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sábado, 29 de janeiro de 2011

O Tablado

“O céu é azul.
O mar é azul.
O tablado é azul.
A calça jeans é azul.

Só não é azul o azulejo, que é branco
e o quadro negro, que é verde.”

(Carlos Eduardo Medici, estudante do 1º ano do 2º Grau, em 1995)

No dia 24 de janeiro, o site Conjur publicou matéria sobre um surpreendente imbróglio, que acontece em São Paulo. O título da reportagem é “Juiz pede a suspeição de integrante do TRF-3” e, aliás, nem chega perto do cerne da questão. Se eu fosse o jornalista chamaria de “A Guerra do Tablado”.

Resumindo, foi o seguinte. Em algumas salas judiciais, o representante do Ministério Público e o Juiz ficam em posição de destaque, acima de todos os outros. A Defensoria Pública da União pediu para ficar no mesmo plano que eles. Um juiz, na sua vara, decidiu retirar o tablado e abolir a proximidade maior com quem quer que seja. Insatisfeitos, 16 Procuradores da República foram reclamar no Tribunal Regional Federal., através de mandado de segurança. Uma desembargadora, provisoriamente, deu -lhes razão e mandou reorganizar a sala, como antigamente.

  1. DECISÃO SÁBIA

Pela lei complementar 80/94, o Defensor deve estar no mesmo plano do representante que o Ministério Público. Este, por sua vez, também deve estar no mesmo plano do juiz. Diante da provocação da Defensoria, o Juiz tinha as seguintes opções:

a) Descumprir a lei e manter tudo como estava;
b) Descumprir a lei, mantendo o tablado e mandando os Procuradores descerem;
c) Manter o tablado, mas achar um cantinho para os Defensores;
d) Explodir o tablado e deixar todos no mesmo plano.

Boa parte dos defensores gostariam que ele escolhesse a terceira hipótese. Mas, o magistrado preferiu a última. Acabou com a cobertura e o porão. Foi sábio. Colocar o Defensor no alto manteria uma casta superior às partes e também aos advogados. A diferença seria apenas o ingresso de um novo sócio do clubinho. A decisão foi a mais democrática. Melhor ainda só se a mesa de audiências fosse redonda.

  1. POBRE JUIZ

Os procuradores, segundo a matéria, sentiram-se afrontados com a nova disposição, pois violaria um antigo costume. “Insatisfeitos com a iniciativa, um grupo de procuradores da República ingressou com Mandado de Segurança para ter restabelecido seu lugar no andar de cima. De acordo com o pedido, a cadeira à direita do juiz constitui uma tradição secular do funcionamento da Justiça e indica a singularidade das funções do Ministério Público.”

É estranho ver alguém se incomodar com um rito, aparentemente, tão sem sentido e importância. Lembra crianças brigando pelo banco da frente do carro, ou pelo lugar na mesa do jantar. Um amigo, Juiz, citando um colega, resumiu o problema: “doutor, se quiser, pode sentar até na minha cadeira, desde que não seja no meu colo”.  É mais maduro mesmo.

Isto sugere, entretanto, o quanto é difícil julgar. Por causa da tradição secular tão significativa socialmente, quanto o direito de Romário sentar na janela do avião, o pobre juiz vira notícia e são mobilizados16 Procuradores. Imaginem o que acontece quando ele tenta enfrentar a tradição milenar de punir os pobres com todo o rigor, mesmo contrariando as leis ou a tradição também milenar de seguir cegamente a jurisprudência?

Mas, são ossos do ofício. Se quer ser Juiz, precisa de coragem para decidir. Parabéns aos que têm.

  1. IMPARCIALIDADE

.Até mais ou menos o século XVIII, os processos penais eram inquisitórios. A mesma pessoa acusava e julgava. Aí, percebeu-se que quem acusa jamais terá a distância necessária, para julgar com imparcialidade. Assim, o réu sempre saía perdendo. Nasceu o sistema acusatório, em que, para haver justiça, uma pessoa acusa, outra defende e um terceiro, eqüidistante, julga.

Uma declaração atribuída à Desembargadora, contudo, lança uma questão. “No Mandado de Segurança, a desembargadora Cecília Marcondes destacou que ´o Ministério Público tem como incumbência promover a defesa da ordem jurídica, não podendo ser considerado parte no strictu sensu porque não busca incondicionalmente, na Ação Penal, a condenação do réu, ao contrário, atuando na defesa da lei, age livremente na busca da verdade real, verdade esta também perseguida pelo Estado personificado na figura do juiz´".  

Vamos tentar destrinchar o raciocínio que, para ela, explica a posição privilegiada do Ministério Público. Este não buscaria a condenação do acusado, mas, assim como o Juiz, a defesa da lei. Eles teriam que estar mais próximos, pelo singelo motivo de que seriam mais próximos.

Sendo assim, eu me pergunto, por que os promotores são moralmente e psicologicamente superiores aos juízes? Historicamente se constatou que o Juiz era incapaz de acusar e ser imparcial. O Ministério Público é capaz? Indo além, por que, então, precisaríamos dos dois, já que ambos buscam o mesmo? Não bastaria um juiz inquisidor, cuja decisão pudesse ser revisada por desembargadores inquisidores?

Outra coisa a se refletir é onde vai parar a presunção da inocência, pedra basilar do processo penal, em qualquer regime democrático. A desembargadora acredita que o Ministério Público quer o mesmo que ela e está mais próximo dela que o Defensor ou o advogado. O processo penal começa com a denúncia, acusação, feita pelo MP (próximo do julgador). O Defensor ou advogado vão se contrapor ao que  ele disse. É difícil entender que, pelo pensamento da magistrada, a princípio, a denúncia esta correta? A presunção, então, é a culpa. O réu sempre sai perdendo. É assim que, inconscientemente ou não, agem todos os juízes que confiam mais no Ministério Público.

No fundo, parece que pouco importa o tablado, mas sim a idéia de identidade. Não é uma disputa por uma tradição, ou por um lugar na mesa, mas por um lugar no coração. Meu conselho para o pobre juiz: enquanto não sai a decisão definitiva, continue embaixo e bote um tabladinho só para o Ministério Público, no lado direito da mesa. Seria, pelo menos, curioso. Ah! E pense com carinho na possibilidade da mesa redonda.

(em tempo, link para a matéria do Conjur, aqui)

 

3 comentários:

  1. Perfeito. Resumiu muito do que penso. Acho muito legal sua forma de escrever. Diz muito com pouco, e demonstra certa despreocupação com as formalidades tradicionais do meio jurídico. Bem o que espero da Defensoria que acredito que devemos construir: Importante pelo conteúdo, não pela forma.
    Fala para todos, não para uma casta.
    Na busca para ser juiz, o MP despreza sua própria importância. Confunde sua peculiaridade de parte imparcial [em certa medida singularidade compartilhada pelo Defensor Público (nota mental: vou escrever um post sobre isto)] com a imparcialidade pura, distante do julgador.
    Sem o papel das partes, com suas verdades próprias - mesmo que a sua parcialidade intrínseca não seja passional (caso do MP e da Defensoria) - não há como o juiz manter sua imparcialidade e, assim, chegar mais perto da Justiça. É a beleza do processo dialético.
    Afirma Carnelutti que "Sem dúvida, isso das duas verdades, a verdade da defesa e a verdade da acusação, é um escândalo; mas é um escândalo do qual o juiz tem necessidade, a fim de que não seja um escândalo o seu juízo". CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 1ª ed. Campinas: Russel Editores, 2008, p. 45

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  2. Parabéns, Rafson, excelente texto. Já o espalhei pelo mundo digital.

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