Nos últimos 05 anos, a Defensoria Pública baiana tem obtido visível crescimento. Quando vemos os números isto parece mentira, pois pouco mais de 30 das 276 comarcas baianas possuem Defensores. Aliás, ainda que se redistribuíssem os Defensores, colocando apenas 1 por comarca, incluindo as grandes cidades, como Salvador, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Itabuna e Ilhéus, quase 1/3 do Estado continuaria sem assistência jurídica gratuita, nos moldes da Constituição. Existem apenas 198 profissionais. A escassez é grande mesmo. Desses 198, contudo, 100 ingressaram na instituição, depois de 2006. Em outras palavras, o quadro era muito pior.
Quanto menos profissionais existem, menos condições eles possuem de aprofundar as discussões jurídicas e mesmo de discutir o seu próprio papel, na sociedade e no processo. Exceto nas hipóteses de abnegação sobre-humana, quando um Defensor responde por diversas unidades judiciais, "competindo" com múltiplos promotores e juízes, é evidente que seu poder de construção de discursos é menor. O acúmulo de serviço dificulta e quase impossibilita ainda a inserção no meio acadêmico. Este fato, acompanhado da brutal discriminação remuneratória, gera uma imagem de Defensor inferiorizado em relação aos outros atores jurídicos.
Espera-se do Defensor que desempenhe com perfeição a função de "brasileiro cordial". Ele deveria se submeter aos consensos formados por advogados, juízes e promotores. Não caberia à Defensoria apresentar questionamentos. Ela deveria aprender com as interpretações feitas pelos outros e seguir a jurisprudência fielmente, mesmo que fosse apenas o entendimento do "seu juiz". Deveria também estar à disposição para tapar os buracos na pauta de audiências, sem se preocupar com prerrogativas e com a qualidade da atuação, afinal, precisaria confiar nas boas intenções dos outros. Em resumo, a sua função seria acatar e colaborar com a ordem, mesmo que contrária aos interesses que representa. Não há nada de estranho, afinal não é isto o que se espera também dos negros e pobres que ela representa?
O crescimento quantitativo, porém, tem possibilitado um crescimento qualitativo. Se por um lado, os que chegam , como tudo que é novo, oxigenam e provocam mudanças de pensamentos nos que já estavam, por outro, estes se libertam das amarras a que eram submetidos pela demanda excessiva e utilizam cada vez mais o seu potencial. Aos poucos, a instituição e os seus membros começam a notar isto e cresce a sua auto-estima. Morrem as crenças de que o Defensor precisa agradar o juiz e de que qualquer defesa serve, desde que garanta a "regularidade formal" do processo. Vai ruindo a falsa idéia de colaboração.
Coroando esta evolução, nos dias 14 e 15 de julho, a Defensoria baiana viveu um marco histórico, um grito simbólico de independência intelectual. Sob a coordenação de Elaina Rosas, realizou um curso sobre a nova lei 12.403/2011 (que instituiu as cautelares alternativas à prisão), onde 75% dos palestrantes eram os próprios Defensores. Isto significa, consciente ou inconscientemente, a compreensão de que a leitura que um Defensor fará de qualquer legislação será naturalmente diversa da que seria feita por um juiz, um promotor ou um advogado, pelo simples motivo de que pensam sob perspectivas diferentes. Um julga, um acusa, um defende quem pode pagar e outro defende quem não tem dinheiro e, muitas vezes, não tem emprego formal, residência fixa ou documentos. Todas estas atividades são conflitantes entre sí. É hipocrisia pregar o contrário.
Partindo desta premissa, o evento baiano rompeu com o histórico de chamar os outros para "ensinarem" aos Defensores o "entendimento correto" das normas, ou mesmo estimular a participação destes nos cursos alheios. Em fórmula bem pensada, discutiu-se internamente por um dia e meio, para, depois de balizadas convicções próprias, ouvir representantes significativos das outras categorias. Em outras palavras, primeiro se reflete autonomamente, depois abre-se a oportunidade para conhecer perspectivas diversas, o que é bem diferente de se colocar como mero recipiente passivo das conclusões externas.
