O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático".
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8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal
Brasileira.
Para Lombroso e os seus seguidores, a sanção deveria ser um
tratamento médico, psicológico e social, visando à cura do crime.
Os presos deviam ser separados e a pena medida de acordo com a sua
personalidade e a sua periculosidade. Seriam necessárias, então,
diversas avaliações, para verificar as respostas aos métodos de
cura, determinando a quantidade e a intensidade do castigo.
Se a influência das outras escolas foi mínima, ou teve aplicação
distorcida, o mesmo não se pode dizer do positivismo. É evidente,
porém, que após o fortalecimento dos direitos humanos e,
principalmente, dos movimentos de minorias, como os índios, negros e
as mulheres, o discurso precisava ser temperado.
Não era mais possível falar em seres atávicos. Ainda assim, o
objetivo primordial da pena, segundo a motivação dos proponentes, é
o tratamento, como se vê na exposição de motivos da LEP, por
exemplo, nos itens 07,
37 e 39.
37. Trata-se, portanto, de
individualizar a observação como meio prático de identificar o
tratamento penal adequado, em contraste com a perspectiva
massificante e segregadora, responsável pela avaliação feita
“através das
grades: ‘olhando’ para um delinqüente por fora de sua natureza e
distante de sua condição humana”.
A expressão é repetida na lei de execuções penais, quando fala
que na guia de recolhimento, documento indispensável à abertura do
processo executivo, devem estar presentes todas as peças do processo
de conhecimento indispensáveis para o adequado tratamento
penitenciário.
Os exames de personalidade
para classificar os presos são obrigatórios.
Assim, como fez Lombroso, são apresentados como modo de humanizar a
pena.
Da classificação, devem participar médicos psiquiatras e
psicólogos,
além de “chefes de serviço” e assistentes sociais. A presença
dos profissionais de saúde, ao lado dos de segurança evidencia a
busca de uma causa etiológica interna para a prática do delito.
Sabe-se que os mais perversos
modelos de controle social punitivo são aqueles que fundem o
discurso do direito com o discurso da psiquiatria, ou seja, que
regridem aos modelos positivistas de coalizão conceitual do jurídico
com a criminologia naturalista. O sonho da medição da
periculosidade, forjado no interior do paradigma criminológico
positivista (etiológico), encontra guarida nesse sistema. Assim,
retomando conceitos como propensão
ao delito, causas da
delinqüência e personalidade voltada para o crime, o discurso
etiológico se reproduzia, condicionando o ato judicial ao exame
clínico-criminológico – “psicólogos, psiquiatras, pedagogos,
médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos
de caso e diagnósticos, da maneira mais acrítica, com as mesmas
categorias utilizadas na introdução das idéias de Lombroso no
Brasil”.
Mas não é só no início do processo que avaliações etiológicas
estão presentes. Para obter livramentos condicionais e progressões
de regime não é raro que o preso necessite se submeter a avaliações
psicológicas destinadas a apontar se está preparado para receber
alguma parcela da liberdade.
A exposição de motivos deixa clara a finalidade de estudar a
inteligência (os criminosos, para Lombroso, são selvagens), a vida
afetiva (os criminosos, para Lombroso, são desprovidos de
sentimentos e depravados) e os princípios morais (os criminosos,
para Lombroso, são degenerados).
31. A gravidade do fato
delituoso ou as condições pessoais do agente, determinante da
execução em regime fechado, aconselham o exame criminológico, que
se orientará no sentido de conhecer a inteligência, a vida afetiva
e os princípios morais do preso, para determinar a sua inserção no
grupo com o qual conviverá no curso da execução da pena.
. Embora e LEP tente diferenciar exames de personalidade de exames
criminológicos, eles são solicitados pelo Ministério Público e
determinados pelos magistrados, indistintamente, como exames
criminológicos, avaliações psicológicas ou avaliações
psico-sociais. Para quem tem dúvidas quanto à natureza positivista,
basta ver na exposição de motivos a referência direta. O exame
criminológico, declaradamente, atende aos reclames dos “pioneiros
da criminologia”. O pioneiro que pretendia estudar a inteligência,
os valores morais e a vida afetiva do preso, tem nome e sobrenome,
por mais que isto envergonhe e ofenda alguns juristas. Chama-se
Cesare Lombroso.
34.
O Projeto distingue o exame criminológico do exame da personalidade
como a espécie do gênero. O
primeiro parte do binômio delito-delinqüente, numa interação de
causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica,
psicológica e social, como o reclamavam os pioneiros da
Criminologia. O
segundo consiste no inquérito sobre o agente para além do crime
cometido. Constitui tarefa exigida em todo o curso do procedimento
criminal e não apenas elemento característico da execução da pena
ou da medida de segurança. Diferem também quanto ao método esses
dois tipos de análise, sendo o exame de personalidade submetido a
esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológico,
funcional e psíquico, como recomendam os mais prestigiados
especialistas, entre eles DI TULLIO (Principi
di criminologia generale e clínica.
Roma: V. Ed., p.
213 e ss.).
