CARA DE BANDIDO. O POSITIVISMO.
Enquanto aquele papagaio
curupaca implica
E com o carimbo positivo da
ciência
Que aprova e classifica.
Desde o princípio, a Escola Clássica sofria oposição de
estudiosos que não acreditavam na igualdade entre as pessoas e que
achavam seus métodos dedutivos, por demais abstratos. Para eles, não
era o crime que deveria ser estudado, mas sim o criminoso. A pena
devia sim proteger a sociedade, mas agindo no criminoso,
neutralizando-lhe e, principalmente, transformando-lhe, extirpando um
mal interno.
Na metade do século XIX, o contexto histórico havia mudado. As
monarquias caíam ou eram amplamente dominadas pela burguesia. Não
havia mais discrepância entre os detentores do poder político e do
poder econômico. Não eram mais eles que precisavam temer a
arbitrariedade de terceiros com o poder de acusar, julgar e punir.
Princípios protetivos dos réus, como legalidade e proporcionalidade
não permaneciam tão importantes.
Ao contrário, pareciam obstáculos para a perseguição dos novos
adversários. Henrique VIII não precisava destruir a religião, mas
apenas dominá-la.
Era preciso evitar o surgimento
da classe operária como força revolucionária. Se esta obtivesse a
solidariedade internacional, os governantes também se organizariam
internacionalmente para contra-atacá-la. O controle social
internacional destes ‘resistentes’(que seriam qualificados como
delinqüentes) tinha de ser organizado e um caminho para isso eram os
congressos internacionais.
Capitaneados pelo médico Cesare Lombroso, os positivistas se
tornavam hegemônicos. Para eles, o método de estudo da criminologia
deveria ser o empírico. A origem do delito seria biológica, embora
não fossem descartadas as influências sociais. Deste modo, não
haveria, ou seria muito reduzido, o espaço para o livre arbítrio.
Pessoas cometeriam crimes porque não eram evoluídas. Elas não
tinham escolhas, a sua natureza as impelia para o delito.
Nas pessoas sãs é livre a
vontade, como diz a metafísica, mas são determinados por motivos
que contrastam com o bem-estar social. Quando surgem, são mais ou
menos freados por outros motivos, como o prazer do louvor, o temor da
sanção, da infâmia, da Igreja, ou da hereditariedade, ou de
prudentes hábitos impostos por uma ginástica mental continuada,
motivos que não valem mais nos dementes morais ou nos delinqüentes
natos, que logo caem na reincidência.
Lombroso e seus seguidores realizavam pesquisas dentro das prisões,
para descobrir as características físicas, anatômicas,
intelectuais, psicológicas e morais, entre os criminosos.
Descobrir-se-ia, assim, o perfil do infrator, que poderia ser
facilmente identificável. Seria possível, por meio de estudos
clínicos medir o grau de periculosidade de cada um. Logo,
independentemente de fatos concretos a serem imputados, os perigosos
precisariam ser afastados provisória ou definitivamente das pessoas
normais.
Criticavam a prisão, porque seria incapaz de diminuir a
reincidência. A pena não deveria ser castigo, mas sim, tratamento.
A sua duração não devia ser simplesmente proporcional ao delito,
mas medida pelas respostas às técnicas aplicadas. Especialistas
precisariam comprovar a regeneração. Na base de tudo, sempre estava
a consideração do criminoso como o anormal a ser normalizado, o
selvagem a ser civilizado e, finalmente, o anti-social a ser
ressocializado.
Hoje, são evidentes fragilidades nas ideias positivistas. Em relação
a características físicas, Lombroso apontou marcas curiosas. Uma
delas era o canhotismo,
que seria mais freqüente entre os criminosos. Além de considerar
canhotos como Charles Chaplin, Jimmie Hendrix, Paul McCartney, Lula,
Machado de Assis e Bill Gates pessoas atávicas, desconsiderou que as
famílias ricas educavam seus filhos a serem destros, porque o uso da
mão esquerda era “coisa do diabo”. Outros sinais de selvageria
seriam exatamente as habilidades úteis à espécie de delito
cometido e que, por isto são treinadas e desenvolvidas para a sua
prática, como a maior agilidade dos assaltantes.
