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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Mora na Filosofia

Texto interessantíssimo e de uma sinceridade comovente, de autoria de admirável magistrado potiguar. Ensina muito sobre a falibilidade do julgador e a humildade. Mostra também a importância da igualdade de tratamento para acusação e defesa. Por fim, além de ilustrar a dificuldade de decidir, reflete também como, ao contrário do que se faz usualmente, a opção por punir mais exige muito mais cautela que a contrária.

Retirei do Blog do autor, Rosivaldo Toscano Jr. O original está aqui. Vale a pena visitar os outros (excelentes) textos de lá.

"Nosso Rol Secreto de Arrependimentos


Estava numa comarca do interior, no início de carreira. Deparei-me com o caso de um acusado que, juntamente com um desconhecido, ingressou numa padaria, anunciou um assalto, levou o dinheiro do caixa e, durante a fuga, tomou a moto de uma mulher, fugindo em disparada. A motocicleta foi largada um quilômetro depois.
A tese do Ministério Público era de tinha havido dois roubos – o da padaria e o da moto, o chamado concurso material de crimes. A tese da defesa era de crime continuado., em que se condena por um só crime, com um pequeno aumento pelo segundo.
Quando fui fazer a sentença, veio à cabeça uma dúvida não aventada pelas partes: se a moto foi subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela foi encontrada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda inexperiente e inseguro, faltou coragem para rechaçar a pretensão do Ministério Público naquele momento, pois temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui me aconselhar sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o amigo e combativo promotor de justiça, que também chamamos de Parquet. Obviamente, como era parte na causa ele reiterou sua tese e procurou rechaçar as teses de crime continuado e de post factum impunível. Destacou que o acusado era reincidente e que também respondia por um furto cujo interrogatório já estava aprazado.
Informalmente, e sem perceber, aquele diálogo com o Parquet terminou sendo mais importante para a formação de um juízo sobre o destino da causa do que a leitura fria das razões das partes.
Um juiz deve perder tudo, menos a isenção. Por dar tratamento privilegiado ao Parquet em relação à defesa, foi exatamente isso que me aconteceu naquela tarde. Resultado: condenei o réu duas horas depois, amparando na íntegra a tese do MP de dois roubos qualificados, a uma pena de uns treze anos de reclusão.
O inconsciente, contudo, não me absolveu. Algo estava fora do lugar. Procurei, no início, racionalizar e justificar que aquele homem merecia a pena maior porque era degenerado. Mas depois passei a sentir um certo desconforto ao pensar no caso nos dias que se seguiram à assinatura da sentença. Ele foi crescendo. Até esperei um recurso da defesa, mas ela silenciou. Houve o trânsito em julgado e, assim, a decisão se tornou imutável. Não havia mais o que fazer. Logo depois me arrependi conscientemente da decisão. A angústia era sintoma de que havia cometido um grave erro: transigido com as minha próprias convicções. Senti a angústia em silêncio, na solidão da toga.
Dias depois veio o interrogatório do acusado no segundo processo que o envolvia. Era um furto cometido por ele na mesma época. Confessou tudo. Encerrada a audiência, ele pediu humildemente para falar comigo e disse, com olhos rasos d’água, exatamente o que eu não queria ouvir:
- Doutor, o senhor cometeu uma grande injustiça comigo naquele outro processo. O senhor me condenou por dois roubos, mas só peguei a moto para fugir! Eu depois a larguei com a chave na ignição.
Poderia ter me escondido por trás de uma resposta fria e ratificadora da decisão já tomada. Até me veio isso. Poderia simplesmente repetir os fundamentos do parquet. Mas não seria honesto com ele. Foi duro dizer, mas respondi:
- Você tem razão. Eu errei. Na época não avaliei bem. Analisando melhor hoje, não o condenaria pelo roubo da moto. E o pior é que não há nada a fazer em relação a esse caso. Já até estudei uma revisão criminal. Seria uma espécie de reavaliação do seu caso. Mas nem isso cabe porque embora concorde com você hoje, a tese do Promotor está juridicamente embasada e só caberia uma revisão se fosse uma coisa absurda.
Eu sabia que quando respondesse à primeira pergunta, seria fatalmente feita uma segunda. E já sabia até seu teor:
- Dá pra dar um jeito em relação a essa acusação de agora? Sei que vou ser condenado de novo.

- Saiba que se fosse possível, o faria, mas infelizmente não é possível compensar as penas. Cada caso é um caso. Saiba também que irei carregar comigo essa culpa.
O leigo não percebe, mas a função de julgar é, muitas vezes, indigna. Um ser repleto de imperfeições julgando o outro...
Foi duro, na posição de juiz, admitir o erro para o próprio acusado, mas acho que ele merecia essa consideração. Foi uma medida de respeito à sua individualidade. E essa abertura para com o outro me permitiu tirar uma lição a partir desse caso: o juiz deve sempre dar paridade de armas às partes.
Acho que essa experiência também me fez um juiz muito mais reflexivo, isento e atencioso com as partes e com as causas, respeitando as regras do jogo. A isonomia de tratamento das partes e a cautela para evitar prejulgamentos são as bases que que alicerçam uma decisão justa.
Agindo assim, diminuí, acredito, a probabilidade de novos erros. Mas não há como evitá-los de maneira absoluta: os tropeços fazem parte até mesmo das melhores trajetórias de vida. Saibam: somente os juízes absolutamente inexperientes não tem seu rol secreto de arrependimentos. E para alguns, inconfessáveis até para si próprios.
É como digo na chamada do blog:

“Por trás da magnificência de uma toga há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro, repleto de anseios, angústias, esperanças e sonhos.” "



2 comentários:

  1. Que história triste!!
    Ela me lembrou a poesia de Lenine:
    "Medo estampado na cara ou escondido no porão
    O medo circulando nas veias
    Ou em rota de colisão
    O medo é do Deus ou do demo
    É ordem ou é confusão
    O medo é medonho, o medo domina
    O medo é a medida da indecisão

    Medo de fechar a cara
    Medo de encarar
    Medo de calar a boca
    Medo de escutar
    Medo de passar a perna
    Medo de cair
    Medo de fazer de conta
    Medo de dormir
    Medo de se arrepender
    Medo de deixar por fazer
    Medo de se amargurar pelo que não se fez
    Medo de perder a vez

    Medo de fugir da raia na hora H
    Medo de morrer na praia depois de beber o mar
    Medo... que dá medo do medo que dá
    Medo... que dá medo do medo que dá"

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  2. Rafson,

    Sinto-me honrado com as suas palavras e com a postagem no seu belo blog.

    Abraço.

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