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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Passeio Noturno (Por Gabriel Divan)

Antes de mais nada, relato que sou uma pessoa assustada. Tenho medo de andar na rua, à noite, em Salvador. Fico olhando para os lados, provavelmente como você faz. Porém, me questiono sempre se esse medo é racional.

Recentemente, policiais militares baianos entraram em greve. Logo, surgiram boatos e mais boatos de que o mundo tinha virado um caos. Como resumiu um amigo meu, todo furto virou arrastão e todo roubo virou saque. Na cidade de Jequié, após 2 dias, nenhuma alteração de rotina. No terceiro, após as 12:00hs, todas as lojas fecharam. No dia seguinte, fui comprar um dominó e perguntei na loja qual a razão de fecharem as portas.

"Olhe, eu não sei porque foi, mas todo mundo começou a fechar, aí a gente não ia ficar sozinho, né?"

De posse dessa resposta, vale refletir sobre o texto de Gabriel Divan, genial gremista, andarilho, jurista e ciclista, cujo original está no seu blog (conheça  aqui)


Aproveitei a fraca lâmpada de um dos poucos quiosques desertos  iluminados do meu trajeto para mostrar a vocês que além dela eu enxergava aquilo ali mesmo que vocês estão vendo: nada. Absolutamente nada. Solitária companhia de meus pensamentos. 
Em meados do ano passado, decidi realizar um vídeo ilustrativo (juntamente com um texto) para mostrar para todos aqueles que me tachavam de ‘louco‘ por realizar um certo trajeto noturno à pé. O trajeto em questão foi e segue sendo minha rotina semanal: é o caminho entre meu apartamento de Passo Fundo (onde leciono) e a Rodoviária local, onde semanalmente (geralmente às sextas-feiras) pego o ônibus das duas da madrugada para Porto Alegre, onde ‘moro’ (morar – verbo/conceito indefinido na minha vida atual, mas vá lá).
Para mostrar não apenas que não havia todo esse alardeado ‘perigo‘ no trajeto (alarme desesperado que escuto desde que comecei a percorrer a rota – os últimos 4 anos) e, mais, para filosofar sobre o real (não) uso das cidades pelos sujeitos que nelas habitam, encorajando (ou tentando) pessoas a viver, sentir, cheirar e ‘tocar’ as ruas onde vivem compartilhei com todos minha caminhadinha tradicional na calada da noite – eis o texto e a filmagem, para quem quiser ver ou recordar:clique aqui.
Resolvi repetir a dose, com os mesmos propósitos, focalizando um problema semelhante que visualizo na orla gaúcha: tal e qual Porto Alegre – ao contrário de, creio, todas as cidades do planeta banhadas por quantidade igual de vias fluviais, ascidades praianas do Rio Grande do Sul, de um modo incompreensível, voltam as costas para a água no caso, o Oceano Atlântico. Bares, boates, comércio e infraestrutura esportiva estão ausentes da praia e arredores e se posicionam tradicionalmente em cantos extremados cada vez mais próximos das estradas de acesso.

A Plataforma de Atlântida vista do trajeto. Ou não-vista. Enfim.
E mais: proliferam-se condomínios fechados por toda faixa litorânea sulista, que simulam uma cidade de sonho suburbano de sitcom com a privatização total de elementos como a limpeza e a ‘segurança‘. Longe de querer ‘culpar‘ os proprietários de casas nesses condomínios fechados pelos males do mundo, gostaria apenas de ressaltar que com as cidades praianas abandonadas ao deus-dará, muito em virtude da ausência de pressão por melhorias de quem agora vive num little paraíso estadunidense em compota, a coisa tende apenas a piorar.
Decidi alterar a rota e o horário das minhas caminhadas diárias quando estou na praia para o período noturno (depois das 21:45) e me concentrei, por amostragem, em um dos trechos de maior população no período do verão: o eixo entre Atlântida e Capão da Canoa.

