Uma menina de 12 anos chegou em casa, com uma mancha de sangue na calcinha. A mãe perguntou onde ela estivera. Com medo de revelar que tinha um namorado secreto, a criança falou que estava na casa do vizinho. A mãe já não gostava dele, então deduziu: o vizinho a estuprou. Relembrou de toda a história do homem, a partir deste fato, no que se chama de interpretação retrospectiva. Assim, cada vez que ele fez cafuné, ou deu um doce a uma criança, ele a tentava seduzir. Estava tudo tão claro! Como ela não percebera antes!
Foi feita a acusação e produzida uma única prova. A palavra da criança, orientada pela mãe. A suposta vítima se mudou e não soube mais nada do caso. Não viu, por exemplo, quando o rapaz foi condenado e preso. Não leu a sentença, baseada na premissa "científica" de que "criança não mente". Não soube que o julgador chamou, na sentença, aquele rapaz de monstro.
Dezesseis anos depois, a menina, já uma mulher, encontrou uma antiga conhecida. Na conversa, tomou conhecimento da pena. A culpa foi devastadora. Confessou tudo. Através de uma revisão criminal foi reconhecida a inocência. Tantos anos depois... Agora, quem vai reparar os anos perdidos? Quem vai reparar o estigma produzido pela acusação? Quem vai reparar o estigma produzido pela condenação? Quem vai reparar o sofrimento pela prisão? Quem vai reparar todo esse tempo convivendo com o castigo imerecido?
Vejam que a conduta da menina, que mentiu para esconder a travessura da mãe, é absoulutamente natural, como qualquer um, exceto o promotor que acusou, o juiz que julgou em 1º grau e os desembargadores que mantiveram a sentença, sabe. A conduta da mãe também não é estranha. Acreditou que a filha tinha sido violentada, imaginou a história e levou ela em frente.
O que não é natural é que a nossa sociedade clame tanto por mais penas e mais punições e que lamente e proteste contra todas as absolvições. O que é menos natural ainda é que pessoas que trabalham com processo penal não adotem uma postura de absoluta desconfiança em relação a todas as acusações.
Quando você vê na TV alguém acusado de estupro, especialmente pedofilia, você, imagina que pode ser inocente ou, já conclui, e às vezes verbaliza, que se trata de um monstro? Se escolheu a segunda opção, você age como o juiz que deve estar chamando de monstro, agora. É bom refletir sobre isto.
Nesse caso, a menina teve coragem de confessar o que havia acontecido. Mas, você já pensou, quantas crianças não fizeram o mesmo? Você já pensou em quantas pessoas estão presas injustamente, pelo crime mais infamante que existe, porque os juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores partem do preconceito de que quem acusa fala a verdade, pois o outro é "o monstro"?
Dá pra entender porque a presunção de inocência é importante e não pode ser afastada, nem mesmo nos casos de violência sexual, ou precisa desenhar?
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Homem condenado por falso estupro é absolvido depois de 16 anos
Sem ter feito absolutamente nada, ele foi acusado de estuprar uma vizinha de apenas 12 anos em 1994
Alexandre Lyrio e Victor Uchôa
mais@correio24horas.com.br
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O técnico em telefonia Jonas da Silva Cruz, de 53 anos, morreu pela primeira vez em setembro de 1994. Sem ter feito absolutamente nada, ele foi acusado de estuprar Lucineide Santos Souza, uma vizinha de apenas 12 anos.
Em 2008, Soró, como é conhecido, foi tirar um atestado de antecedentes criminais e acabou preso. Era sua segunda morte. “Nunca me senti tão abalado. Fiquei à deriva”, diz. Sem que soubesse, ele havia sido condenado em 1995 pelo tal estupro, mas, por um motivo que permanece inexplicado, durante 13 anos nunca foi procurado pela Justiça.
Morador de Nova Sussuarana, ele perdeu emprego, perdeu a casa e muitas amizades. Perdeu tudo que havia conquistado, mas nunca desistiu de provar sua inocência.
Até que, no início deste ano, aquela adolescente que o acusou, hoje mulher feita, resolveu falar a verdade: não houve estupro e nem mesmo assédio. Ao juiz da Vara de Execuções Penais, Lucineide revelou que toda a história fora criada por sua mãe. E que Jonas sequer a tocou.
