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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

CNJ e o Pinheirinho ( Jean Davi e Eliana Calmon)


Durante a faculdade, em uma aula sobre contrato de locação, a turma, formada majoritariamente por pessoas brancas, de classe média, com vinte e poucos anos, como eu, estava visivelmente insatisfeita. Cada vez que o professor falava sobre alguma norma que dificultasse o despejo do locatário inadimplente, o volume das reclamações aumentava. Aparentemente, apenas uma pessoa não estava de acordo com as críticas: Jean Davi, negro, com mais de 35 anos, funcionário público, casado e que criava, salvo engano, 3 enteados. Em dado momento, surpreso com as reações da turma, ele deixou escapar o seu pensamento alienígena: " Parece que nunca alguém aqui alugou casa! Todo mundo só vê as coisas pela ótica do proprietário!"

Mas, são tempos de CNJ e de Pinheirinho. Eliana Calmon se tornou heroína nacional, por fazer uma grande campanha contra os "bandidos de toga". A sociedade aplaude e pede punições aos juízes corruptos, cheios de regalias, que parecem estar em todas as esquinas, ou em todos os cartórios. As manifestações de apoio à corregedora estão em todo o lugar. Não importa se o que ela faz é legal ou não, o que importa é punir rigorosamente os culpados, afinal, quem não deve não teme. Muitos, provavelmente a maioria, dos ativistas dos Direitos Humanos estão com ela (o que, aliás, demandava um texto exclusivo, sobre as repercussões trágicas desta lógica sobre as minorias ).

Os juízes, por sua vez, reclamam que estão sendo perseguidos e que não se respeita a sua presunção de inocência e as garantias que todos os cidadãos possuem, inclusive eles. Dizem que todas as suas prerrogativas são absolutamente necessárias, pela natureza do seu cargo, que impõe inúmeras restrições que o cidadão comum não possui. Falam que têm uma carga de trabalho desumana e que trocariam tudo, pelo respeito à carga horária de 08 horas diárias, com direito a hora extra, que todo mundo tem. Concluem que ninguém mais quer ser juiz e todo mundo prefere exercer outros outros cargos. Pensam até que ganham pouco.

É claro que existem juízes corruptos, assim como existem corruptos em todas as categorias, inclusive a dos escritores e leitores de blog. É óbvio também que os juízes não ganham pouco ( porém não ganham mais do que merecem), não tem um trabalho mais pesado do que a maioria e que não falta gente querendo ser magistrado. Aliás, basta acompanhar a movimentação de pessoas nas carreiras jurídicas, para perceber que  muita gente deixa de ser advogado da união, defensor, promotor, procurador de qualquer coisa para ser juiz, mas é raríssimo  acontecer o contrário. Todavia, a verdade é que não é a corrupção e nem são os 60 dias de férias (que não só os juízes mas, defensores, como eu, e promotores têm) o problema fundamental, do judiciário.

Podemos ter uma ideia da mazela real, quando um juiz vai a uma rádio, para falar sobre as prisões provisórias e afirma que sabe que as teses defensivas são irrefutáveis tecnicamente. Apesar disto, ele prefere não utilizar os critérios legais e sim os dele, particulares, que "são, aliás, muito mais justos". Os mesmos magistrados que se revoltam com o CNJ violando as garantias processuais deles, não se importam de violar as garantias processuais dos seus jurisdicionados. Para punir os pobres, tudo é válido, pois precisamos resguardar a segurança pública. O que importa é punir os culpados e quem não deve não teme (lembrou dos apoiadores de Calmon?).

O problema do judiciário pode ser visto no Pinherinho. No conflito entre o direito de propriedade de uma massa falida e  milhares de pessoas, que ocuparam um terreno, há 08 anos, decide-se pela expulsão de toda aquela população, incluindo mulheres, idosos e crianças, com milhares de policiais, bombas e balas de borrachas, de surpresa, às 06:00hs de um domingo. E, não vamos esquecer, sem qualquer preocupação sobre o destino daquelas pessoas.  Aliás, a julgadora que determinou a desocupação disse que se surpreendeu positivamente com a atuação da polícia. Em outras palavras, se você achou que foi triste e bárbaro, saiba que quando decidiu, ela não só esperava aquilo, como esperava algo muito pior.

