Acompanhei boa parte do julgamento da lei da "ficha limpa", pelo STF. Havia uma escancarada pressão na imprensa pela sua aplicação imediata e quem fosse ou for contra ela é facilmente taxado de partidário da corrupção. Os Ministros sabiam disto. Mas, será que o problema é assim tão simples? São os bons contra os maus?
Primeiro, é bom saber o que os ministros julgavam. Na verdade, eram poucas questões: 1) A lei já poderia valer para estas eleições? 2) A lei fere a presunção da inocência?3) A lei poderia prejudicar condutas que não acarretavam sanções, quando praticadas, como a renúncia de um cargo? Vamos lá, eis o que penso disto tudo.
1) Pode valer agora?
Não. A lei não poderia valer para estas eleições, porque o artigo 16 da Constituição fala bem claramente que a lei que alterar o processo eleitoral só se aplicará 01 ano após a sua publicação. Pretende-se evitar a mudança nas regras do jogo, com ele em andamento.
Cinco ministros disseram que o processo eleitoral só começaria em 10 de junho de 2010 , quando passam a ocorrer as convenções partidárias ( a lei foi publicada 05 dias antes). Por esse conceito restrito, o processo eleitoral duraria apenas 04 meses (de junho a outubro).
Por que, então, a Constituição não diria que o prazo para entrar em vigor a lei que alterar o processo eleitoral seria de 04 meses, em vez de 01 ano? A resposta é óbvia: Pela lei maior, o processo começa um ano antes das eleições, na data em que o possível candidato é obrigado a estar filiado a partido político. Sinceramente, a discussão que se deu não foi jurídica, mas somente populista. Era evidente, que não podia valer agora.
2) Fere a presunção de inocência?
Sim. Nesse ponto, havia até margem para discussão, já que a Constituição, ao se referir a presunção de inocência fala em processo penal e não eleitoral. A ficha limpa fez questão de dizer que para não poder ser candidato, bastava a condenação por um órgão colegiado. Não importaria se o processo não tivesse acabado e se pudesse haver uma reforma da decisão, por uma instância superior.
E por que isto não poderia ocorrer?
Metáfora futebolística. Na Copa do Brasil de futebol, há um sistema chamado de mata-mata. Os times são divididos em grupos de 2, que se enfrentam duas vezes (jogo de ida e jogo de volta). Quem for melhor nos dois confrontos, passa a fase seguinte. Na penúltima fase, em 2010, jogaram Santos x Grêmio e Atlético-GO x Vitória. No jogo de ida, o Grêmio venceu o Santos, em Porto Alegre, por 4x3. No dia do jogo de volta, porém, imaginemos que chovesse muito em Santos e não pudesse ter jogo. O que aconteceria?
Pelo raciocínio do Ficha Limpa, diria-se que o Grêmio já ganhou uma, então ele deve passar para a fase seguinte e, depois que o campeonato acabasse, eles se enfrentariam. Mas, aí, a final já teria acontecido e o Santos, mesmo vencendo, não poderia mais ser campeão. Não é injusto? Não é, mais que injusto, absurdo?
Na justiça acontece o mesmo. Se há recurso, o processo ainda não acabou. e pode ser revertido Por que se aplicaria uma sanção a alguém que pode não ter qualquer culpa? E se depois da eleição, fosse decidida a inocência? Visto por outro ângulo, se já se pode antecipar a sanção, a instância superior perde a razão de existir, assim como o jogo de volta da Copa do Brasil.
Se você não gosta do sistema de mata-mata, com jogos de ida e volta, pode tentar mudá-lo e estabelecer os pontos corridos ou acabar com o jogo de volta, mas não presumir que o perdedor da primeira partida, perderia também a segunda. Igualmente, havendo a crença de que os processos são lentos ou de que os Tribunais Superiores são inúteis, deve-se fazer leis para mudar os processos ou para reduzir o número de instâncias e não para punir por antecipação.
3) Pode punir condutas que eram consideradas lícitas, como a renúncia?
No julgamento da semana passada, tratava-se, especificamente, da hipótese do ex-senador Joaquim Roriz que renunciou ao mandato, quando estava perto de ser aberto um processo de cassação. Caso fosse condenado ficaria inelegível por 08 anos. A renúncia era um direito. Porém usar esse direito, por qualquer razão, traria um efeito colateral: serviria para fugir do processo e da possível punição. Ressalte-se que não significa que ele confessou a culpa, como disse um dos Ministros. Só uma visão muito ingênua sobre qualquer julgamento, faria pensar que o inocente não tem nada a temer. O que não faltam são decisões erradas.
