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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Defensores x Estagiários de Itabuna.


Na última semana, algumas pessoas aprenderam, de modo distinto, o que é o verdadeiro futebol. Os santistas precisaram ir até o Japão, para enfrentar o Barcelona. Se fossem mais espertos, economizavam dinheiro e conheceriam uma cidade muito mais hospitaleira que Yokohama. Bastava fazer como os estagiários itabunenses e enfrentar o time os Defensores Públicos da 4ª Regional, na confraternização de fim de ano, para levar aquele chocolate inesquecível e didático. Depois, ainda teria churrasco e feijoada!

Ano que vem tem mais!

ps: Obrigado a todos (Defensores, estagiários e servidores), por, novamente, me acolherem tão bem!

ps2: Bora Defensoria, minha...

ps3: Ainda não foi autorizada a transmissão da partida em 3D, nos cinemas, mas foi mais ou menos assim:  



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Piratas, Crimes e Culturas.









Em tempos de mutirões e de produção em massa de petições e sentenças, é bom ver quando alguém consegue levar aos autos a complexidade social e política das questões debatidas judicialmente. Um exemplo é esta peça ,sem juridiquês e latinórios inúteis, formulada pelo mais que brilhante defensor público de Simões Filho-BA, Daniel Nicory.  É sobre algumas pessoas acusadas criminalmente por vender produtos piratas, na porta do fórum da cidade. Confira e amplie seus horizontes.


" EXMO(A). SR(A). DR(A). JUIZ(A) DE DIREITO DA VARA CRIMINAL, DO JÚRI, DE EXECUÇÃO PENAL E DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE SIMÕES FILHO



Ação Penal nº *******

A., N., C. E J. , já qualificadas, vem, pelo Defensor Público abaixo assinado, apresentar ALEGAÇÕES FINAIS, nos termos a seguir:

I – SÍNTESE DA DENÚNCIA

O Ministério Público denunciou as rés, por, supostamente, terem sido flagradas, no dia ******, nas proximidades do fórum deste município, expondo e vendendo mídias de DVDs e CDs produzidos em desconformidade com as normas de Direito Autoral, considerando que as mesmas estariam incursas no art. 184, § 2º, do Código Penal (fls. 02/03).

Em sede de alegações finais (fl. 84), o parquet ratificou a denúncia em todos os seus termos e pediu a condenação.

II – DA ATIPICIDADE DA CONDUTA PELA INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

A) DO AVANÇO DA TECNOLOGIA

A revolução tecnológica das últimas décadas do Século XX, ainda em curso no século XXI, possibilitou uma disseminação nunca antes vista da informação e do conteúdo artístico para todos os estratos sociais.
Deslocando o foco da análise para o início do século XX e até para o final do século XIX, a recente explosão da informática é só a etapa mais radical de um processo contínuo de aprimoramento do registro e reprodução da criação intelectual humana, que, levado extremo do regresso histórico, chega à invenção da imprensa por Gutenberg.

Todas essas etapas da evolução humana, impossíveis de sumariar numa petição de alegações finais, têm o mesmo sentido: de um lado, facilitar cada vez mais o acesso à cultura à população; de outro, viabilizar, para os autores, o proveito de suas criações, tanto no aspecto personalíssimo, do reconhecimento da autoria e da reputação dele decorrente, como no patrimonial, com a exploração econômica da obra.

O primeiro tipo de criação artística e intelectual a ser explorada como um modelo de negócio foi a literatura em sentido amplíssimo, a saber, a criação intelectual de textos escritos, das mais diversas finalidades.

O mercado editorial é uma instituição secular que envolve publicações periódicas (revistas e jornais) e pontuais (livros e compilações de artigos) de autoria individual ou coletiva, e movimenta bilhões de dólares por ano em todo o mundo.

Por outro lado, o século XX assistiu ao surgimento de outra indústria: a fonográfica, responsável pela produção de conteúdo audiovisual.

O registro da expressão audiovisual em mídias de fácil reprodução e grande durabilidade – do gramofone, ao vinil, ao CD, ao DVD, ao blu-ray, aos arquivos digitais de formato *mp3, *wma, *avi, entre outros – e a sua reprodução em canais de pequeno, médio e grande alcance – do cinema, ao rádio, à televisão, à internet e à telefonia móvel – provocaram uma revolução na dramaturgia e na música, com grande repercussão nos costumes e em todos os âmbitos da vida social.

Sem a pretensão de fazer qualquer conclusão de valor científico a respeito – mas apenas com uma cautelosa coleta de dados disponíveis na grande imprensa e com sua avaliação a partir dos critérios do senso comum – pode-se constatar a seguinte tendência:

O avanço da tecnologia transformou primeiro a literatura, e depois a dramaturgia e a música em grandes negócios, levando à estruturação de grandes conglomerados empresariais comerciais e industriais, que movimentam cifras enormes (por exemplo, somente o mercado fonográfico brasileiro teve um faturamento de R$ 358.432.000,00 – trezentos e cinquenta e oito milhões, quatrocentos e trinta e dois mil reais – durante o ano de 2009, de acordo com os dados da Associação Brasileira de Produtores de Discos, constantes publicação “Mercado Brasileiro de Música 2009”, disponível em: http://www.abpd.org.br/downloads/Final_Publicacao_09_2010_CB.pdf).

Essa mesma tecnologia, no entanto, facilitou enormemente a reprodução não autorizada dos bens culturais, com os aparelhos de captação e reprodução de textos e de conteúdo audiovisual como máquinas xerocopiadoras, scanners,  impressoras, gravadores de CDs e DVDs, programas de extração e conversão de mídia digital e espaços virtuais de compartilhamento de arquivos.