Quando começaram os protestos, todos os juízes que eu vi (falo apenas dos que eu vi) se manifestarerm sobre o caso, exceto os filiados à AJD (Associação dos Juízes pela Democracia), posicionaram-se a favor da ação. Atacaram quem se manifestava em sentido contrário, classificando-os de politiqueiros, filiados ao PT (como se fosse errado se filiar a algum partido), comunistas (voltando à década de 1950), "democratas" (sem comentários), sociólogos (porque só sociólogo se preocupa com o social) e poetas (bem, aqui o alvo era um só, o homem que mostrou que Belchior estava certo e as palavras são navalhas, leia aqui.). Já os ocupantes, eram invasores, folgados, criminosos, arruaceiros, traficantes. Transcrevo os adjetivos ou apelidos, porque a escolha das palavras diz muito sobre a mentalidade.

O problema do judiciário é aquele percebido por Jean. "Todo mundo só vê as coisas pela ótica do proprietário!" Assim, os pobres vão sendo punidos, através dos processos penais e dos processos civis, porque a propriedade, de fato um direito, torna-se um direito absoluto e urgente. Vale mais do que a moradia, a dignidade da pessoa humana e a vida de quem não a tem. Decisões são prolatadas, pela violência, argumentando que o particular proprietário não pode pagar pelo descaso do poder público. Mas, os particulares não proprietários podem e devem arcar com todo o descaso, diariamente e eternamente. Calados, sem ter onde dormir e comportados, sem se drogar.

O CNJ fala em resolver o problema carcerário com mutirões que só enfrentam questões infra-constitucionais e todos aplaudem. Falam em punições rigorosas para os magistrados, como soluções e todos aplaudem mais ainda. Enquanto isto, o judiciário e o CNJ continua utilizando suas togas, para se diferenciar do cidadão comum. Os juízes, inclusive do CNJ, continuam achando que não podem frequentar qualquer lugar, para não serem confundidos com o povo e, assim, desmoralizados. Os fóruns e o CNJ continuam exigindo o uso de calça, sapato e, às vezes, até paletós, para deixar bem claro que ali é lugar de gente arrumada. A linguagem continua sendo inacessível. E o mais importante, os tribunais continuam analisando todos os conflitos pela ótica elitista. 

Sentenças criminais, aplicam penas mais graves porque, no furto, o réu visava o "lucro fácil". Prisões são decretadas porque "o réu não comprovou ter residência fixa". Sentenças cíveis parecem acreditar que alguém opta por morar em uma invasão, buscando o mesmo "lucro fácil" e não porque não conseguem outra "residência fixa". Assim, todos acreditam que são doutores, contribuindo para o nosso belo quadro social. 

Os juízes tendem a estar próximos da elite e longe do povo. Isto o CNJ nem mesmo enxerga como algo a combater. E ainda tem quem acredite que o STF decidir favoravelmente ao poder investigativo originário do CNJ vai melhorar muito a vida da população. Ainda tem quem pense que cobrar produtividade e não qualidade, além de respeito às sumulas e a jurisprudência dos tribunais, em vez de reflexões profundas e complexas, para problemas complexos vai favorecer o povo.  Espero que um dia ainda enfrentemos as questões verdadeiras. Ah... como eu gostaria de ver Jean Davi comandando esse processo...   

Um comentário:

  1. "Os juízes tendem a estar próximos da elite e longe do povo" e essa ideologia perpassa as sentenças e decisões, como no (des)caso Pinheiriho; propaga mitos como o de que o processo penal é instrumento de segurança pública/pacificação social (Rubens Casara - blog Não Passarão); inspira atitudes e comportamentos (vide documentário "Justiça", de Maria Augusta Ramos). A resistência virulenta da maioria dos membros do TJSP quando da realização do mutirão carcerário, proposto pelo CNJ, no Estado, só pode ser explicada em termos ideológicos; não tem outro jeito!

    Outra coisa, Rafito. Eu - que "apóio Eliana Calmon" - não acho que o fato de o STF decidir em favor da competência concorrente da Corregedoria Nacional de Justiça seja a solução de todos os problemas. Aliás, mal afeta as questões colocadas acima. Mas já é um começo.

    Depois, espero a nova versão da LOMAN. Espero também a mudança no processo eleitoral dos tribunais. Espero transparência e democratização.

    Só que o Judiciário não está dissociado dos outros Poderes e, muito menos, da sociedade. E a nossa sociedade é individualista, elitista, consumista, preconceituosa, enfim, deixa muito pouco espaço p/ Jean Davi. Por isso, as mudanças são tão demoradas; históricas mesmo. "Quem viver verá, que não foi em vão..."

    Gde abraço.:)

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