35. O exame criminológico e o
dossiê de personalidade constituem pontos de conexão necessários
entre a Criminologia e o Direito Penal, particularmente sob as
perspectivas de causalidade e da prevenção do delito.
Para a progressão ao regime aberto, além de exigir que o preso
esteja trabalhando, ou comprove a possibilidade de fazê-lo
imediatamente (como espécie de prova de que está regenerado), a LEP
determina que ele apresente “pelos seus antecedentes ou pelo
resultado dos exames a que foi submetido, fundados indícios de que
irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade,
ao novo regime”.
Tratam-se, entretanto, de exigências tão flagrantemente
inconstitucionais que poucos as aplicam.
Outra inconstitucionalidade gritante relacionada à matéria, mas
quase não reconhecida pelos julgadores, está na definição dos
requisitos para o livramento condicional, feitas pelo código penal.
Demanda-se a comprovação de condições pessoais que façam
presumir que não voltará a delinquir.
Exatamente como desejavam os positivistas, as condições pessoais
afastam a presunção de inocência e inauguram a presunção de
culpa prévia dos selvagens que não responderam bem ao tratamento.
Saliente-se que lei posterior afastou a exigência dessas
avaliações,
modificando o artigo 112 da LEP e estabelecendo como requisitos para
a progressão de regime apenas a boa conduta e o tempo.
Isto não foi, contudo, suficiente para afastá-las da prática
cotidiana, pois contra os considerados inimigos e perigosos a
legalidade e as regras sobre os conflitos de normas no tempo são
relativizadas.
Os exames são realizados por psicólogos. Curiosamente, a sua
instância máxima afirma incessantemente que eles não devem ser
realizados. O Conselho Federal de Psicologia apresentou moção de
repúdio às avaliações criminológicas, justamente porque
amparadas em traços pessoalizados e baseados em busca de
periculosidade, que as tornariam violadoras dos Direitos Humanos.
A resposta dos juristas foi ignorá-lo e editar súmula vinculante
defendendo a sua prática.
O Conselho Federal de Psicologia, então, editou resolução 09/2010,
em que considerava a prática daquelas avaliações como violação
da ética profissional.
Psicólogos passaram a se recusar a fazer os laudos. A resposta dos
juristas não foi refletir se os exames teriam valor técnico ou
ético. Desta vez, também não se limitaram a ignorá-los.
Simplesmente, começaram a ameaçar os psicólogos de prisão por
desobediência e constrangeram o CFP a suspender e posteriormente
revogar aquela resolução.
Parece que o apego ao que Lombroso propôs como revolução
científica tem mais relação com a fé e a conveniência que com a
ciência.
A teoria psicanalítica, assim
como qualquer outra teoria psicológica que conheçamos, não nos
autoriza a fazer previsões sobre o comportamento ou sobre a saúde
ou a doença. Através da reconstrução do passado, tal como ele
ficou inscrito na memória e nas vivências peculiares de alguém,
pode-se lançar alguma luz sobre a natureza de seus conflitos atuais.
A psicanálise é sempre retrospectiva. O passado para elucidar o
presente. E o futuro continua pertencendo a Deus...
A persistência e a força dos conceitos de periculosidade e
personalidade criminosa são também bastante utilizadas para
preencher os vazios das expressões vagas que descrevem faltas e
deveres dos presos. Presume-se o erro de quem aparenta ser perigoso.
Deste modo, como desejavam os positivistas, é a resposta ao
tratamento que determina se uma pessoa pode ou não passar de um
regime mais grave para um mais brando. É a resposta ao tratamento
que determina se uma pessoa pode alcançar a liberdade condicional,
deixando o cárcere. Caso persistam problemas de personalidade, caso
não tenha se provado a ressocialização, caso não tenha havido a
cura, os métodos são aplicados por mais tempo, ou com mais rigor.
Não há dúvidas, Lombroso venceu.
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.
9. CONCLUSÃO.
Embora seja possível vislumbrar traços de todas as teorias
estudadas aqui, na Lei de Execução Penal, é com o positivismo que
ela demonstra maior sintonia. Em relação às outras, além de mais
escassa a formalização de suas ideias, os seus efeitos colaterais,
especialmente referentes à criminalização da pobreza, são muito
mais presentes que as suas essências.
A LEP, de fato, não é respeitada em alguns pontos pelos poderes
judiciário e executivo. É correto dizer, neste sentido, que ela não
vale nada. Mas, ainda que fosse integralmente cumprida, reproduziria
um modelo elitista, médico, etiológico. Para quem não concorda com
as teses lombrosianas, ela continuaria a não valer nada, mas agora
no sentido de que é nociva e atrasada.
Mais importante que clamar pelo respeito à LEP é pedir o respeito à
Constituição Federal, como limitadora da punição e controladora
da própria lei 7210/84. Além disto, é necessário buscar a
desconstrução dos mitos que giram em torno dela, como o do seu
caráter avançado e humano. Talvez a consciência da ideologia penal
vigorante no Brasil, com todas as consequências racistas e
opressoras que a acompanham, permita uma postura de enfrentamento
real do nosso sanguinário sistema penal.