Compreensivelmente, os sindicatos patronais das empresas do mercado editorial e fonográfico sempre se opuseram fortemente a essa parte da revolução tecnológica – a que viabiliza a reprodução não autorizada de conteúdo – que levou ao consenso de que a “pirataria” é um mal a ser combatido internacionalmente em razão da sua possível lesividade ao interesse dos detentores de direitos autorais.

Embora a Constituição Brasileira reconheça e proteja os direitos autorais e eleja a livre iniciativa econômica como princípio da organização social, o interesse da indústria fonográfica e editorial não é o único a ser levado em conta quando se analisa o fenômeno social da pirataria.

Ao lado do legítimo interesse dos detentores de direitos autorais – autores e empresários do setor editorial e fonográfico – está também o interesse transindividual no acesso aos bens culturais.

A reprodução não autorizada de material fonográfico, independentemente de quaisquer outras ponderações, vem atendendo um interesse social incontestável: o acesso a bens de cultura para as camadas desprivilegiadas da população brasileira.

Apenas para exemplificar com um dos DVDs apreendidos na abordagem policial que resultou na presente ação penal, tem-se que, segundo o interrogatório das rés (fls. 65/72), o valor médio de revenda ao público final era de R$ 3,00 (três reais).

Por outro lado, o preço de face, no mercado regular, do DVD “Os Mercenários”, filme estrelado por Sylvester Stallone, relacionado no laudo pericial de fl. 79/82, é de R$ 34,90 (trinta e quatro reais e noventa centavos), cf. Consulta ao sítio comparativo de preços Buscapé, doc. 1).

Não se quer dizer que a indústria fonográfica é capaz de competir, em preços, com o mercado paralelo; por outro lado, o fato de um produto pirata custar menos de 10% do valor do bem cultural original, considerando que  ele também passa por uma cadeia de produção e distribuição, com lucro em cada etapa, demonstra que o modelo de negócios da indústria fonográfica, tal como hoje está, é tão violadora de direitos quanto a pirataria: os vendedores de produtos piratas atingem direitos de autor na mesma medida em que a indústria fonográfica, no atual modelo, viola o direito de acesso à cultura e inviabiliza as políticas de democratização dos bens culturais.

A seguir, demonstrar-se-á que o fenômeno social da pirataria não é um problema propriamente criminal, mas um caso típico de colisão de direitos fundamentais a ser resolvido pela técnica da ponderação de interesses.

B) DA PONDERAÇÃO DE INTERESSES ENTRE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS AUTORAIS E A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À CULTURA

Quando se discute a pirataria, é comum observar apenas o seu lado negativo, ou seja, a violação, que ela provoca, aos direitos de autor e os que lhe são conexos, protegidos pelos seguintes incisos do art. 5º da Constituição Federal:

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; Citado por 316

XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; Citado por 36

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; .

No entanto, nunca se menciona o seu aspecto positivo: a ampla democratização do acesso aos bens culturais, que é um dos objetivos explícitos da Constituição Brasileira no que diz respeito à cultura.

Nesse sentido, leia-se o art. 215 da CF/88:

Seção II
DA CULTURA

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005).

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

II produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

IV democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

V valorização da diversidade étnica e regional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

Na medida em que um mesmo fenômeno social – a pirataria - viola um direito  - direitos patrimoniais de autor - para garantir outro de mesma relevância constitucional  - acesso popular à cultura – o seu enquadramento jurídico-penal é uma simplificação injustificável da discussão, que só levaria a um tratamento jurídico lógico – a criminalização, também, da conduta dos empresários da indústria fonográfica e editorial pela cobrança de preços abusivos, nos termos do art. 4º, VII, da Lei 8.078/90.

Como nenhuma das soluções criminais é adequada, do ponto de vista social, é preciso chegar a um equilíbrio que permita a convivência harmoniosa e equilibrada desses dois direitos fundamentais.

Cumpre observar que a pirataria da indústria fonográfica é diferente, por exemplo, do plágio e da espionagem industrial, eis que os piratas não violam os direitos morais de autor, visto que reconhecem a sua autoria e, via de regra, respeitam a integridade da obra, até porque isso é uma condição necessária para a própria atratividade do seu produto no mercado paralelo.

A conduta dos piratas viola tão somente os direitos patrimoniais de autor, que são importantes, é certo, mas não ilimitados, eis que se submetem a uma função social, que é, no caso, claramente pautada pelo objetivo de democratização do acesso à cultura.

É preciso registrar que as rés nesse processo são apenas a ponta inferior nas redes fluidas de distribuição de produtos piratas, constituindo peças de reposição barata dessa “indústria”, nem sequer conhecendo os verdadeiros distribuidores de grande escala que, por sua atividade comercial de grande alcance, precisariam ser punidos especialmente por sua relação com o contrabando, pela evasão tributária de grande monta e pela violação de direitos trabalhistas dos pequenos vendedores.

Não é demasiado lembrar que até mesmo o Estado, é certo que de forma excepcional, regulamentada e atendendo ao interesse público, viola direitos de autor, com a quebra de patentes para a produção de medicamentos genéricos. Isso ocorre porque os direitos autorais não são absolutos, como nenhum direito o é, e, no caso da pirataria, confrontam-se com outro direito de igual relevância – o direito de acesso à cultura.

Sendo assim, não se pode fazer incidir o Direito Penal sobre a conduta de pessoas envolvidas num prática social de grande aceitação, de grande ocorrência , que, apesar de lesivo a um tipo de direito reconhecido – o direito de autor – é extremamente benéfico para outro direito de igual hierarquia – o direito de acesso à cultura.

