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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Memória e Narração


Continuando a linha de questionamento das verdades aparentes, falarei de mais dois grandes livros. Ainda se trata do Direito penal, mas creio que o tema é interessante para todo mundo, que tem, ao menos, alguma atração por notícias sobre crimes. No próximo texto, eu prometo mudar de assunto para arejar.

O primeiro escrito é o Prova Penal e Falsas Memórias, de Cristina di Gesu (Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010). Ela põe em cheque a prova que, talvez seja a mais usada no processo penal brasileiro, hoje em dia, responsável pela maior parte das condenações: a produzida através de testemunhos.

Diz-se no meio jurídico que a testemunha é a prostituta das provas, pois propensa a mentiras. O caminho seguido por Di Gesu é outro e revela um horizonte mais preocupante. Ela analisa a própria formação da memória, para mostrar como os depoimentos são frágeis, mesmo que não haja vontade de ludibriar o juiz.

Recentemente, assisti na ESPN Brasil a reprise da final da Copa de 70, com narração e comentários atuais. Entre uma jogada de Pelé e outra de Gerson, meu pai comentou que assistiu àquela partida, ao vivo e a cores, na sua humilde residência, no Ceará. Eu respondi, repetindo o que lera antes, ser impossível, pois ainda não havia transmissão a cores no país, naquela época. Em 1970, pela primeira vez o planeta viu um mundial colorido; o Brasil, no entanto, continuou em preto e branco. Ele se irritou bastante e garantiu que falava a verdade. Lembrava de todos os detalhes,foi um dos 90 milhões em ação, gritando pra frente Brasil, salve a seleção. A cores!

Alguns minutos depois, o comentarista Paulo Vinícius Coelho disse mais ou menos a mesma coisa que eu, acrescentando que só na sede da Embratel foi possível ver as imagens coloridas. Provoquei, perguntando ao meu pai se ele morava na sede da Embratel, o que gerou revolta, contra mim e contra o jornalista. “Esse cara não sabe de nada! Tá me chamando de mentiroso?”.





Aí entrou o livro de Cristina di Gesu. A memória não é armazenada na nossa mente como arquivos de computador, em que basta clicar para vê-los, exatamente como deixamos. Ao contrário, vai sendo construída e re-construída, o tempo inteiro. Nessas remontagens, alguns aspectos são olvidados e outros novos acrescentados. É frequente a mistura de informações.

Meu pai não é mentiroso, afinal, no Ceará não tem disso não! Ele simplesmente passou tanto tempo ouvindo que aquela foi a primeira Copa transmitida para tv colorida, que passou a acreditar que a viu assim. O nome disso é falsa memória. Não tem detector de mentiras que descubra, pois para quem relata um fato inexistente, ele parece verdadeiro. Nem o aparelho do programa de Márcia Goldsmith dá jeito!

Agora, imaginem o risco disso, em um processo que decidirá sobre a liberdade de alguém. A vítima não lembra o rosto do seu algoz, mas o delegado diz que prendeu o suspeito, mostrando-o. Se esse homem tiver qualquer aspecto que faça parecer possível ter sido ele, ou, mais grave, se tiver características comuns aos estereótipos de delinqüentes há grande chance de que uma produção de nova memória. A partir daquele momento, a lembrança incluirá o novo rosto apresentado.

O segundo livro fala de um tema parecido, porém em viés completamente diverso. Chama-se Autos da Barca do Inferno- O Discurso Narrativo dos Participantes da Prisão em Flagrante (Editora Podium/ Faculdade Baiana de Direito, Salvador, 2010). O autor é Daniel Nicory do Prado, jovem e brilhante Defensor Público baiano.

Quem não milita na área penal desconhece que, hoje em dia, o inquérito policial costuma terminar na prisão em flagrante. Isso significa que, muitas vezes, após a prisão, não se investiga mais nada e todo o processo tem por base os relatos colhidos naquele momento.

Nicory analisa aqueles depoimentos a partir da teoria literária. Depois de estudar diversos documentos, ele demonstra incríveis semelhanças na construção do discurso da prisão com a construção de um texto de ficção. O resultado é surpreendente.

Ele esclarece, por exemplo, que, em regra só existem dois discursos no flagrante (o do condutor, quem leva o preso à delegacia, e o do preso), apesar de existirem testemunhas obrigatórias. As prisões são geralmente feitas por policiais e as testemunhas dela são outros policiais. Naturalmente, eles se esforçam para confirmar o que foi dito pelo colega. Ás vezes, nem há esse esforço, porque o segundo depoimento se limita às palavras “ratifica o que disse o condutor”.

Outra constatação interessante é que as palavras do preso também são guiadas para um fim, através das perguntas que são feitas (e muitas vezes omitidas). Quando há negativa de autoria, os questionamentos seguintes tendem a tentar desacreditar aquela resposta. Se há confissão não se faz o mesmo.

O motivo parece claro. Uma investigação só é exitosa, quando aponta um possível culpado. O objetivo, portanto, de quem investiga, pode não ser a produção da verdade, mas sim apresentar um suspeito.

Para atingir aquele intento, é preciso preencher os vazios discursivos, os fatos sem explicação, ou cuja explicação se quer ocultar. Abundam, então, expressões como “atitude suspeita” ou “velho conhecido da polícia”. O que seria uma atitude suspeita? Quem é o velho conhecido da polícia? Conhecido como?

O livro de revela o óbvio e surpreende por isto: é óbvio, mas ninguém vê. Os autos de prisão em flagrante são facilmente manipuláveis. Não é culpa dos policiais, pois não existem discursos neutros. Um processo penal com base neste documento é, então, um eficaz meio para “prender os suspeitos de sempre”.

Na história que contei sobre a conversa com meu pai, os fatos não aconteceram exatamente daquela maneira. Suprimi alguns dados e criei outros, buscando um objetivo: tornar a leitura mais agradável. Sempre isto é feito por todos que proferem discursos, incluindo os policiais.

Nenhum dos dois livros citados prega o fim da prova testemunhal. Eles são poderosos, entretanto, para apontar a delicadeza da sua utilização. Os riscos tão grandes que envolvem uma fonte tão banalizada de condenação reforçam a necessidade do respeito à presunção da inocência e sua consequência lógica: a dúvida favorece o réu. O difícil é que os operadores do direito efetivamente (e não apenas no discurso) sigam esse princípio. Ler as duas obras pode ser, no mínimo, um grande estímulo.

Quanto à transmissão futebolística, aquele cearense teimoso não se convenceu sobre a falsa memória. Ainda sustenta que viu todos os verdes, amarelos, azuis e brancos da Copa de 70. O mistério, portanto, continua...

2 comentários:

  1. Pooo Rafito, se estudar direito for tão bom quanto ler seus textos, vou comprar um livro desses p colocar na cabiceira. Muito bom o tema do post, além de ser algo q nunca tinha pensado. NO mais.. a imagem do telefone sem fio resume bem a sua idéia. Muito bom

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  2. Oi, Tiago!

    Que bom que você está gostando, cara!
    É um alívio saber que os textos,apesar de falarem em temas relacionados ao direito, agradam também os artistas.

    abraços

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