Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático".
Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!
8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal
Brasileira.
As teorias das subculturas, em síntese, falam de grupos menores que,
sem desprezar os objetivos culturais da sociedade mais ampla,
estabelecem metas diferentes, que admitem como legítimos meios
rechaçados pelos demais. Descrevem também a distribuição
diferencial não só dos meios legítimos, mas também dos ilegítimos
e ainda falam das associações diferenciais que propiciam o
aprendizado de condutas ilícitas.
Novamente, o nosso modelo punitivo baseado na prisão, é
incompatível com essas assertivas. Com a segregação, desaparece
qualquer opção à criação de laços sociais entre os segregados,
que além de se encontrarem na mesma situação, possuem um inimigo
comum: o Estado que os pune. Nesta micro-sociedade, a sociedade dos
cativos,
surgirão novas regras internas, novos valores.
De fato, como pode pretender a
prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio com
a sociedade e o incapacita, por esta forma, para as práticas de
sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social
quando é a própria prisão que o impele para a “sociedade dos
cativos”, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna
respeitável para a massa carcerária?
O cativo tem acesso a novos meios para cometer crimes e possui um
campo amplo de aprendizagem e troca de experiências. Além disto,
conhece as normas da prisão e os meios de conviver melhor com elas.
Os que obtêm mais êxito nesse aprendizado, tornam-se líderes das
celas, dos pavilhões ou da unidade inteira. Assim, conseguem ditar,
ou liderar a nova ordem, estabelecendo e até positivando normas de
condutas. Um exemplo é a “Cartilha Ordem e Progresso”, elaborada
e impressa pelos internos da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.
Como qualquer código oficial, o
documento publicado pela comissão usa o tom jurídico para
estabelecer as regras. A diferença são os termos utilizados nos
tópicos. Nas leis da cadeia não há artigos, mas “Obediências”.
Em cada uma está prevista uma punição, como a que é direcionada
para os presos que “subtraírem” pertences de outros detentos.
“(...) para continuar a conviver em nossa comunidade, prestará
serviços de faxineiro na varrição do pátio e orar um Pai-nosso,
ou pregar os joelhos no chão”.
Entre outras coisas, a cartilha
traz regras de etiqueta para os dias de visitação, prevê punições
severas para agiotagem e é implacável com os presos que mantiverem
relações amorosas com ex- mulheres e familiares dos colegas.
Em alguns momentos, o código
parece ensinar ao Estado a melhor forma de ressocializar o
contingente carcerário. “O princípio básico do alicerce humano
reside na educação”. Uma das regras deixa claro que os
presos querem impor quais detentos devem permanecer em cada módulo.
A punição para quem faltar a “Obediência III” é a retirada do
preso do convívio dos demais, o que significaria a sua
transferência. “ O direito de defesa será dado ao acusado na
possível primeira falta. Na reincidência, deixará automaticamente
o nosso convívio”.
Obviamente, as normas já existiam e eram aplicadas antes de serem
transpostas para o papel. No caso mencionado, o documento foi
apresentado a todas as autoridades, semanas antes de descoberto pela
imprensa. A administração prisional teve a honestidade de
reconhecer que era natural a existência de lideranças e negociações
dentro das prisões.
A disciplina, a segurança e a
relativa tranqüilidade nas prisões dependem fundamentalmente da
disposição da massa carcerária em cooperar. E como têm mostrado
vários estudos, não há cooperação sem negociação; e negociação
não se faz sem lideranças dentro da massa carcerária. A idéia de
que a autoridade legal, isto é, o próprio Estado através de seus
funcionários, se veja constrangida a negociar com foras-da-lei as
regras de aplicação da própria lei pode parecer um outro absurdo.
Mas trata-se simplesmente de mais um dos dilemas inscritos na
natureza das prisões: o poder total- ou à primeira vista, total- da
administração não tem como fugir à negociação e transigência.
A alternativa quase sempre será um nível de violência e repressão
que nenhuma sociedade poderá tolerar.
8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal
Brasileira.
Para a teoria da anomia, os crimes derivariam, principalmente, da
discrepância entre os fins culturais e acesso aos meios legítimos
para alcançá-los. Sendo assim, haveria apenas dois modos de lidar
com a questão: reduzir os fins ou ampliar os meios.
A segunda alternativa é aparentemente levada em conta pela nossa
execução penal, pois em diversos momentos, a LEP se refere à
obrigação do Estado em fornecer cursos profissionalizantes e ensino
de 1º grau.
O trabalho prisional (também obrigação do Estado) tem finalidade
educativa.
Como estímulo à participação dos presos nestas atividades, ainda
oferece a remição da pena pelo trabalho e, desde 2011, pelo
estudo.
A observação mais atenta da lei e da sua interpretação e
aplicação, porém, permite que se desfaça o engano. O ensino de 1º
grau, ainda que fosse de excelente qualidade, não seria apto a
preparar ninguém para almejar ocupações lícitas que permitissem o
acesso aos fins culturais. O jurista Gerivaldo Neiva, comentando
convênio celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a
Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP),
constatou que, segundo dados do Ministério da Justiça,
75, 35% da população carcerária brasileira possuía, no máximo,
este nível educacional.
O problema é que o mercado,
mesmo para a construção civil mais pesada, anda a reclamar da
qualidade da mão-de-obra nacional. Sendo assim, o que o mercado e a
sociedade têm a oferecer para 93,27% da população carcerária
deste país, que mal sabem assinar o nome, além da reincidência?
Aliás, não é mera coincidência que o percentual de reincidência
(70% segundo o Ministro Peluso) seja parecido com o percentual de
detentos que apenas “desenham
o nome” (75,35%,
segundo o Infopen).
