Translate

domingo, 26 de setembro de 2010

Ficha Limpa


Acompanhei boa parte do julgamento da lei da "ficha limpa", pelo STF. Havia uma escancarada pressão na imprensa pela sua aplicação imediata e quem fosse ou for contra ela é facilmente taxado de partidário da corrupção. Os Ministros sabiam disto. Mas, será que o problema é assim tão simples? São os bons contra os maus?

Primeiro, é bom saber o que os ministros julgavam. Na verdade, eram poucas questões: 1) A lei já poderia valer para estas eleições? 2) A lei fere a presunção da inocência?3) A lei poderia prejudicar condutas que não acarretavam sanções, quando praticadas, como a renúncia de um cargo? Vamos lá, eis o que penso disto tudo.



1) Pode valer agora?

Não. A lei não poderia valer para estas eleições, porque o artigo 16 da Constituição fala bem claramente que a lei que alterar o processo eleitoral só se aplicará 01 ano após a sua publicação. Pretende-se evitar a mudança nas regras do jogo, com ele em andamento.

Cinco ministros disseram que o processo eleitoral só começaria em 10 de junho de 2010 , quando passam a ocorrer as convenções partidárias ( a lei foi publicada 05 dias antes). Por esse conceito restrito, o processo eleitoral duraria apenas 04 meses (de junho a outubro).

Por que, então, a Constituição não diria que o prazo para entrar em vigor a lei que alterar o processo eleitoral seria de 04 meses, em vez de 01 ano? A resposta é óbvia: Pela lei maior, o processo começa um ano antes das eleições, na data em que o possível candidato é obrigado a estar filiado a partido político. Sinceramente, a discussão que se deu não foi jurídica, mas somente populista. Era evidente, que não podia valer agora.


2) Fere a presunção de inocência?

Sim. Nesse ponto, havia até margem para discussão, já que a Constituição, ao se referir a presunção de inocência fala em processo penal e não eleitoral. A ficha limpa fez questão de dizer que para não poder ser candidato, bastava a condenação por um órgão colegiado. Não importaria se o processo não tivesse acabado e se pudesse haver uma reforma da decisão, por uma instância superior.

E por que isto não poderia ocorrer?

Metáfora futebolística. Na Copa do Brasil de futebol, há um sistema chamado de mata-mata. Os times são divididos em grupos de 2, que se enfrentam duas vezes (jogo de ida e jogo de volta). Quem for melhor nos dois confrontos, passa a fase seguinte. Na penúltima fase, em 2010, jogaram Santos x Grêmio e Atlético-GO x Vitória. No jogo de ida, o Grêmio venceu o Santos, em Porto Alegre, por 4x3. No dia do jogo de volta, porém, imaginemos que chovesse muito em Santos e não pudesse ter jogo. O que aconteceria?

Pelo raciocínio do Ficha Limpa, diria-se que o Grêmio já ganhou uma, então ele deve passar para a fase seguinte e, depois que o campeonato acabasse, eles se enfrentariam. Mas, aí, a final já teria acontecido e o Santos, mesmo vencendo, não poderia mais ser campeão. Não é injusto? Não é, mais que injusto, absurdo?

Na justiça acontece o mesmo. Se há recurso, o processo ainda não acabou. e pode ser revertido Por que se aplicaria uma sanção a alguém que pode não ter qualquer culpa? E se depois da eleição, fosse decidida a inocência? Visto por outro ângulo, se já se pode antecipar a sanção, a instância superior perde a razão de existir, assim como o jogo de volta da Copa do Brasil.

Se você não gosta do sistema de mata-mata, com jogos de ida e volta, pode tentar mudá-lo e estabelecer os pontos corridos ou acabar com o jogo de volta, mas não presumir que o perdedor da primeira partida, perderia também a segunda. Igualmente, havendo a crença de que os processos são lentos ou de que os Tribunais Superiores são inúteis, deve-se fazer leis para mudar os processos ou para reduzir o número de instâncias e não para punir por antecipação.


3) Pode punir condutas que eram consideradas lícitas, como a renúncia?

No julgamento da semana passada, tratava-se, especificamente, da hipótese do ex-senador Joaquim Roriz que renunciou ao mandato, quando estava perto de ser aberto um processo de cassação. Caso fosse condenado ficaria inelegível por 08 anos. A renúncia era um direito. Porém usar esse direito, por qualquer razão, traria um efeito colateral: serviria para fugir do processo e da possível punição. Ressalte-se que não significa que ele confessou a culpa, como disse um dos Ministros. Só uma visão muito ingênua sobre qualquer julgamento, faria pensar que o inocente não tem nada a temer. O que não faltam são decisões erradas.

Viagem no tempo. Em 16 de maio 2001, quando eu era estudante, participei de uma passeata que pedia a cassação do mandato dos então senadores Antônio Carlos Magalhães (o avô) e José Roberto Arruda (aliado de Roriz), por fraudarem o painel eletrônico. No final, ao lado do amigo Fetal, tive que correr da polícia por uma boa distância, a maioria por frouxidão mesmo, pois não tinha mais ninguém atrás da gente. A PM jogou bombas até dentro das faculdades. Ambos os políticos renunciaram ao mandato, em situação semelhante à de Roriz. No ano seguinte, foram eleitos novamente.

Bom, toda a lei da ficha limpa existe porque o artigo 14§9º da Constituição diz que leis complementares podem criar novas causas de inelegibilidade, para proteger a probidade administrativa e a moralidade. Na redação original, ela falava em proteger a normalidade e legitimidade das eleições. Tem-se aí um grave problema: o que é moral?

Se a conduta é lícita, cabe a cada um definir o que é moral ou não. Por exemplo, se você trabalha, ganha bem e faz uma pós-graduação, pode, licitamente, pagar meia-entrada, nos cinemas. Mas, sabe-se que quando as pessoas que poderiam pagar o ingresso inteiro, pagam a metade, as empresas aumentam o preço para não diminuir o lucro. Assim, sua conduta, apesar de lícita, seria moral? Para mim, não. Para você, talvez, sim. O ponto é que eu não poderia te impor o meu conceito de moralidade. Posso deixar de ser seu amigo, mas não te obrigar a pensar como eu.

Em geral, são criados uns conceitos abertos, que falam em moralidade média, ou do homem médio, para justificar a imposição. Não acaba o problema. Quem é o homem médio? Como se calcula a moralidade média? Em uma eleição, porém, não haveria esse problema. Como todos os cidadãos podem votar, todos os cidadãos julgariam. A maioria diria se aquela conduta lícita é ou não uma mancha relevante, na vida pregressa do candidato.

Obviamente, no caso de ACM, fiquei muito chateado com a sua eleição. Eu considerava que ele tinha praticado um ato imoral. Mas, eu não sou superior aos outros. Eu perdi, paciência. O fato é que, para o povo, aquela conduta não era imoral. Se o Roriz ( ou a esposa dele) vencer a eleição, a razão é a mesma. Estará comprovado que a sua conduta foi tolerada. Julgar moralidade por antecipação, parece bem legalzinho, mas é característica inseparável das ditaduras. É um ótimo meio de evitar que o eleitor, ou seja o povo, faça isto. Impedir que pessoas "imorais" se candidatem é impedir a possibilidade de a maioria negar esta "imoralidade".

Ficar do lado do Ficha Limpa é fácil. Mas, não há o lado do bem, como parece.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! Vá em frente e comente! Somente não serão aceitas mensagens ofensivas. É um espaço de diálogo e não de agressões.