas, tinha versão em reagge, para Ilariê, o pout-pourri de pagodes, que incluía uma versão da música do Pelé (a,b,c, toda criança tem que ler e escrever), o Pout Pourri de músicas do Skank... E havia os efeitos sonoros: a música da chamada a cobrar, o tema do Popeye, até o barulho do relógio dos Power Rangers.

O efeito sonoro mais importante, porém, era o bordão de suspense da novela "O Rei do Gado". O personagem ameaçava " eu vou matar o Ralf!" e lá vinham as notas, que terminavam em um dramático acorde de mi menor.

Certamente, a professora de história do 2º ano, Marli Sales, também não esquecerá o barulho. Ela não gostou nem um pouco, quando do fundo da sala, utilizei o bordão, durante a sua aula. A explicação fluia: "Napoleão, viu-se perdido, na Batalha de Waterloo..." e, de repente, tun-dun-dun-dun- blein! As fortes notas e o triunfal mi menor, sem ensaio ou aviso prévio, ilustraram a gravidade do problema. Tive que correr, para salvar a vida e o instrumento. Ela só liberou, porque achou que a música estava no contexto certo, o que comprovava a minha atenção à matéria.

Aliás, a mesma professora deve lembrar quando eu e o Yamaha acompanhamos o amigo Idalmar, em um pedido musical. Foi uma das minhas poucas composições (em parceria com Idalmar e Tiago Bockie), creio que a única por encomenda. Nela, o colega em dificuldades apelava (também em mi menor): Marliiiii, me passa direto/ Marliiii, eu não quero ir pra recu! Idalmar passou. Mas, só na recuperação. A música espanta os males, mas nem todos.

Amadureci e mudei o repertório. Tentava mais Chico Buarque, Bossas Novas, Raul Seixas, Beatles, Luiz Gonzaga... Foi quando tive raiva da MPB, porque os acordes eram muito complexos. Tom Jobim pensa que minhas mãos são de borracha? E Caetano? Qual é a dele? Tudo diminuto, com nona e baixo em não sei o quê!

Percebi que poderia ser um bom músico, caso superasse algumas dificuldades inerentes: um péssimo ouvido musical, pouca agilidade nas mãos e pouca coordenação motora. Vencendo esses obstáculos, minha carreira artística estava garantida. Como bom brasileiro, fui à luta. Após muita dedicação, castigando o Yamaha e os familiares o tempo todo, finalmente consegui.
Consegui compreender que não tenho nenhum talento. Não adiantava!

Ainda assim, era bom ter o meu violãozinho, por perto. De vez em quando, humildemente, poderia buscar uma cifra na internet e criar a minha versão de alguma bela canção (entenda-se por versão o jeito que eu conseguisse tocar). Isto, claro, desde que ela não fosse complexa, pois aí eu não era capaz de inventar versão nenhuma.

Mesmo sem qualquer qualidade artística, vivi bons momentos e fiz boas amizades, graças ao violão. É verdade que nos últimos anos, o Yamaha estava abandonado. Quando tentei me reaproximar, fui surpreendido por esta triste notícia. Eu perco muito, o mundo não perde nada.

Preciso decidir se ainda tento criar alguma versão de qualquer música, para matar a saudade. Eu gostaria de um sonzinho de despedida, mas não sabia se devia, afinal de contas, como eu disse no início, ele merece uma morte digna. Estou certo, contudo, que uma notícia tão triste merece, mais que Napoleão, um último mi menor.

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