Livre da condenação por estupro, Jonas Cruz comemora início de uma nova vida
Na última sexta-feira, no julgamento do pedido de Revisão Criminal realizado no Pleno do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ), o réu finalmente foi “absolvido por insuficiência de provas”. “Posso dizer que hoje eu renasci”, resumiu.
primeira morte A primeira morte de Soró se deu pela soma de uma raiva misteriosa e uma sentença judicial falha. Na tarde de 21 de setembro de 1994, Lucineide teve a primeira relação sexual de sua vida, com um namorado da mesma faixa etária.
primeira morte A primeira morte de Soró se deu pela soma de uma raiva misteriosa e uma sentença judicial falha. Na tarde de 21 de setembro de 1994, Lucineide teve a primeira relação sexual de sua vida, com um namorado da mesma faixa etária.
No dia seguinte, sua mãe, Renilda Bispo dos Santos, percebeu um sangramento na calcinha da garota. “Lembro quando ela me levou para fazer um exame no IML. Quando voltamos, alguém, não lembro quem foi, disse que eu tinha ido na casa de Jonas. Foi aí que tudo começou. Minha mãe não sabia do meu namoro”, conta Lucineide, hoje com 29 anos. “Ela não gostava de Soró e eu nunca soube o motivo”.
O inquérito da 11ª Delegacia de Polícia foi encaminhado ao Ministério Público Estadual (MP), que denunciou Jonas por crime sexual. O acusado chegou a participar de duas audiências no Fórum Ruy Barbosa e achou que o caso havia sido arquivado.
Mas, em 5 de julho de 1995, frente a frente com o juiz, Lucineide, já com 13 anos, narrou a história inventada pela mãe como se fosse real: “Primeiro ele me deu um empurrão para dentro da casa. Eu estava de saia, calcinha e camisa. Ele mandou eu deitar, tirou minha roupa e meteu o ‘negócio’ dele devagar”. O depoimento, presente nos autos do processo, bastou para a decisão do juiz Marinaldo Bastos Figueiredo, da 10ª Vara Crime de Salvador. “Criança não mente”, argumentou o magistrado na sentença de Jonas.
Soró, que nem sabia que ainda estava sendo julgado, também não soube que foi condenado.
Segunda Morte
Somente em dezembro de 2008, quando ele tentava tirar um atestado de antecedentes criminais, a polícia percebeu que havia um mandado de prisão em aberto para aquele homem, detido na hora. “Meu mundo desabou. É uma dor insuportável”, lembra o senhor de voz grave e fala pausada, medindo cada palavra.
Somente em dezembro de 2008, quando ele tentava tirar um atestado de antecedentes criminais, a polícia percebeu que havia um mandado de prisão em aberto para aquele homem, detido na hora. “Meu mundo desabou. É uma dor insuportável”, lembra o senhor de voz grave e fala pausada, medindo cada palavra.
Soró foi enviado à Polinter, onde ficou preso por 10 meses. “Aquele é o pior lugar do mundo. Tem dias que os presos dormem uns por cima dos outros”, afirma.
Em seguida, Soró garante que nunca foi vítima de nenhuma violência sexual dentro da cadeia, algo comum em condenados por estupro.
“Tinha muita história dessa. Estuprador é tratado como lixo, não tem nenhum valor, mas Deus evitou que acontecesse comigo. Eu sempre disse que era inocente e acho que eles acreditaram”, emenda, contendo a emoção.
Em outubro de 2009, Jonas foi transferido para a Colônia Lafayete Coutinho, onde ficou até 23 de março de 2010, quando recebeu progressão de pena para o regime semiaberto, na Casa do Albergado e Egresso (CAE). Este ano, passou à prisão domiciliar.
Redenção
Desde então, sua luta é para andar de cabeça erguida. Atualmente, atua na triagem de correspondências dos Correios, emprego conseguido através de um programa de ressocialização da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos.
Desde então, sua luta é para andar de cabeça erguida. Atualmente, atua na triagem de correspondências dos Correios, emprego conseguido através de um programa de ressocialização da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos.
Sexta-feira, fora do Tribunal de Justiça, enfim inocentado do crime nunca cometido, Jonas respirou fundo, como se tomasse fôlego suficiente para o resto da vida. “Hoje sou um homem mais forte, pronto pra qualquer desafio”, disse, antes de se despedir.
‘Criança não mente’, disse juiz
Ao proferir a sentença que condenou Jonas Cruz, o magistrado Marinaldo Bastos Figueiredo, que morreu no ano passado, chegou a se perguntar: “Por que a vítima acusa o denunciado?”. Então, sem o suporte de testemunhas ou provas materiais, embasou sua decisão da seguinte maneira: “Estou convicto e certo de que a acusação da vítima é verdadeira, toda criança é sincera, não mentem e inexistem provados motivos ensejadores de acusação mentirosa”.