Na presente petição, não se pretende definir um modelo ideal para equilibrar os interesses contrapostos em face desse fenômeno, mas apenas demostrar que a complexidade jurídica do problema deve ser resolvida por outras esferas, e não a do Direito Penal, dada a sua natureza de proteção fragmentária e subsidiária de bens jurídicos.
C) DA APLICAÇÃO, EM SEDE DE DIREITO PENAL, DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

Em razão da discussão desenvolvida acima, começou-se a cogitar, na doutrina, uma solução viável dentro da dogmática penal para o fenômeno social da pirataria.

Como foi dito acima, a venda varejista de bens culturais reproduzidos sem a autorização dos autores não é um problema propriamente penal, mas de colisão de direitos fundamentais de alta densidade.

Por outro lado, é fato notório e que, portanto, independe de prova, que a sociedade aceita a prática da compra e venda de produtos piratas, realizando-a amplamente em todos os espaços, até mesmo na frente do fórum, ondem as rés foram abordadas pela polícia.

A venda de produtos piratas é, também, um meio de vida para pessoas excluídas do mercado de trabalho formal, por diversos motivos, e que certamente é muito menos lesiva do que o tráfico de entorpecentes ou de armas.

Assim, sendo cabe a incidência do princípio da adequação social como causa supralegal de exclusão da tipicidade penal.

O que houve, em verdade, no caso da pirataria, foi um verdadeiro deslocamento social do problema, antes afeito à esfera policial e judicial, para outros campos.

É fato notório que os produtos audiovisuais piratas são encontrados em todos os bairros de todas as cidades, mesmo à vista de instituições públicas – onde houve a prisão das rés – e sendo consumidos por milhões de pessoas, muitas delas sem condição financeira para adquirir o produto original.

Lembrando que o salário mínimo em vigor é de R$ 545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais) e que o DVD usado no exemplo acima custa R$ 34,90 (trinta e quatro reais e noventa centavos), isso significa que um único produto audiovisual custa 6,4% (seis vírgula quatro porcento) do salário mínimo, sendo que existem muitos outros bens e serviços mais importantes do ponto de vista de sua essencialidade – alimentação, vestuário, transporte, moradia (locação ou própria).

Essa onerosidade excessiva do produto original, que exclui do mercado de consumo milhões de pessoas, levou a pirataria a ser aceita como forma de democratização – ainda que sem essa consciência do bem coletivo, mas do proveito individual por cada consumidor – do acesso à cultura.

No mesmo sentido, diversos Tribunais de Justiça no Brasil vêm reconhecendo a incidência do princípio, podendo ser transcrito, como paradigmático, o precedente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

VIOLACAO DE DIREITO AUTORAL - ACEITACAO SOCIAL DA CONDUTA - INTERPRETACAO PRAETER LEGE  - ABSOLVICAO
Cidadão denunciado porque tinha em depósito, para fins de venda a terceiros em uma feira, grande quantidade de CDs e DVDs "pirateados", em violação de direitos autorais; incidindo o Código Penal no artigo 184, §§ 1º e 2º. Sentença absolutória, baseada na insuficiência de provas. Apelação do MP de 1º grau, com respaldo do MP de 2º grau. Respeitosa discordância. Provas coligidas na etapa policial e na instrução que destroem a versão do réu no interrogatório em que tinha tais objetos de imagem e som, ou apenas de som, para utilização pessoal; o que até contraria lógica elementar. No entanto, razão do provimento de piso por outro fundamento. Fato notório de que em todo o Estado do Rio de Janeiro, e talvez em todo o Brasil, CDs e DVDs são vendidos em grandes quantidades, por ambulantes, e por preços módicos; sobretudo, devido ao alto custo para a grande maioria da população. Fato também notório de que pessoas, mesmo de condição social média, média para elevada, e elevada, através da Internet, obtém cópias de filmes e de obras musicais, relegando ao oblívio os ditos direitos de autor. Positivação de que o réu; operário de "lava-jato"; com baixíssima renda, a complementava com tal atividade, por certo ilícita, porém muito menos lesiva à sociedade do que o comércio de drogas ou a investida violenta ao patrimônio alheio. Rigor de o julgador estar atento à sofrida realidade social deste país, a qual assim continua; embora de pouco alterada nos últimos tempos. Tipicidade que existe no sentido próprio, mas que é afastada in casu pela aceitação social da mesma conduta; e que apenas cessará por medidas sólidas, de governantes e legisladores, combatendo pelas reais origens. Possibilidade de o Poder Judiciário atuar praeter lege, em casos como o vertente, evitando que o máximo do direito se converta no máximo da injustiça; assim evitando atitude farisaica. Princípios, na esteira, contidos no Preâmbulo e no corpo da Carta Republicana. Incidência, por analogia, do artigo 386, III, da Lei de Regência. Recurso que se desprovê.

Sendo assim, deve ser reconhecida a atipicidade material da conduta das acusadas, pela aplicação do princípio da adequação social.

II – DA ABSOLVIÇÃO PELO ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE DAS ACUSADAS ANTE A SUA PRECÁRIA SITUAÇÃO FINANCEIRA.

Ainda que Vossa Excelência não considere cabível a aplicação do princípio da adequação social, no que não crê a defesa e, por isso, considere típica a conduta das acusadas, deve observar que a mesma não é antijurídica, em razão da ocorrência da causa de justificação do estado de necessidade, prevista no art. 23, I, e no art. 24, ambos do Código Penal.

Segundo o referido art. 24:

“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se” 

Os requisitos são: a) a atualidade do perigo sobre o bem jurídico preservado pela conduta justificada; b) a proporcionalidade entre o bem sacrificado pela conduta lesiva e o bem preservado por essa mesma conduta; c) a não provocação do perigo pelo agente que alega a necessidade.