Viagem no tempo. Em 16 de maio 2001, quando eu era estudante, participei de uma passeata que pedia a cassação do mandato dos então senadores Antônio Carlos Magalhães (o avô) e José Roberto Arruda (aliado de Roriz), por fraudarem o painel eletrônico. No final, ao lado do amigo Fetal, tive que correr da polícia por uma boa distância, a maioria por frouxidão mesmo, pois não tinha mais ninguém atrás da gente. A PM jogou bombas até dentro das faculdades. Ambos os políticos renunciaram ao mandato, em situação semelhante à de Roriz. No ano seguinte, foram eleitos novamente.
Bom, toda a lei da ficha limpa existe porque o artigo 14§9º da Constituição diz que leis complementares podem criar novas causas de inelegibilidade, para proteger a probidade administrativa e a moralidade. Na redação original, ela falava em proteger a normalidade e legitimidade das eleições. Tem-se aí um grave problema: o que é moral?
Se a conduta é lícita, cabe a cada um definir o que é moral ou não. Por exemplo, se você trabalha, ganha bem e faz uma pós-graduação, pode, licitamente, pagar meia-entrada, nos cinemas. Mas, sabe-se que quando as pessoas que poderiam pagar o ingresso inteiro, pagam a metade, as empresas aumentam o preço para não diminuir o lucro. Assim, sua conduta, apesar de lícita, seria moral? Para mim, não. Para você, talvez, sim. O ponto é que eu não poderia te impor o meu conceito de moralidade. Posso deixar de ser seu amigo, mas não te obrigar a pensar como eu.
Em geral, são criados uns conceitos abertos, que falam em moralidade média, ou do homem médio, para justificar a imposição. Não acaba o problema. Quem é o homem médio? Como se calcula a moralidade média? Em uma eleição, porém, não haveria esse problema. Como todos os cidadãos podem votar, todos os cidadãos julgariam. A maioria diria se aquela conduta lícita é ou não uma mancha relevante, na vida pregressa do candidato.
Obviamente, no caso de ACM, fiquei muito chateado com a sua eleição. Eu considerava que ele tinha praticado um ato imoral. Mas, eu não sou superior aos outros. Eu perdi, paciência. O fato é que, para o povo, aquela conduta não era imoral. Se o Roriz ( ou a esposa dele) vencer a eleição, a razão é a mesma. Estará comprovado que a sua conduta foi tolerada. Julgar moralidade por antecipação, parece bem legalzinho, mas é característica inseparável das ditaduras. É um ótimo meio de evitar que o eleitor, ou seja o povo, faça isto. Impedir que pessoas "imorais" se candidatem é impedir a possibilidade de a maioria negar esta "imoralidade".
Ficar do lado do Ficha Limpa é fácil. Mas, não há o lado do bem, como parece.
Primeiro, é bom saber o que os ministros julgavam. Na verdade, eram poucas questões: 1) A lei já poderia valer para estas eleições? 2) A lei fere a presunção da inocência?3) A lei poderia prejudicar condutas que não acarretavam sanções, quando praticadas, como a renúncia de um cargo? Vamos lá, eis o que penso disto tudo.
1) Pode valer agora?
Não. A lei não poderia valer para estas eleições, porque o artigo 16 da Constituição fala bem claramente que a lei que alterar o processo eleitoral só se aplicará 01 ano após a sua publicação. Pretende-se evitar a mudança nas regras do jogo, com ele em andamento.
Cinco ministros disseram que o processo eleitoral só começaria em 10 de junho de 2010 , quando passam a ocorrer as convenções partidárias ( a lei foi publicada 05 dias antes). Por esse conceito restrito, o processo eleitoral duraria apenas 04 meses (de junho a outubro).
Por que, então, a Constituição não diria que o prazo para entrar em vigor a lei que alterar o processo eleitoral seria de 04 meses, em vez de 01 ano? A resposta é óbvia: Pela lei maior, o processo começa um ano antes das eleições, na data em que o possível candidato é obrigado a estar filiado a partido político. Sinceramente, a discussão que se deu não foi jurídica, mas somente populista. Era evidente, que não podia valer agora.
2) Fere a presunção de inocência?
Sim. Nesse ponto, havia até margem para discussão, já que a Constituição, ao se referir a presunção de inocência fala em processo penal e não eleitoral. A ficha limpa fez questão de dizer que para não poder ser candidato, bastava a condenação por um órgão colegiado. Não importaria se o processo não tivesse acabado e se pudesse haver uma reforma da decisão, por uma instância superior.
E por que isto não poderia ocorrer?
Metáfora futebolística. Na Copa do Brasil de futebol, há um sistema chamado de mata-mata. Os times são divididos em grupos de 2, que se enfrentam duas vezes (jogo de ida e jogo de volta). Quem for melhor nos dois confrontos, passa a fase seguinte. Na penúltima fase, em 2010, jogaram Santos x Grêmio e Atlético-GO x Vitória. No jogo de ida, o Grêmio venceu o Santos, em Porto Alegre, por 4x3. No dia do jogo de volta, porém, imaginemos que chovesse muito em Santos e não pudesse ter jogo. O que aconteceria?