Levei minha lanterninha de dínamo de estimação para auxiliar. Búú.
Por alguns dias fiz o trajeto à pé, descalço, em uma média de 1 hora e alguns minutos entre ida e volta.
O que pude notar é que em total oposição à lógica e a algumas experiências positivas em balneários do resto do país (e mesmo de capitais como o Rio de Janeiro ou em cidades praianas do Nordeste) há um círculo vicioso em que estão envolvidos o Poder Público, o povo e o imaginário (em parte fantasioso) desse último no que diz respeito à violência-segurança-condições gerais para o aproveitamento noturno de lugares (praias, inclusive) pelas pessoas.
Primeiramente, não quero passar perto do equívoco simplista de propor que o mero ‘uso‘ dos espaços públicos pela população faria desaparecerem num passe de mágica problemas como a eventual criminalidade no local e/ou a sujeira. Mas é fato que o completo dar de ombros dos Governos quanto a certas áreas das cidades muito é (retro)alimentado pela própria falta de vontade das pessoas em ocuparem aqueles espaços. Um doce para quem adivinhar o que passa a ocorrer com o logradouro a partir disso…
Assim como há locais em que as pessoas vão apenas pelo fato de que outras pessoas vão (parques e bares de modas sazonais, por exemplo), existem os lugares onde ninguém vai…porque ninguém vai.
Certamente a primeira reação de muita gente quando soube que eu passei dias caminhando sozinho na noite escura na beira da praia foi questionar o quanto eu não sou corajoso/burro e o verdadeiro “milagre” de eu não ter sido assaltado/estuprado/morto/estripado/enterrado-vivo e congêneres.

Pelas tantas, cruzou por mim - por esquisitíssimas três vezes - uma Kombi sinistra. Decidi fotografá-la para fins de registro estilo Bruxa de Blair caso meu celular fosse encontrado dias depois enterrado na areia sem impressões digitais além das minhas.
Eu responderia a esses com as fotos que ilustram esse post.
Uma solidão melancólia e pesada, triste e opaca, um breu impenetrável. Isso foi tudo que eu vi. Nem jovens em festa, nem tentativas de violência sexual, nempessoas jogando vôlei próximas a bares de praia com música, nem mascaradossaindo da penumbra.
Simplesmente nada.
Nas vielas beira-mar, as casas convenientemente fechadas, lacradas, blindadas. Os quiosques todos abandonados e desoladamente cadeados. As casinhas de salva-vidas (vejam só) todas vazias. E o silêncio. De bonito, embora uma beleza frágil e lacrimosa, o barulho quase invisível das ondas quase invisíveis em meio à escuridão.
Acredito que políticas públicas que estimulem, valorizem e ajudem a colocar no topo a idéia de uso (literalmente, uso) de alguns espaços públicos tidos por ‘críticos‘ seria um bom começo de um outro projeto muito maior, que através da prioridade a uma espécie de ‘auto-estima’ das cidades enquanto cidades, começaria a enfim virar o jogo contra tanta podridão (lato senso) que vemos cotidianamente.
Não estou creditando a mim e a todos nós uma obrigação irrestrita de mea-culpa por problemas dos quais, ao contrário, somos em grande parte, vítimas.
Mas ‘se sentir preso’ e jamais se desarmar de grades (reais e metafóricas) em meio ao seu contato com o ambiente que o circunda (e consequentemente, com os outros) não ajuda em nada. Nada mesmo. E se a gente passasse a resmungar menos da violência que nos ‘impede’ de fazer certas coisas e simplesmente fizesse para ver que alguns ‘impedimentos’ existem (quando existem) em um grau muito menor do que aquele do bicho papão que nos vem pintado.

O antigo e tristonho Farol do Capão no caminho de volta.
Sonho com o dia em que, em uma praia iluminada pelo luar e tranqüila, pessoas vão poder caminhar, fazer rodinha de violão, tomar um drink e namorar em paz. Isso tem mais a ver com o ato simples de você começar a parar de ter medo de andar na rua do que se pode pensar à primeira vista.
Vá para a rua. Nem sempre dói.
PS: para não dizer que não senti medo em nenhum momento, em um dos dias pela altura do Posto de n. 80 eu escutei uma melodia um tanto tenebrosa assoviada misteriosamente por ninguém. Olhei em 360 graus, para todas as direções, para o céu e para o mar e não enxerguei viv’alma. Confesso que foi um quê de tensão. Por favor se imaginem no meu lugar antes de rir. Mistério…
PS 2: leitura recomendada – “Confiança e Medo na cidade” – Zygmunt Bauman



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