Ao proferir a sentença que condenou Jonas Cruz, o magistrado Marinaldo Bastos Figueiredo, que morreu no ano passado, chegou a se perguntar: “Por que a vítima acusa o denunciado?”. Então, sem o suporte de testemunhas ou provas materiais, embasou sua decisão da seguinte maneira: “Estou convicto e certo de que a acusação da vítima é verdadeira, toda criança é sincera, não mentem e inexistem provados motivos ensejadores de acusação mentirosa”.
Na peça de pedido da Revisão Criminal produzida pelo defensor público Rafson Ximenes, a tese é contraposta com um trecho de O Juízo Moral da Criança, do teórico suíço Jean Piaget: “A criança, em virtude de seu egocentrismo inconsciente, é levada espontaneamente a transformar a verdade em função do seus desejos e ignorar o valor da veracidade”.
“Minha mãe criou a história, mas admito que peguei carona. Não quis dizer que tinha transado com meu namorado e me acomodei”, relata Lucineide. Para a desembargadora Ivete Caldas, relatora do processo de Revisão Criminal, a decisão foi falha porque levou em conta somente a versão da garota. “Nunca houve prova, somente a palavra da vítima. Para se condenar alguém é preciso ter certeza, e nesse caso a denúncia não tinha relevo”, resumiu.
Sozinho, Jonas acompanha atento a decisão dos desembargadores
Votos de liberdade
Na sessão de sexta-feira da Câmara Criminal, o desembargador Lourival Trindade chegou a solicitar que Lucineide Souza prestasse um novo depoimento de retratação, este contando com a presença de um representante do Ministério Público (MP).
O magistrado também pediu que a mãe dela voltasse a depor, sem saber que a mulher morreu há nove anos. A desembargadora Ivete Caldas, relatora do processo, argumentou que o depoimento que Lucineide prestou em março deste ano ocorreu em juízo e não foi contestado pelos promotores do MP.
Assim, seu voto pela procedência do pedido de Revisão Criminal foi acompanhado pelos desembargadores Vilma Veiga, Nágila Brito, Jeferson de Assis e Abelardo de Carvalho. “A retratação foi uma prova nova totalmente relevante e é por isso que Jonas foi absolvido”, afirmou Caldas. Agora, para que o nome de Soró seja limpo, basta que o acórdão da Câmara Criminal chegue à Vara de Execuções Penais junto com o ofício que indica a nulidade da condenação de Jonas.
Maior erro da Justiça ocorreu em Pernambuco
No dia 22 de novembro, morreu em Recife o ex-mecânico Marcos Mariano da Silva, de 63 anos, vítima daquele que é apontado como o maior erro da Justiça da história do país. Ele ficou quase 20 anos preso porque tinha o mesmo nome de um assassino. Marcos morreu enquanto dormia, poucas horas depois de receber a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia determinado que o governo de Pernambuco pagasse o restante da indenização que ele ganhou por danos morais e materiais: R$ 2 milhões, além de uma pensão mensal de R$ 1.200.
No dia 22 de novembro, morreu em Recife o ex-mecânico Marcos Mariano da Silva, de 63 anos, vítima daquele que é apontado como o maior erro da Justiça da história do país. Ele ficou quase 20 anos preso porque tinha o mesmo nome de um assassino. Marcos morreu enquanto dormia, poucas horas depois de receber a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia determinado que o governo de Pernambuco pagasse o restante da indenização que ele ganhou por danos morais e materiais: R$ 2 milhões, além de uma pensão mensal de R$ 1.200.
Em 2008, Marcos já tinha recebido metade da indenização e usou o dinheiro para comprar casas para ele e familiares. O governo pernambucano recorreu para não ser orbigado a pagar a segunda parte, o que foi negado pelo STJ justamente no dia da morte do ex-mecânico.
Marcos tinha 28 anos quando foi preso pela primeira vez, em 1976, acusado de assassinato. Seis anos depois, o verdadeiro criminoso foi encontrado, e o homem inocente ganhou liberdade. Mas, em uma blitz, três anos mais tarde, foi preso novamente porque um policial o reconheceu e achou que ele estava foragido. Assim, foram mais 13 anos de reclusão.
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Rafson, essa história é absolutamente exemplar! Você foi muito feliz ao abordar esse tema! Isso merece sempre ser enfaticamente denunciado! Essa certeza advinda da palavra da vitima pode estar produzindo inúmeras injustiças! É uma simplificação nefasta, que só se aplica aos mais vulneráveis! Vou reproduzir isso! Parabéns!!
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