Para observar o preenchimento de todos os requisitos, passar-se-á a analisar a situação de cada ré individualmente:

A) A.

A acusada A. declarou em seu interrogatório (fl. 68) que:

“com a venda dos CDs e DVDs é que consigo dinheiro para sustentar minha filha”.

Essa declaração é corroborada pelas testemunhas, tanto de acusação como de defesa, nos seguintes termos:

A testemunha M., arrolada na denúncia, disse (fl. 53):

“que as acusadas estavam desempregadas à época do fato; que a venda das mídias era a sua forma de conseguir o próprio sustento; que elas tentavam conseguir outro trabalho, mas não tinham oportunidade; que pelo que sabe apenas a acusada A. tem uma filha”.

No mesmo sentido, a testemunha J., apontada pela defesa, afirmou (fl. 55):

“que conhece a denunciada A. desde “garotinha”; que a conhece do bairro Ilha de São João, onde ambos residem; que desde que o depoente chegou ao bairro, a ré trabalhava com o pai, na roça, cultivando aipim e banana; que o pai da denunciada faleceu há alguns anos; que mesmo depois do falecimento do pai a acusada continuou trabalhando na roça e chegou a vender aipim na Feira de São Joaquim; que a ré tem uma filha, cuja idade o depoente não sabe informar, mas acha que ela tem quatorze ou quinze anos; que com o passar do tempo o trabalho na roça não foi mais suficiente para o sustento da ré e da sua filha; que não sabe se a ré chegou a procurar ou conseguir trabalho em outro ramo; que soube que a acusada foi presa porque estava vendendo CD e DVD; que a acusada não tinha ninguém que pudesse ajuda-la a pagar as suas próprias contas, nem renda ou patrimônio; que acredita que a ré vendia CD's para sobreviver”.

Cumpre registrar, ainda, que, à época do fato, a denunciada A.  estava com as suas operações de crédito restringidas por uma inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito - SPC, no valor de R$ 101,36 (cento e um reais e trinta e seis centavos), feita pelas Lojas Riachuelho, em 01/12/2007 (cf. Resultado da Consuta SPC Super PF, doc. 2).

Essa inscrição demostra que a acusada não conseguiu adimplir um débito pequeno relacionado a uma necessidade básica – vestuário – e ficou, portanto, com o “nome sujo” por quase quatro anos, tendo dificuldades de acesso ao mercado de crédito para várias finalidades, inclusive para a obtenção de oportunidades de sustento lícito, tais como a venda autorizada, como autônoma, de produtos, bem como para a obtenção de empregos, visto que, embora se saiba que é proibida a consulta ao serviços de proteção ao crédito por empregadores, essa é uma prática lamentavelmente realizada, de forma clandestina, por muitas empresas.

Com isso, vê-se que todos os requisitos do estado de necessidade estão preenchidos: a) atualidade do perigo – desemprego e inscrição em serviço de proteção ao crédito, em razão de débito contraído para satisfazer necessidade básica; b) proporcionalidade entre o direito preservado e o direito sacrificado – a subsistência da acusada e de sua filha adolescente, versus o proveito econômico dos direitos de autor; c) impossibilidade de evitar o perigo de outro modo – a acusada não tem nenhum ente familiar ou amigo capaz de ajudá-la com o sustento e a restrição creditícia inviabiliza a obtenção de outras oportunidades de trabalho e emprego.

B) N.

A acusada N. declarou em seu interrogatório (fls. 65/66) que:

“antes eu vendia calcinhas, mas como não conseguia mais mercadorias passei necessidades por quatro meses, então resolvi vender CDs e DVDs PIRATEADOS; que atualmente eu estou com o nome sujo em bancos de dados de SPC e SERASA em razão do período de dificuldade que eu passei”.

Essa declaração é corroborada pelas testemunhas, tanto de acusação como de defesa, nos seguintes termos:

A testemunha M., arrolada na denúncia, disse (fl. 53):

“que as acusadas estavam desempregadas à época do fato; que a venda das mídias era a sua forma de conseguir o próprio sustento; que elas tentavam conseguir outro trabalho, mas não tinham oportunidade”.

No mesmo sentido, a testemunha V., apontada pela defesa, afirmou (fl. 73):

“que conheço N. há um ano; que ela vendia calcinhas primeiro, depois passou a vender DVDs para sobreviver; que atualmente não sei com que ela está trabalhando.

Com isso, vê-se que todos os requisitos do estado de necessidade estão preenchidos: a) atualidade do perigo – desemprego e inscrição em serviço de proteção ao crédito; b) proporcionalidade entre o direito preservado e o direito sacrificado – a subsistência da acusada versus o proveito econômico dos direitos de autor; c) impossibilidade de evitar o perigo de outro modo – a acusada não tem nenhum ente familiar ou amigo capaz de ajudá-la com o sustento e a restrição creditícia inviabiliza a obtenção de outras oportunidades de trabalho e emprego.

C) C.

A acusada C. declarou em seu interrogatório (fls. 69/70) que:

“que antes de vender CDs e DVDs pirateados eu era promotora de vendas de cartões de crédito do Itaú, mas a empresa faliu e eu fui demitida; que atualmente meu nome está inscrito no SERASA; que as negativações foram por inadimplência aos fornecedores a AVON e Natura e que eu deixei de pagar em razão da inadimplência dos meus clientes; que atualmente estou desempregada”.

Essa declaração é corroborada pelas testemunhas, tanto de acusação como de defesa, nos seguintes termos:

A testemunha M., arrolada na denúncia, disse (fl. 53):

“que as acusadas estavam desempregadas à época do fato; que a venda das mídias era a sua forma de conseguir o próprio sustento; que elas tentavam conseguir outro trabalho, mas não tinham oportunidade”.