A oferta de cursos profissionalizantes também padece do mesmo
defeito. Não basta ter uma profissão, para ter acesso aos fins
culturais. É necessário que esta carreira ofereça vantagens
materiais e imateriais suficientes, para a aquisição dos bens
desejados. Uma propaganda do mesmo convênio entre Conselho Nacional
de Justiça e FIESP dá uma ideia de que ocupações são oferecidas,
pois o vídeo começa com uma placa anunciando vagas para servente,
pedreiro, carpinteiro e pintor.
É sabido que as ofertas não são muito diferentes daquelas. São
cursos de costura, para as mulheres e de trabalhos braçais para os
homens. Nenhuma das atividades permite muitas perspectivas de sucesso
no nosso capitalismo. É evidente que não foi a impossibilidade de
trabalhar como pedreiro que levou aquelas pessoas a delinquir.
Retomando a classificação de Merton, continuará existindo a
inacessibilidade aos fins culturais, pelos meios legítimos.
Isso me leva a perguntar: será
o problema do criminoso um déficit
de socialização? Ou
será ele apenas mais um numa sociedade em que os vínculos éticos
estão destruídos? Nesse caso, que modelos propor a ele a fim de
“transformá-lo”, como desejam os ressocializadores? O do “bom
trabalhador”? Mas esse “bom trabalhador” é mesmo alguém
valorizado e desejado nessa sociedade? Tenho minhas dúvidas se falta
socialização ao criminoso ou, ao contrário, sobra.
A remição da pena, que é o fruto específico do trabalho e do
estudo prisional é um instituto absolutamente precário. Ao cometer
uma falta grave o preso perde até 1/3 dos dias remidos.
Por um lado, ofende-se o princípio da coisa julgada, já que pena
remida é pena cumprida
e, deste modo, a sanção pela falta equivaleria uma nova pena.
Por outro lado, retira-se o que foi conquistado pelo trabalho
ou estudo, em razão de fato que muitas vezes não tem qualquer
relação com eles.
Punir este preso- disciplinado
no trabalho, indisciplinado no Pavilhão- com a perda dos dias
remidos significa não reconhecer o seu mérito por ter respeitado as
normas da instituição total num determinado espaço, pois o privará
dos frutos da atividade exercida nesse espaço em que teve bom
comportamento.
Apesar de instituir o trabalho prisional como dever e direito do
preso, parece que apenas a primeira modalidade é levada a sério. O
ofício foi pensado primordialmente como punição, uma vez que o
parágrafo segundo do artigo 28 da LEP exclui os presos do regime
celetista. Eles não têm direito à férias, a 13º salário, a
repouso remunerado e nem sequer ao salário mínimo.
A Constituição Federal
garante a todos os trabalhadores, sem excepcionar os que estão
presos,
aqueles direitos.
Praticamente todos os juízes, promotores e, neste ponto, a grande
maioria dos defensores públicos aceitam passiva e acriticamente a
prevalência da LEP em relação à Carta Magna também nesta
situação.
Se os presos não têm direitos trabalhistas, como o “salário
mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a
suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo”, é forçoso concluir que não são
considerados trabalhadores.
De fato, quem é obrigado a trabalhar e, mais que isto, a trabalhar
recebendo apenas uma pequena ajuda de custo não é empregado. É
cativo, ou se preferir, escravo. Definitivamente, escravos não têm
condições de atingir os fins culturais aceitos pela sociedade. Com
a oferta de ensino primário, cursos profissionalizantes subalternos,
trabalhos precários e mais assemelhados à escravidão, talvez seja
mais correto imaginar que a proposta da nossa execução penal, no
sentido mertoniano, seja a simples transformação de pobres
inovadores em pobres subalternos conformados.
8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal
Brasileira.
A Escola de Chicago associou a criminalidade à desorganização
social e à degradação dos ambientes. Trouxe como principal
inconveniente a associação da delinqüência à pobreza. Uma
execução penal de acordo com aquelas ideias teria necessariamente
que prever formas de atuação nas comunidades de onde vêm os
apenados, de modo a fornecer saúde, saneamento básico, limpeza,
moradia digna, etc. Obviamente, nossas leis não prevêem nada disto.
Para produzir os efeitos colaterais, porém, temos dispositivos
bastante eficientes. Embora seja prevista na LEP a assistência
social ,
a especificação das suas atividades esclarece que a função
primordial é avaliar e julgar o preso.
Assim, os assistentes sociais terminam sendo obrigados a utilizar
todo o seu tempo para descrever as condições de moradia, ou
estruturação da família.
Os dados obtidos não são usados como ponto de partida para uma
atuação estatal firme nas localidades. Servem apenas como indícios
de impossibilidade de obtenção de direitos que concedem parcelas de
liberdade, como a progressão de regime, ou o livramento condicional.
Passa a existir uma inconstitucional presunção de culpa de futuros
delitos, a partir das condições sócio-econômicas degradadas.
Desperdiçando o potencial dos assistentes sociais, a redação
original da LEP e a interpretação francamente inconstitucional que
se faz dela e das suas alterações invertem a sua função social e
transformam o seu trabalho em mero instrumento de criminalização da
pobreza.
Aos assistentes sociais diante
desta realidade, cabe ocupar campo profissional, com responsabilidade
ética e política, colaborando com as transformações necessárias,
inserindo, como salienta Iamamoto (1992), “o novo fazer
profissional”, que para tanto, necessita negar a base tradicional e
conservadora, afirmando um novo perfil técnico, não mais um agente
subalterno ou apenas executivo, mas um profissional competente
técnica, teórica e politicamente.