Pelo raciocínio do Ficha Limpa, diria-se que o Grêmio já ganhou uma, então ele deve passar para a fase seguinte e, depois que o campeonato acabasse, eles se enfrentariam. Mas, aí, a final já teria acontecido e o Santos, mesmo vencendo, não poderia mais ser campeão. Não é injusto? Não é, mais que injusto, absurdo?
Na justiça acontece o mesmo. Se há recurso, o processo ainda não acabou. e pode ser revertido Por que se aplicaria uma sanção a alguém que pode não ter qualquer culpa? E se depois da eleição, fosse decidida a inocência? Visto por outro ângulo, se já se pode antecipar a sanção, a instância superior perde a razão de existir, assim como o jogo de volta da Copa do Brasil.
Se você não gosta do sistema de mata-mata, com jogos de ida e volta, pode tentar mudá-lo e estabelecer os pontos corridos ou acabar com o jogo de volta, mas não presumir que o perdedor da primeira partida, perderia também a segunda. Igualmente, havendo a crença de que os processos são lentos ou de que os Tribunais Superiores são inúteis, deve-se fazer leis para mudar os processos ou para reduzir o número de instâncias e não para punir por antecipação.
3) Pode punir condutas que eram consideradas lícitas, como a renúncia?
No julgamento da semana passada, tratava-se, especificamente, da hipótese do ex-senador Joaquim Roriz que renunciou ao mandato, quando estava perto de ser aberto um processo de cassação. Caso fosse condenado ficaria inelegível por 08 anos. A renúncia era um direito. Porém usar esse direito, por qualquer razão, traria um efeito colateral: serviria para fugir do processo e da possível punição. Ressalte-se que não significa que ele confessou a culpa, como disse um dos Ministros. Só uma visão muito ingênua sobre qualquer julgamento, faria pensar que o inocente não tem nada a temer. O que não faltam são decisões erradas.
Viagem no tempo. Em 16 de maio 2001, quando eu era estudante, participei de uma passeata que pedia a cassação do mandato dos então senadores Antônio Carlos Magalhães (o avô) e José Roberto Arruda (aliado de Roriz), por fraudarem o painel eletrônico. No final, ao lado do amigo Fetal, tive que correr da polícia por uma boa distância, a maioria por frouxidão mesmo, pois não tinha mais ninguém atrás da gente. A PM jogou bombas até dentro das faculdades. Ambos os políticos renunciaram ao mandato, em situação semelhante à de Roriz. No ano seguinte, foram eleitos novamente.
Bom, toda a lei da ficha limpa existe porque o artigo 14§9º da Constituição diz que leis complementares podem criar novas causas de inelegibilidade, para proteger a probidade administrativa e a moralidade. Na redação original, ela falava em proteger a normalidade e legitimidade das eleições. Tem-se aí um grave problema: o que é moral?
Se a conduta é lícita, cabe a cada um definir o que é moral ou não. Por exemplo, se você trabalha, ganha bem e faz uma pós-graduação, pode, licitamente, pagar meia-entrada, nos cinemas. Mas, sabe-se que quando as pessoas que poderiam pagar o ingresso inteiro, pagam a metade, as empresas aumentam o preço para não diminuir o lucro. Assim, sua conduta, apesar de lícita, seria moral? Para mim, não. Para você, talvez, sim. O ponto é que eu não poderia te impor o meu conceito de moralidade. Posso deixar de ser seu amigo, mas não te obrigar a pensar como eu.
Em geral, são criados uns conceitos abertos, que falam em moralidade média, ou do homem médio, para justificar a imposição. Não acaba o problema. Quem é o homem médio? Como se calcula a moralidade média? Em uma eleição, porém, não haveria esse problema. Como todos os cidadãos podem votar, todos os cidadãos julgariam. A maioria diria se aquela conduta lícita é ou não uma mancha relevante, na vida pregressa do candidato.
Obviamente, no caso de ACM, fiquei muito chateado com a sua eleição. Eu considerava que ele tinha praticado um ato imoral. Mas, eu não sou superior aos outros. Eu perdi, paciência. O fato é que, para o povo, aquela conduta não era imoral. Se o Roriz ( ou a esposa dele) vencer a eleição, a razão é a mesma. Estará comprovado que a sua conduta foi tolerada. Julgar moralidade por antecipação, parece bem legalzinho, mas é característica inseparável das ditaduras. É um ótimo meio de evitar que o eleitor, ou seja o povo, faça isto. Impedir que pessoas "imorais" se candidatem é impedir a possibilidade de a maioria negar esta "imoralidade".
Ficar do lado do Ficha Limpa é fácil. Mas, não há o lado do bem, como parece.
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