No mesmo sentido, a testemunha J., apontada pela defesa, afirmou (fl. 54):

“que não estava no momento em que a acusada C. foi presa; que conhece a referida acusada há cerca de cinco anos; que conhece a ré do bairro da Estrada de Candeias, sendo sua amiga; que quando conheceu a acusada, ela trabalhava fazendo cartões de crédito para o banco Itaú; que perdeu esse emprego, não sabendo a depoente precisar a data em que isso ocorreu; que desde então, apesar de ter procurado não conseguiu novo emprego; que estava desempregada na data da prisão; que ela mora com um companheiro; que não sabe informar se ela ajuda nas despesas da casa, mas sabe dizer que ela vendia CD's por necessidade“.

Cumpre registrar, ainda, que, à época do fato, a denunciada C.  estava com as suas operações de crédito restringidas por diversas inscrições no Serviço de Proteção ao Crédito - SPC, segundo consulta feita em 13/05/2011, cujo extrato foi apresentado por ocasião da audiência de instrução, nos seguintes termos: (fl. 62):

Data do Atraso
Credor
Débito
Data da inscrição
15/09/2006
Tim Celular S/A
R$ 35,00
11/04/2008
08/12/2006
Natura Cosméticos S/A
R$ 299,92
17/02/2007
08/12/2006
De Millus
R$ 277,75
08/10/2009
13/12/2006
Natura Cosméticos S/A
R$ 395,97
17/02/2007
14/12/2006
Losango Prom. Vendas. Ltda.
R$ 89,44
23/02/2007
16/12/2006
Losango Prom. Vendas. Ltda.
R$ 69,74
24/02/2007
22/02/2008
AVON Cosméticos Ltda.
R$ 96,46
13/05/2008
01/04/2008
Banco Ibi S/A
R$ 339,93
03/05/2008
01/04/2008
Banco Ibi S/A
R$ 219,36
03/05/2008
01/04/2008
Banco Ibi S/A
R$ 224,09
03/05/2008

TOTAL DO DÉBITO
R$ 2.047,66



Essas inscrições demostram que a acusada, exceto quanto à pequena dívida de telefonia celular inscrita posteriormente, não conseguiu adimplir débito vultosos, para a sua renda, relacionadas ao seu trabalho como vendedora autônoma e ficou, portanto, com o “nome sujo” por quase quatro anos, tendo dificuldades de acesso ao mercado de crédito para várias finalidades, inclusive para a obtenção de oportunidades de sustento lícito, tais como a venda autorizada, como autônoma, de produtos, bem como para a obtenção de empregos, visto que, embora se saiba que é proibida a consulta ao serviços de proteção ao crédito por empregadores, essa é uma prática lamentavelmente realizada, de forma clandestina, por muitas empresas.

Observe-se que a “falência” da autora se deu em dezembro de 2006, quando a mesma deixou de adimplir cinco débitos com fornecedores de produtos, contraídos em função das boas perspectivas de vendas no período natalino, ficando impossibilitada de honrar os compromissos, eis que, como dito no interrogatório, a ré fora prejudicada pela inadimplência das consumidoras finais.
Numa segunda oportunidade, em abril de 2008, a acusada mudou de fornecedora de produtos e tentou obter dinheiro com uma financeira, mas novamente a sua atividade foi mal sucedida e ela acumulou um total em débitos de R$ 2.047,66 (dois mil e quarenta e sete reais e sessenta e seis centavos).

Com isso, vê-se que todos os requisitos do estado de necessidade estão preenchidos: a) atualidade do perigo – desemprego e inscrição em serviço de proteção ao crédito, em razão de débito relacionado com o seu trabalho de vendedora autônoma; b) proporcionalidade entre o direito preservado e o direito sacrificado – a subsistência da acusada versus o proveito econômico dos direitos de autor; c) impossibilidade de evitar o perigo de outro modo – a acusada não tem nenhum ente familiar ou amigo capaz de ajudá-la com o sustento e a restrição creditícia inviabiliza a obtenção de outras oportunidades de trabalho e emprego.

D) J.

A acusada J. declarou em seu interrogatório (fls. 71/72) que:

“antes eu vendia calcinhas e animava festa infantil; que também já trabalhei como manicure atividade que atualmente voltei a exercer; que parei de trabalhar como manicure, pois sentia muita dor na coluna e deixei de vender calcinhas em razão da inadimplência dos clientes; que peguei dinheiro emprestado para comprar as calcinhas. ”.

Essa declaração é corroborada pelas testemunhas, tanto de acusação como de defesa, nos seguintes termos:

A testemunha M., arrolada na denúncia, disse (fl. 53):

“que as acusadas estavam desempregadas à época do fato; que a venda das mídias era a sua forma de conseguir o próprio sustento; que elas tentavam conseguir outro trabalho, mas não tinham oportunidade”.

No mesmo sentido, a testemunha E., apontada pela defesa, afirmou (fl. 74):

“que conheço J. desde que ela era criança, pois estudei com sua tia; que ela já trabalhou como babá, vendendo calcinhas e depois vendendo DVDs, mas nunca com carteira assinada; que depois da sua prisão ela voltou a trabalhar como ambulante vendendo calcinhas; que eu saiba os DVDs que ela vendia não eram originais; que eu acredito que ela vendida DVDs pirata por necessidade.

