Alguns parágrafos de um julgamento, segundo a visão de um acusado (sujeita distorções, assim a visão do julgador, do defensor ou do acusador), são suficientes para vislumbrar tantos fenômenos da nossa justiça penal: moralismo, hipocrisia, papel dócil esperado do acusado, modo de produção de prova...
" (...) Outra coisa que ele me instruiu foi optar por uma defesa do tipo ´ele está arrependido e promete que não vai mais fazer malcriação´. Fiquei mais indócil ainda com aquilo. Me sentia aviltado por aquela imposição. O Michel fez uma preleção da nossa testemunha de defesa, o Ricardo Leon, para afirmar que eu estava muito arrependido com o que tinha feito. Não ia segurar aquela farsa humilhante na hora H.
Pois bem, entro na sala da corte e logo tenho uma visão surreal: na parede em que ficava a cátedra do juiz, havia um crucifixo e, na parede lateral, um pôster muito maldesenhado de quem?... Do John Lennon! Estava caracterizado de bicho-grilo com uma aparência de ´hipponga´, cabelos longos escorridos presos à testa por uma bandana, bata indiana, barbão, olhos caídos, fazendo o sinal de paz e amor e com os seguintes dizeres embaixo: ´Give Peace a Chance´. Era a imagem do protótipo do maconheiro! Porra, logo o Lennon, que foi caçado pela justiça americana, preso por porte de droga, proscrito pelos defensores da moral e dos bons costumes... e lá estava aquela imagem, no mínimo contraditória, a abençoar aquele ambiente. Imaginei por um momento que daqui a alguns anos seria a minha vez de estar lá, pregado na parede, a abençoar comarcas como aquela.
Me sento no banco dos réus aguardando o início da sessão. Entra Sua Excelência, um senhor robusto, de toga. Viria a saber depois por um grande amigo, também juiz, que esse senhor houvera comentado com ele, no clube dos magistrados, que iria se aposentar, mas primeiro, iria colocar na cadeia um delinquente disfarçado de músico. Esse meu amigo juiz garantiu que a sentença já estava lavrada.
Mas voltemos à corte; naquele momento, estava calmo, pensando que, na pior das hipóteses, sairia dali livre, pois com pena máxima, a ser-me imputada, me protegia da possibilidade de virem querer tirar minha liberdade. Estava, teoricamente, amparado pelo código penal.
Inicia-se a sessão após todos aqueles salmaleques. Começa o desfile de testemunhas que, na verdade, pelo que me lembre, só eram duas: o Ricardo e o policial que me prendera.
O Meritíssimo convoca a primeira testemunha, o Ricardo, que atuou de acordo com o combinado pela estratégia de defesa: declarou ao juiz o meu suposto arrependimento. Na hora que ele começou a falar, não aguentei, foi mais forte que eu: levantei o dedo pedindo a palvra para contestar aquela afirmação: afirmei que, de forma alguma, não estava arrependido, muito pelo contrário, e não poderia admitir o Estado me tutelar. Logo de cara, percebi que o juiz não nutria muita simpátia pela minha pessoa.
A segunda testemunha é convocada. O policial do aeroporto. O possante magistrado, após as perguntas de praxe, em meio àquela corte cheia de gente, muda o tom do formal para o coloquial e manda a seguinte, já com uma voz meio amalandrada: ´Ô policial Gil... você ainda está lotado no Galeão?´ ´Sim, Excelência.´ O juiz consulta o seu relógio, dá uma pigarreada e solta: ´Sabe o que é? Tenho uma sobrinha que está chegando de Amsterdã, e tá cheia de muamba (!!!). O que eu quero de você é que saiba o número do vôo e libere toda a muamba. A companhia é KLM, entendido?´ ´Sim, Excelência!´´Então pode ir que ela deve estar chegando a qualquer momento´Quando ouvi aquela barbaridade, olhei para o juiz, olhei para os populares na corte, vi um jornalista de um potente semanário de circulação nacional e imediatamente pensei: esse juiz vai se fuder! Está me julgando por uma contravenção e fazendo questão de cometer um crime de contrabando na cara limpa, na cara dura, despudoradamente, na cara de todo mundo!! Porra, alguém vai acabar caguetando o não tão nobre magistrado, pois aquele disparate indecente era algo impossível de se conceber. Tudo isto acontece numa fração de segundo e, num ato reflexo, desato a gargalhar diante do quadro imoral que me era imposto publicamente! Desatei a gargalhar de ódio!
E o nosso querido juiz levanta a voz e pergunta: ´O réu está a rir de quê?' ' ´Nada, Excelência, estou muito cansado, estava meio sonolento e acabei dormitando; devia estar sonhando com alguma coisa engraçada.´ E, sem transição, nosso emérito magistrado sapeca pro escrivão: ´Corrige aí: o réu não tem má personalidade, o réu tem péssima personalidade!´ Não me contive e retruquei: ´Puxa, pensava que isso aqui fosse um julgamento, e não um consultório psicanalítico.´ E novamente, sem transição, nosso impávido juiz dispara batendo o martelo: ´O réu está condenado a um ano de prisão, sem direito a sursis.´ "
Lobão, 50 anos a mil. Nova Fronteira, 2010. p.313-315
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