O resultado foi entusiasmante, pela qualidade dos debates. Os defensores não se limitaram apenas ao positivismo, mas discutiram desde a política criminal, até a linguagem discriminatória que produzem ou reproduzem, no dia a dia. Questionou-se, finalmente, a real função da Defensoria no processo penal. A profundidade dos diálogos foi comprovada quando os 03 palestrantes externos, apesar de brilhantes, não trouxeram qualquer novidade significativa ao que já se tinha explanado. Não é um demérito das suas exposições, mas um mérito louvável do restante do encontro. Isto apenas comprovou que a Defensoria não precisa de ninguém que a oriente, mas sim entender que precisa se direcionar.
Contudo, assim como a Independência do Brasil não aconteceu no 07 de setembro, nem no 02 de julho, a independência dos Estados Unidos não se resume ao 04 de julho e a Revolução Francesa não ocorreu na queda da bastilha, a independência ideológica da Defensoria baiana está apenas começando. O próprio site da instituição divulgou matéria em que define da seguinte forma, o último momento do evento "emancipador": "Palestras de Juristas encerram curso sobre Nova Lei de Prisões promovido pela Esdep" ( http://www.defensoria.ba.gov.br/portal/index.php?site=1&modulo=eva_conteudo&co_cod=5882) . Sutilmente, sugere-se que, para a própria Defensoria, os palestrantes anteriores não eram "Juristas", mas ´"apenas" defensores ( gostaria de acreditar ser isto uma crítica aos preconceitos, elitismo e formalismo do meio jurídico, mas não consigo).
Ainda assim, estes dois dias deixarão dois legados: Por um lado, provaram de uma vez por todas que a Defensoria e os defensores precisa assumir papel de protagonismo e mesmo de combate, sem veneração e subserviência aos outros atores, seja por sua função específica que leva a compromissos com setores absolutamente diversos da sociedade, seja porque têm capacidade e preparo para tanto. Por outro lado, tanto os debates quanto a notícia da própria instituição provam que a luta pela valorização da Defensoria e dos Defensores não se dá apenas externamente, mas também, e talvez principalmente, dentro dela. Mas, é tudo questão de tempo. Quem sabe se a nomeação dos mais de 160 candidatos aprovados no último concurso não seja o passo decisivo, para consolidar a evolução? Quando chegarem, sugiro que não pensem apenas na independência, mas no que fazer com ela.
Excelente o artigo. Nossa maior dificuldade é sustentar a plausibilidade de nossas teses. A tendência à ironia e à inferiorização das pretensões de validade das teses por nós sustentadas é fruto de um pensamento tradicional, autoritário, conservador e verticalizado. O fortalecimento institucional passa por uma postura pessoal do Defensor Público no sentido de resistir cotidianamente. Paulatinamente vamos nivelando os pratos da balança... Sucesso aos colegas baianos!
ResponderExcluirRafson,
ResponderExcluirBelíssima análise, inclusive quanto à infeliz manchete do nosso site sobre o encerramento do encontro. Mas o saldo, como você bem descreveu, foi bastante positivo. Mérito de Elaina, da ESDEP e de todos os que corresponderam às expectativas da organização.
Para a felicidade de todos, a Defensoria tem dado outras provas de independência intelecutal. Você, por modéstia e por ser dono do blog, preferiu não citar o nosso "Redesenhando", obra coletiva de Execução Penal que se propõe "superar a lógica dos benefícios". O livro foi um enorme sucesso no mercado local (segundo a própria editora) e teve ótima aceitação dos Defensores de todo o Brasil.
Independência intelectual não é tanto uma conquista para a corporação que integramos, mas para o público que devemos defender. Se a boa Defensoria funciona como "voice of the voiceless" (voz dos que não têm voz), é preciso que ela fale por si, e por eles, em função de seus interesses e de seus próprios locais de fala, e não de nenhuma pauta importada de outro lugar.
Continue pensando e seguindo, afinal, você é uma das principais vozes dessa independência!
Parabéns pelo blog, por este texto, e principalmente por lutar por essa independência da defensoria em seu estado.
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