Todo mundo conhece a sensação. A bexiga parece querer derramar e esquenta. O corpo sente calafrios. É fácil resolver, basta caminhar alguns passos, abrir uma ou duas portas e pronto. O som e o alívio lembram a liberdade. É uma das coisas mais simples e prazerosas da vida. Não há nada envolvido, além da natureza. Não precisamos pensar, filosofar, nem nada. Somente agir.
Após algumas pizzas e cervejas com os amigos, a bexiga alertava. Levantou-se. Em 07 passos, viu que precisava decifar um enigma. A esfinge imaginária perguntava: a porta com a pessoa de cartola ou a porta com a pessoa de vestido? Como usava um vestido, sentia-se uma pessoa de vestido e queria estar entre as pessoas de vestido, fez sua escolha.
Entrou, abriu mais uma porta, onde estava o vaso, e trancou-se lá dentro, para resguardar a privacidade. Ninguém podia ver o que se passava na sua intimidade ou no seu íntimo. Aliás, nada demais se passava, a não ser aquela deliciosa sensação de alívio, que acompanha o som dos líquidos se encontrando. Dada a descarga, tudo estava limpo. Dirigiu-se à pia exclusiva das pessoas de vestido. Lavou caprichosamente as mãos, com cuidado para não perder os aneis. Verificou a maquiagem, retocou o batom e voltou à mesa.
Ainda tinha fome, mas não conseguia se decidir. Naquele restaurante, as pizzas médias podiam ter dois sabores. As grandes, podiam ter até três. Assim, o alimento podia ser ao mesmo tempo frango com catupiry e portuguesa, toscana, camarão e palmito, à moda da casa, especial e presunto. A riqueza de opções permitia que cada um da mesa aproveitasse melhor aquilo que mais tinha vontade, sem obrigar ninguém a devorar o que não gosta, só porque a maioria prefere. Escolheu uma fatia mista e apontava os talheres para ela, quando o gerente, educadamente, interrompeu a desgustação.
- Senhor, houve uma reclamação da sua conduta.
- Minha conduta, mas o eu que fiz?
- O senhor usou o banheiro feminino.
- E que mal tem isto?
- Uma freguesa se sentiu ofendida.
- Por que eu usei o banheiro?
- Sim. A filha dela estava lá.
- Mas, a filha dela não viu nada, senhor. Garanto que tranquei a porta.
- Ainda assim, viu um homem saindo do banheiro feminino.
- Novamente, que mal há nisto?
- Senhor, somente peço que da próxima vez, use o banheiro masculino.
- E o que os homens acharão disto?
- Perdão?
- O que eles pensarão ao me ver de vestido, batom, cabelos longos, depilada, em pé no mictório ao lado deles?
- Não sei senhora, mas terão que aceitar, afinal de contas, a senhora é homem.
- Obrigado.
- Por que?
- Pela primeira vez, me chamou de senhora. Parece óbvio que prefiro assim.
- Eu é que agradeço a compreensão e estou certo de que não voltará a usar o banheiro errado.
- Um minuto!
- Pois não, senhor?
- Foi bom enquanto durou, mas não importa. E eu?
- Perdão?
- E eu? O que eu sentiria em um banheiro cheio de homens visivelmente constrangidos, afastando-se, cochichando, talvez falando alto, talvez me xingando, talvez me batendo?
-Oi?
- Além disto, quem falou que sou homem?
- Com todo respeito, mas...
- O simples fato de eu ter um pênis define o que sou? Não há nada mais importante que isto?
- Senhor, não peço nada demais... falo apenas do banheiro. Não precisa tratar como luta política.
- Sim. Fala sobre o meu ato de defecar ou urinar. Realmente, não quero tratar como luta política. Só quero ter o direito de fazer xixi, onde me sentir mais confortável. Não sou eu quem está impondo a política. É você!
- Eu?
- Claro! Da minha parte, levantei, fiz xixi e voltei. Não fiz nada para chamar a atenção de ninguém. Até para isto, tenho que me enquadrar em um padrão estereotipado?
- Senhor, com todo respeito, mas só estamos tendo esta coversa, em razão do reconhecimento ao seu trabalho de várias décadas. Se fosse outra pessoa...
- Eu seria expulsa à tapas e pontapés.
- Não foi isto...
- Está bem, está bem. Vamos colocar as coisas em outros termos. Onde eu me sentiria confortável, uma mulher acredita que a minha urina destruiria a moral e a educação do filho dela. Onde você e ela gostariam que eu me sentisse confortável, eu me sentiria mal, além de correr risco de ser agredido. Você vê a diferença? De um lado, uma pessoa que quer apenas exercer a própria liberdade de orientação sexual, de escolha das roupas e de auto-identidade, preservando a própria dignidade, a própria integridade física e sem interferir em nada na vida dos outros. Do outro, um falso moralismo irracional. Eu quero apenas ser eu, não quero nada dela. Ela não se conforma em ser ela, quer também me impedir de ser quem eu quero, ou, pelo menos, que eu seja quem eu quero na frente dela. De que lado você vai ficar?
- Senhor, só tem uma solução.
- Eu sei. É tão lógico, não é?
- É melhor o senhor usar o banheiro da sua residência, senhor.
- Por que não nasci pizza?
Que legal, Rafson! A gente ainda tem que caminhar tanto. Mas é como você já lembrou: navegar é preciso. E a música fez toda a diferença...
ResponderExcluirobrigada pela lembrança. beijos!
Lia.