Quando aborda características morais, aponta traços que obviamente
não são menos comuns nas pessoas não perseguidas penalmente, como
ciúmes,
mentiras
e vaidade.
Em lugar dos afetos familiares e
sociais, que se encontram apagados ou desligados nos delinqüentes,
as outras paixões restantes dominam com tenacidade. Primeiro entre
todos, o orgulho, ou melhor, a consideração da própria pessoa, que
notamos crescer no vulgo, na razão inversa do mérito. (...)
A vaidade dos delinqüentes
supera à dos artistas, dos literatos e das mulheres galantes.
Além de atingir em cheio pessoas que usam paletós e togas e exigem
serem tratadas por doutor ou excelência, estas definições
demonstram que a categorização não se sustenta, sem que haja a
crença em um grupo de homens e mulheres impolutos, quase que como
sacerdotes (no discurso dos sacerdotes) ou heróis românticos,
encontrados atualmente apenas em novelas e desenhos animados.
Mas, o erro central de Lombroso, que seria reproduzido por quase
todos os seus sucessores e opositores, foi buscar raízes universais
na prática de crimes, quando a própria definição dos delitos
varia no tempo e no espaço. Por outro lado, ele também não
refletia que nem todos os que cometiam delitos eram presos. O seu
objeto de estudo poderia, em tese, refletir o perfil das pessoas que
são encarceradas, mas não o das criminosas.
Em locais onde a maioria dos perseguidos pela polícia é negra, a
“cara de bandido” será negra. A conveniência deste equívoco
para a justificação das desigualdades sociais, porém, é intensa.
Apesar das fortes resistências,
particularmente dos penalistas, a escola positivista se impôs e teve
as repercussões internacionais por todos conhecidas. Correspondia ao
momento que se estava vivendo e às necessidades e transformações
da ideologia liberal. Existiam desigualdades sociais, mas elas se
justificavam porque existiam desigualdades humanas. Os pobres eram
pobres porque biologicamente inferiores e o delinqüente era assim
porque pertencia a uma linhagem humana distinta e inferior.
Conseguindo se impor nos países centrais, onde a pobreza era
exceção, as teorias logo chegaram, e com muito mais força, nos
países periféricos. Na América Latina, cujo desenvolvimento se
baseou no genocídio da população nativa e na escravidão dos
africanos, dominados pela minoria de europeus e seus descendentes
brancos, o positivismo não apenas se consolidou, como foi
fundamental para o nosso modelo de acumulação de capital.
O panóptico benthaniano poderia
ser o modelo de controle social programado ideologicamente como
instrumento disciplinador durante a acumulação originária de
capital na região central, mas o verdadeiro modelo
ideológico para o controle social periférico ou marginal não
foi o de Bentham mas o de Cesare Lombroso. Este modelo partia da
idéia de inferioridade biológica tanto dos delinqüentes centrais
como da totalidade das populações colonizadas, considerando, de
modo análogo, biologicamente inferiores, tanto os moradores das
instituições de seqüestro centrais (cárceres, manicômios), como
os habitantes originários das imensas instituições de seqüestro
coloniais (sociedades incorporadas ao processo de atualização
histórica).
Atualmente, falar em Lombroso gera o mesmo tipo de reação que falar
na inquisição. Em ambos os casos, é difícil encontrar quem
manifeste qualquer simpatia. Fala-se, com alívio e terror de coisas
que ficaram em um passado distante. Entretanto, assim como nossos
processos penais são permeados de práticas inquisitoriais, nossa
forma de pensar políticas penais, de noticiar delitos, de investigar
crimes,
de abordar suspeitos,
de formular acusações, de legitimar ou deslegitimar falas e de
executar penas, deixa muito claro que Lombroso está bem vivo. Apesar
dos equívocos fundamentais, são inúmeras as marcas positivistas,
sintetizadas pela retumbante aceitação entre juristas,
jornalistas,
políticos
e a população em geral, do paradigma etiológico.
No tópico anterior, Salo de Carvalho esclareceu que na discussão
sobre o nascedouro da criminologia, a oposição entre Escola
Clássica e Positivismo tem claros matizes ideológicos. O predomínio
quase absoluto da corrente que aponta Lombroso como o fundador da
criminologia
é, assim, bastante revelador da sua contemporaneidade.