Com isso, vê-se que todos os requisitos do estado de necessidade estão preenchidos: a) atualidade do perigo – desemprego e inscrição em serviço de proteção ao crédito; b) proporcionalidade entre o direito preservado e o direito sacrificado – a subsistência da acusada versus o proveito econômico dos direitos de autor; c) impossibilidade de evitar o perigo de outro modo – a acusada não tem nenhum ente familiar ou amigo capaz de ajudá-la com o sustento e a restrição creditícia inviabiliza a obtenção de outras oportunidades de trabalho e emprego.

III – DAS CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES

A)   DA CONFISSÃO

Em seu interrogatório (fls. 46/47), o acusado confessou espontaneamente a prática de infração, fazendo jus, portanto, ao reconhecimento da atenuante obrigatória do art. 65, III, d, do Código Penal.

B) IDADE DA RÉ N. NA DATA DO FATO

Segundo a denúncia (fl. 02), o auto de prisão em flagrante (fl. 08), a Certidão do CEDEP (fl. 59) e o interrogatório judicial (fl. 65), acusada N nasceu em ****, tendo, portanto, na data do fato (06/08/2010), 20 (vinte) anos, 05 (cinco) meses e 11 (onze) dias, fazendo jus, portanto, ao reconhecimento da atenuante obrigatória do art. 65, I, do Código Penal.

IV – DA SUBSTITUIÇÃO POR PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS
 
Caso Vossa Excelência rejeite as teses da absolvição das rés, no que não acredita a defesa, é preciso observar que a pena privativa de liberdade eventualmente aplicada será igual ou inferior a quatro anos o que, nos termos do art. 44, I, do Código Penal, autoriza a sua substituição por duas penas restritivas de direitos.
 
 
De acordo com o princípio da individualização das penas, que é uma das concretizações do princípio da proporcionalidade no âmbito penal, deve-se analisar não só o fato criminoso, mas todas as circunstâncias relevantes anteriores ou posteriores a ele.
 
No caso concreto, as acusadas são primárias e têm bons antecedentes (cf. Certidões do CEDEP de fls. 57, 59 e 61 dos autos principais e fl. 06 do apenso nº 0005305-30.2010.805.0250), a conduta imputada não envolveu violência nem grave ameaça à pessoa e a lesão aos bens jurídicos – direitos de autor – foi contida pela prisão em flagrante e apreensão dos produtos piratas.
 
Desta forma, se a pena aplicada for igual ou inferior a 04 (quatro) anos, é perfeitamente cabível a sua conversão em pena restritiva de direitos, eis que, na espécie, não incide a vedação do art. 44, II, do Código Penal.
 
V – DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE

Com as reformas processuais penais de 2008, foi revogado expressamente o art. 594 do Código de Processo Penal (já revogado tacitamente desde o início da vigência da Constituição de 1988), que impunha severas restrições ao direito de recorrer em liberdade e, com a nova redação do art. 387, Parágrafo Único, estabeleceu-se um momento processual de avaliação obrigatória, pelo juiz, da pertinência da manutenção da prisão provisória.

Considerando que qualquer prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença só se justifica quando presente o periculum libertatis, o magistrado, ao proferi-la, decidirá se o réu, mesmo estando preso durante o processo, poderá ou não retomar a sua liberdade até o trânsito em julgado.

No caso concreto, não ficou demonstrado o risco à ordem pública, sendo que não há o menor indício de que o acusado integre organização criminosa ou que possa reiterar a prática das condutas, sendo que nenhuma dessas circunstâncias pode ser presumida.

Além disso, não há nenhum risco para a instrução criminal, eis que a prova de interesse da acusação já foi colhida. Sendo assim, não há motivo para o restabelecimento da segregação cautelar, já que as acusadas compareceram a todos atos do processo.

Ante o exposto, não demonstrada a persistência do periculum libertatis, deve ser mantida a liberdade das rés, para aguardar o trânsito em julgado da ação em liberdade, no momento processual previsto pelo art. 387, Parágrafo Único, do CPP.

VI – DO PEDIDO                                          

Ante o exposto, a defesa requer:

a)    seja julgada IMPROCEDENTE a inicial acusatória, e, por conseqüência, sejam ABSOLVIDAS as rés, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal, eis que o fato narrado não constitui infração penal, em razão da exclusão da tipicidade material pela incidência do princípio da adequação social;

b)    Subsidiariamente, caso o pedido da alínea a) não seja acolhido, seja julgada IMPROCEDENTE a inicial acusatória, e, por conseqüência, sejam ABSOLVIDAS as rés, nos termos do art. 386, VI, do Código de Processo Penal, em razão da ocorrência da causa de justificação do estado de necessidade – excludente da ilicitude – consistente na precariedade da situação econômica das acusadas, que ameaçava a sua própria subsistência;

c)    subsidiariamente, caso os pedidos das alíneas a) e b) não sejam acolhidos, o reconhecimento das atenuantes da confissão, nos termos do art. 65, inciso III, alínea d, do Código Penal e da idade da acusada N. na data do fato, inferior a 21 (vinte e um) anos, nos termos do art. 65, I, do mesmo código.

d)    subsidiariamente, caso os pedidos das alíneas a) e b) não sejam acolhidos, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, nos termos do art. 44 do Código Penal

e)    o reconhecimento do direito de apelar em liberdade, nos termos do art. 387, Parágrafo Único, do Código de Processo Penal, visto que a manutenção da liberdade provisória do réu não trará nenhum prejuízo.

Nestes termos.
Pede deferimento.
Simões Filho, 23 de novembro de 2011.

DANIEL NICORY DO PRADO
Defensor Público "



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Mentiras, Monstros e Culpas

Uma menina de 12 anos chegou em casa, com uma mancha de sangue na calcinha. A mãe perguntou onde ela estivera. Com medo de revelar que tinha um namorado secreto, a criança falou que estava na casa do vizinho. A mãe já não gostava dele, então deduziu: o vizinho a estuprou. Relembrou de toda a história do homem, a partir deste fato, no que se chama de interpretação retrospectiva. Assim, cada vez que ele fez cafuné, ou deu um doce a uma criança, ele a tentava seduzir. Estava tudo tão claro! Como ela não percebera antes!

