Em 2001, um escândalo político envolveu duas das figuras mais proeminentes da base de apoio do presidente Fernando Henrique Cardoso: Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda. Explodira a notícia de que o painel eletrônico em que se realizavam as votações da casa havia sido violado. Uma novela começava.
Eu era um estudante e, portanto, a política me interessava muito. Eu era estudante, na Bahia, então o envolvimento de ACM na história me interessava mais ainda. Mas eu era estudante de Direito, então vivia em uma espécie de redoma, isolado do resto da universidade. Talvez por isto, nem ouvira falar que haveria uma passeata no Campo Grande, no dia 10 de maio, pedindo a cassação do senador.
Depois, contudo, ficou impossível fugir dos acontecimentos. Houve uma repressão violenta aos poucos manifestantes. Todas as emissoras de TV noticiaram, menos a Globo, que não tinha imagens, já que a sua retransmissora local, a TV Bahia, pertence à família de ACM. A matriz ficou muito incomodada com a situação e o pito foi público. Um vexame! A divulgação da violência gerou revolta. Todos nós, jovens, sentimo-nos agredidos.
Em 16 de maio, então, reuniram-se cerca de 20.000 estudantes, eu inclusive, para uma grande marcha contra ACM. Nos carros de som, os alunos dividiam espaço com lideranças do movimento social e com políticos, especialmente do PT e do PC do B. Era engraçado ver esses dois partidos unidos ali, uma vez que no movimento estudantil são inimigos mortais. O PSOL ainda não existia.
Saímos da reitoria da UFBA, no bairro do Campo Grande, passaríamos pelo Vale do Canela e, através de um viaduto chegaríamos à Graça, onde morava o senador. A porta de entrada no bairro era a Faculdade de Direito. A grande sacada era que estaríamos sempre na ( ou tangenciando a) Universidade Federal, onde a Polícia Militar do Estado não pode entrar. Genial o planejamento! Na saída, muita alegria e orgulho. Fazíamos a história!
A felicidade foi trocada por um grande medo, assim que foi possível visualizar o Vale. Todos pararam por alguns momentos, ao notar que o viaduto estava repleto de policiais militares. Era a tropa de choque, já posicionada com seus escudos, cacetetes, bombas de gás e balas de borracha. Por alguma coincidência, os guardas estavam todos sem identificação na farda. Eu soltei três palavras cujas iniciais eram “p”, “q” e “p”. O plano era perfeito, exceto por um detalhe que passou despercebido. Quem disse que as instituições oficiais seguiriam a lei?
Mesmo assustados, fomos em frente, até ficar cara a cara com eles. Os mais corajosos na frente, os mais medrosos, como eu, atrás, desconfiados. Um dos mais ousados teria sido meu colega de turma, Antônio Teixeira. Segundo contam, o calouro de Direito teria mostrado um livro para os militares e gritado: “Tenho o direito fundamental de ir e vir! Está na Constituição! Respeitem isto aqui: é a Constituição! Olhem para isto, é a Constituição”. Diante da insistência, o PM respondeu: “ Rapaz, se você me mostrar esta p... de novo, eu vou descer a madeira!”
Apesar da tensão, pouco a pouco os estudantes se animaram. Afinal de contas, a polícia militar já estava errada em permanecer na área federal. Ela não faria nada além disto, pois seria muito escandaloso. Assim, algumas pessoas furaram o bloqueio e se dirigiram à Faculdade de Direito, que ficava no lado do viaduto guardado pelos policiais. Eu ia junto, mas fui contido pelo meu amigo André Fetal, que hoje é promotor. Ele sugeriu que aguardássemos mais um pouco.
Mal ele acabara de falar, provou-se que estava certo. A PM começou a atirar bombas e balas de borracha. Foi um pandemônio! Quem tinha passado se refugiou nas Faculdades de Direito e Administração. Nós que tínhamos ficado, nos refugiamos nas Faculdades de Medicina e Odontologia. Dentro dos prédios tínhamos certeza de que estávamos seguros. Arbitrariedade e abuso de poder tinham limite!
E não é que as bombas começaram a cair até dentro das faculdades? Os mais valentes ficaram para lutar. Eu e Fetal corremos, muito assustados. E corremos muito! No caminho, pedi para uma funcionária de uma escola de Balé guardar a minha Constituição, pois temia que se fosse encontrado por policiais com a Carta Magna, apanharia. Só depois, percebi o simbolismo da situação.
Após algum tempo, resolvemos voltar pelo outro lado. A situação estava mais calma, porém, encontramos uma cena apocalíptica na Faculdade de Direito. Vidros quebrados, sangue, estudantes feridos por balas de borracha e muita gente chorando.
Mais uma vez, foi manchete nacional. A situação de ACM se complicava ainda mais. No dia seguinte, nova manifestação. Desta vez, havia muito mais gente e a polícia não apresentou qualquer obstáculo. Passamos em frente à residência do senador, onde foi metaforicamente lavada a rua. Uma coisa tão boba, tão inofensiva, que concluí que aquela repressão foi a grande estupidez do grupo carlista. A violência foi uma catalizadora do movimento e da sua publicidade. Se tivessem respeitado a democracia, não teria crescido tanto.
Achando que tínhamos feito a nossa parte, acompanhamos avidamente as sessões da Comissão de Ética. Jeferson Perez se tornara um dos meus ídolos, pela forma como interrogava os indiciados. Sem saída, o senador renunciou, para evitar a cassação iminente. Um ano depois, todavia, houve nova eleição para o senado. Adivinhe quem foi o candidato mais votado na Bahia? Exatamente! ACM!Ficamos perplexos. Os estudantes correram riscos à toa. O que adiantou aquela luta toda, se ele voltou pelos braços do povo? Depois de tudo, perdemos?.