Foi feita a acusação e produzida uma única prova. A palavra da criança, orientada pela mãe. A suposta vítima se mudou e não soube mais nada do caso. Não viu, por exemplo, quando o rapaz foi condenado e preso. Não leu a sentença, baseada na premissa "científica" de que "criança não mente". Não soube que o julgador chamou, na sentença, aquele rapaz de monstro.

Dezesseis anos depois, a menina, já uma mulher, encontrou uma antiga conhecida. Na conversa, tomou conhecimento da pena. A culpa foi devastadora. Confessou tudo. Através de uma revisão criminal foi reconhecida a inocência. Tantos anos depois... Agora, quem vai reparar os anos perdidos? Quem vai reparar o estigma produzido pela acusação? Quem vai reparar o estigma produzido pela condenação? Quem vai reparar o sofrimento pela prisão? Quem vai reparar todo esse tempo convivendo com o castigo imerecido?

Vejam que a conduta da menina, que mentiu para esconder a travessura da mãe, é absoulutamente natural, como qualquer um, exceto o promotor que acusou, o juiz que julgou em 1º grau e os desembargadores que mantiveram a sentença, sabe. A conduta da mãe também não é estranha. Acreditou que a filha tinha sido violentada, imaginou a história e levou ela em frente.

O que não é natural é que a nossa sociedade clame tanto por mais penas e mais punições e que lamente e proteste contra todas as absolvições. O que é menos natural ainda é que pessoas que trabalham com processo penal não adotem uma postura de absoluta desconfiança em relação a todas as acusações. 

Quando você vê na TV alguém acusado de estupro, especialmente pedofilia, você, imagina que pode ser inocente ou, já conclui, e às vezes verbaliza, que se trata de um monstro? Se escolheu a segunda opção, você age como o juiz que deve estar chamando de monstro, agora. É bom refletir sobre isto.

Nesse caso, a menina teve coragem de confessar o que havia acontecido. Mas, você já pensou, quantas crianças não fizeram o mesmo? Você já pensou em quantas pessoas estão presas injustamente, pelo crime mais infamante que existe, porque os juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores partem do preconceito de que quem acusa fala a verdade, pois o outro é "o monstro"?

Dá pra entender porque a presunção de inocência é importante e não pode ser afastada, nem mesmo nos casos de violência sexual, ou precisa desenhar?
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Segue matéria sobre o fato, publicada no jornal Correio. Original aqui.

Homem condenado por falso estupro é absolvido depois de 16 anos

Sem ter feito absolutamente nada, ele foi acusado de estuprar uma vizinha de apenas 12 anos em 1994


Alexandre Lyrio e Victor Uchôa
mais@correio24horas.com.br
O técnico em telefonia Jonas da Silva Cruz, de 53 anos, morreu pela primeira vez em setembro de 1994. Sem ter feito absolutamente nada, ele foi  acusado de estuprar Lucineide Santos Souza, uma vizinha de apenas 12 anos.
Em 2008, Soró, como é conhecido, foi tirar um atestado de antecedentes criminais e acabou preso. Era sua segunda morte.  “Nunca me senti tão abalado. Fiquei à deriva”, diz. Sem que soubesse, ele havia sido condenado em 1995 pelo tal estupro, mas, por um motivo que permanece inexplicado, durante 13 anos nunca foi procurado pela Justiça.
Morador de Nova Sussuarana, ele perdeu emprego, perdeu a casa e muitas amizades. Perdeu tudo que havia conquistado, mas nunca desistiu de provar sua inocência.
Até que, no início deste ano, aquela adolescente que o acusou, hoje mulher feita, resolveu falar a verdade: não houve estupro e nem mesmo assédio. Ao juiz da Vara de Execuções Penais, Lucineide revelou que toda a história fora criada por sua mãe. E que Jonas sequer a tocou.

Livre da condenação por estupro, Jonas Cruz comemora início de uma nova vida
Na última sexta-feira, no julgamento do pedido de Revisão Criminal realizado no Pleno do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ), o réu finalmente foi “absolvido por insuficiência de provas”. “Posso dizer que hoje eu renasci”, resumiu.
primeira morte  A primeira morte de Soró se deu pela soma de uma raiva misteriosa e uma sentença judicial falha. Na tarde de 21 de setembro de 1994, Lucineide teve a primeira relação sexual de sua vida, com um namorado da mesma faixa etária.
No dia seguinte, sua mãe, Renilda Bispo dos Santos, percebeu um sangramento na calcinha da garota. “Lembro quando ela me levou para fazer um exame no IML. Quando voltamos, alguém, não lembro quem foi, disse que eu tinha ido na casa de Jonas. Foi aí que tudo começou. Minha mãe não sabia do meu namoro”, conta Lucineide, hoje com 29 anos. “Ela não gostava de Soró e eu nunca soube o motivo”.
O inquérito da 11ª Delegacia de Polícia foi encaminhado ao Ministério Público Estadual (MP), que denunciou Jonas por crime sexual. O acusado chegou a participar de duas audiências no Fórum Ruy Barbosa e achou que o caso havia sido arquivado.
Mas, em 5 de julho de 1995, frente a frente com o juiz, Lucineide, já com 13 anos, narrou a história inventada pela mãe como se fosse real: “Primeiro ele me deu um empurrão para dentro da casa. Eu estava de saia, calcinha e camisa. Ele mandou eu deitar, tirou minha roupa e meteu o ‘negócio’ dele devagar”. O depoimento, presente nos autos do processo, bastou para a decisão do juiz Marinaldo Bastos Figueiredo, da 10ª Vara Crime de Salvador. “Criança não mente”, argumentou o magistrado na sentença de Jonas.
Soró, que nem sabia que ainda estava sendo julgado, também não soube que foi condenado.
Segunda Morte
Somente em dezembro de 2008, quando ele tentava tirar um atestado de antecedentes criminais, a polícia percebeu que havia um mandado de prisão em aberto para aquele homem, detido na hora. “Meu mundo desabou. É uma dor insuportável”, lembra o senhor de voz grave e fala pausada, medindo cada palavra.
Soró foi enviado à Polinter, onde ficou preso por 10 meses. “Aquele é o pior lugar do mundo. Tem dias que os presos dormem uns por cima dos outros”, afirma.
Em seguida, Soró garante que nunca foi vítima de nenhuma violência sexual dentro da cadeia, algo comum em condenados por estupro.
“Tinha muita história dessa. Estuprador é tratado como lixo, não tem nenhum valor, mas Deus evitou que acontecesse comigo. Eu sempre disse que era inocente e acho que eles acreditaram”, emenda, contendo a emoção.
Em outubro de 2009, Jonas foi transferido para a Colônia Lafayete Coutinho, onde ficou até 23 de março de 2010, quando recebeu progressão de pena para o regime semiaberto, na Casa do Albergado e Egresso (CAE). Este ano, passou à prisão domiciliar.
Redenção
Desde então, sua luta é para andar de cabeça erguida. Atualmente, atua na triagem de correspondências dos Correios, emprego conseguido através de um programa de ressocialização da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos.
Sexta-feira, fora do Tribunal de Justiça, enfim inocentado do crime nunca cometido, Jonas respirou fundo, como se tomasse fôlego suficiente para o resto da vida. “Hoje sou um homem mais forte, pronto pra qualquer desafio”, disse, antes de se despedir.
‘Criança não mente’, disse juiz
Ao proferir a sentença que condenou Jonas Cruz, o magistrado Marinaldo Bastos Figueiredo, que morreu no ano passado, chegou a se perguntar: “Por que a vítima acusa o denunciado?”. Então, sem o suporte de testemunhas ou provas materiais, embasou sua decisão da seguinte maneira: “Estou convicto e certo de que a acusação da vítima é verdadeira, toda criança é sincera, não mentem e inexistem provados motivos ensejadores de acusação mentirosa”.
Na peça de pedido da Revisão Criminal produzida pelo defensor público Rafson Ximenes, a tese é contraposta com um trecho de O Juízo Moral da Criança, do teórico suíço Jean Piaget: “A criança, em virtude de seu egocentrismo inconsciente, é levada espontaneamente a transformar a verdade em função do seus desejos e ignorar o valor da veracidade”.
“Minha mãe criou a história, mas admito que peguei carona. Não quis dizer que tinha transado com meu namorado e me acomodei”, relata Lucineide. Para a desembargadora Ivete Caldas, relatora do processo de Revisão Criminal, a decisão foi falha porque levou em conta somente a versão da garota. “Nunca houve prova, somente a palavra da vítima. Para se condenar alguém é preciso ter certeza, e nesse caso a denúncia não tinha relevo”, resumiu.

Sozinho, Jonas acompanha atento a decisão dos desembargadores

Votos de liberdade
Na sessão de sexta-feira da Câmara Criminal, o desembargador Lourival Trindade chegou a solicitar que Lucineide Souza prestasse um novo depoimento de retratação, este contando com a presença de um representante do Ministério Público (MP).
O magistrado também pediu que a mãe dela voltasse a depor, sem saber que a mulher morreu há nove anos. A desembargadora Ivete Caldas, relatora do processo, argumentou que o depoimento que Lucineide prestou em março deste ano ocorreu em juízo e não foi contestado pelos promotores do MP.
Assim, seu voto pela procedência do  pedido de Revisão Criminal foi acompanhado pelos desembargadores Vilma Veiga, Nágila Brito, Jeferson de Assis e Abelardo de Carvalho. “A retratação foi uma prova nova totalmente relevante e é por isso que Jonas foi absolvido”, afirmou Caldas. Agora, para que o nome de Soró seja limpo, basta que o acórdão da Câmara Criminal chegue à Vara de Execuções Penais junto com o ofício que indica a nulidade da condenação de Jonas.
Maior erro da Justiça ocorreu em Pernambuco
No dia 22 de novembro, morreu em Recife o ex-mecânico Marcos Mariano da Silva, de 63 anos, vítima daquele que é apontado como o maior erro da Justiça da história do país. Ele ficou quase 20 anos preso porque tinha o mesmo nome de um assassino. Marcos morreu enquanto dormia, poucas horas depois de receber a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia determinado que o governo de Pernambuco pagasse o restante da indenização que ele ganhou por danos morais e materiais: R$ 2 milhões, além de uma pensão mensal de R$ 1.200.
Em 2008, Marcos já tinha recebido metade da indenização e usou o dinheiro para comprar casas para ele e familiares. O governo pernambucano recorreu para não ser orbigado a pagar a segunda parte, o que foi negado pelo STJ justamente no dia da morte do ex-mecânico.
Marcos tinha 28 anos quando foi preso pela primeira vez, em 1976, acusado de assassinato. Seis anos depois, o verdadeiro criminoso foi encontrado, e o homem inocente ganhou liberdade. Mas, em uma blitz, três anos mais tarde, foi preso novamente porque um policial o reconheceu e achou que ele estava foragido. Assim, foram mais 13 anos de reclusão.

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