Mas, não era tão simples. Não notei na época, mas tínhamos vencido. Apesar da eleição, o Carlismo estava mortalmente ferido, era só questão de tempo. Os métodos truculentos se provaram obsoletos. Quatro anos depois, a Bahia elegeria um governador de oposição. Não foi só isto, a linha editorial dos veículos de comunicação da família dos Magalhães mudou. Não dava para sustentar a parcialidade escancarada. Até mesmo partido mudou de nome, para tentar se reinventar. É óbvio que nada disto se deveu exclusiva, ou principalmente àquela revolta, mas ela tinha sua parcela de responsabilidade.
Por outro lado, perdemos mesmo. Se a TV flagrar alguém quebrando o vidro de um carro, ninguém descansa até que aja punição. E quando a polícia militar invade área federal, bloqueia manifestação pacífica, joga bombas e atira em pessoas desarmadas, mesmo dentro da Universidade? Sabe o que aconteceu com o governador, comandante da PM? Depois, virou aliado do futuro governador de oposição! Ficou a lição. Não existe lado bom e lado mau, mas causas boas e causas ruins.
Pior que isto, perdemos porque a história está cada vez mais esquecida. Nem sei se os atuais estudantes de Direito, cuja faculdade foi bombardeada, conhecem os acontecimentos. E se conhecem, será que dão algum valor?
Eu ainda estudava e já crescia assustadoramente uma tendência a desqualificar os alunos que se interessavam por questões nacionais. Tudo que fugisse ao dia a dia acadêmico era considerado “politicagem”. Quem levantava as questões era chamado de “estudante profissional”, “vagabundo”, ou simplesmente “político”. A discussão se resumia em uma frase: “não quero saber do MST, quero saber do meu papel higiênico”. Será que ainda é assim?
Eu ainda estudava e já crescia assustadoramente uma tendência a desqualificar os alunos que se interessavam por questões nacionais. Tudo que fugisse ao dia a dia acadêmico era considerado “politicagem”. Quem levantava as questões era chamado de “estudante profissional”, “vagabundo”, ou simplesmente “político”. A discussão se resumia em uma frase: “não quero saber do MST, quero saber do meu papel higiênico”. Será que ainda é assim?
Lembrando aquela data, sinto um pouco de orgulho por ter feito alguma coisa. Tenho, porém, a necessidade de homenagear as pessoas que, ao contrário de mim, expuseram-se de verdade. Enfrentaram com bravura, não só a Polícia, mas a crítica que viria depois, por cometerem o pecado de se preocupar com algo além do próprio umbigo. Os cães ladraram, mas, graças a vocês, a caravana não parou.
Temos um exemplo a seguir. É a história. A política, partidária ou não, é essencial para a democracia. Definir que há um conflito entre o papel higiênico e a questão fundiária é uma posição política. Optar por gritar pelo papel e calar quanto aos brasileiros sem terra é uma decisão política. Aliás, importante, escolher qualquer das alternativas condutas também tem repercussões partidárias, servindo aos interesses de uns e contrariando os interesses de outros. Pensar que está acima da política é muita ingenuidade, ou muito cinismo.
Mais informações, aqui:
Rafson,
ResponderExcluirVez por outra passo aqui no seu blog. Também uma vez ou outra penso em comentar algo, mas acabo deixando para lá. Mas, nesse caso, vale o registro: parabéns pela lembrança e pelo post. No meu caso, foi diferente: estive na primeira passeata, não pude ir à segunda. Será que os atuais estudantes da Egrégia sabem, ao menos, a história do 16 de maio?
Abs de terras sergipanas,
Otávio
Grande Rafson,
ResponderExcluirEstava também nesta manifestação, foi um absurdo o que ocorreu, uma manifestação pacífica ser reprimida com tanta violência. Sequer corredor viário da cidade o era e em nada atrapalharia a rotina da cidade. Mas o tempo é o senhor da razão e os tempos são outros na Bahia.
Abraços do colega,
Fernando Vieira
Caro Rafson,
ResponderExcluirTambém me sinto extremamente orgulhoso por ter participado daquele movimento pela moralidade na política nacional.
Aquelas cenas permanecem vivas na minha memória e tenho certeza de que na memória de todos.
Um grande abraço ao alunos da Faculdade de Direito da Bahia que lá estavam em maio de 2001.
Saudações de terras paraibanas.
Tadeu Guedes
É Rafito. Naquele dia, literal e metaforicamente, a constituição não foi recuperada. Meus parabéns pelo blog e pelo relato. Um abraço,
ResponderExcluirFeto!!
Desta vez, o melhor dos comentários é que vieram de grandes amigos. Cada um de nós seguiu um caminho diferente, na carreira, mas creio que todos, com o fim de fazer o melhor.
ResponderExcluirum grande abraço, Otávio, Feto, Tadeu e Fernando.
Sem esquecer, a velha pergunta... e o baba?
Somos o que construímos - eis a história. A luts estudantl da Bahia contra ACM no episódio da violaçao do painel do Senado ... Participei ativamente de outras passeatas estudantis, estas na década de 1970, enormes, milhares de pessoas e duramente reprimidas pelas forças repressivas ... e seguimos adiante ... apesar de tudo ...
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