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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Sovina

Crônicas de um Juiz sem juízo: Marcelo Semer, o sovina. Original aqui.


As piores dificuldades são aquelas que nem sequer conhecemos







Sovina




Pretos, pobres e prostitutas.

Costuma-se dizer que os três Ps são os clientes preferenciais da justiça penal no Brasil.

Confesso que passei uma tarde assistindo a audiências no Criminal Courts Building em Nova York e a situação não me pareceu muito diferente por lá. Só vi negros e latinos sentados no banco dos réus.

Não vai aí nenhuma desonestidade atávica de classe ou racial. Tudo isso tem muito mais a ver com as prioridades da lei e a ordem que se escolhe defender, como a gente aprende um pouco na escola, e outro tanto no dia-a-dia. 

A propriedade é sem dúvida alguma a pedra de toque da tutela penal, e é mais protegida do que a liberdade, a saúde e, em muitos casos, do que a própria vida. E da fiscalização da polícia, difícil dizer que se distribua igualmente pela população. 

A forma como cada um encara e lida com essa pouca neutralidade do sistema muitas vezes define o padrão de comportamento de um juiz criminal, mais rigoroso ou, como a gente costuma dizer, mais liberal. As interpretações da lei dificilmente são separadas do juízo que fazemos dela ou do prestígio que conferimos aos princípios humanitários. 

Mas o certo é que todos nós nos acostumamos, uns mais outros menos, a lidar com um público preponderantemente carente e isso tem lá suas consequências.

Poucos dos nossos acusados chegaram a completar o ensino fundamental. Falam mal e compreendem menos ainda. Sem paciência, a comunicação é sempre deficitária. Quando pergunto a um réu se ele entendeu o que eu disse, nove entre dez respondem “entendeu”, sem que isso signifique muito mais do que um erro de concordância. 

Presos são sempre trazidos aos fóruns com o uniforme da penitenciária e os indefectíveis chinelos de dedo. Mas, se soltos, não lhe são permitidos chegar às audiências de forma tão precária. Existe toda uma patrulha do pudor que impede o ingresso nos fóruns de chinelos, bermudas e outros adereços assim casuais, reputados como ‘desrespeitosos’. 

Eu me lembro de um réu que passou a audiência toda com a mão no peito, o que me afligia enormemente. Ao final, indaguei a ele se estava com algum incômodo e se não era o caso, então, de fazer uma consulta no serviço médico. Ele me disse que estava se sentindo muito bem e respondeu coberto de vergonha:

-Minha camisa falta dois botões, doutor, sua secretária disse que não podia entrar com ela aberta.

Um mecânico, vindo direto do trabalho, recusou-se terminantemente a sentar na cadeira da sala de audiências, porque estava sujo de graxa e tinha medo de ser responsabilizado por estragá-la. Só concordou depois que a cobrimos de papel, e assim mesmo um tanto quanto ressabiado.

Mas as piores dificuldades são aquelas que nem sequer conhecemos. 

A mais cruel é supor que o réu pode se ausentar de uma audiência, que muitas vezes provoca até sua prisão, por falta de dinheiro para o transporte ao Fórum. Quem vai nos dizer isso?

Fui apresentado ao problema por Orlando. 

Um réu acabrunhado que negava o furto que lhe era imputado com uma dificuldade enorme de comunicação. Narrava como fora “abortado” pela polícia, levado à delegacia só porque tinha “passagens” e clamava de forma meio tosca pela inocência, implorando, enfim, para não ser condenado. 

Após o encerramento da audiência, ele já estava na porta da sala, quando resolveu retornar. Olhou para nós por alguns momentos sem nada dizer, como se avaliasse a conveniência de sua pretensão, mas acabou soltando, sem jeito, seu pedido em forma de cobrança:

-E o dinheiro que me prometeram?

Eu não conseguia entender a que exatamente ele se referia, já que estava ali para responder a um processo, não para exigir qualquer crédito. Na situação em que veio, o máximo que podia querer era mesmo sair de mãos abanando, sem algemas.

Diante da incompreensão, demonstrada pela persistência do nosso silêncio, ele não teve outra alternativa, senão se explicar:

-O moço que me chamou para essa audiência. Eu disse a ele que estava sem dinheiro pra vir. Ele me deu a passagem de ida e falou que eu ia receber aqui a passagem de volta.

Foi só nesse momento que eu soube da prática discreta do solidário oficial de justiça, que era quem primeiro tinha contato com réus e testemunhas. Intimando-os em seu próprio habitat, ele devia ter condições de saber que aquilo não era apenas uma desculpa. Só achei estranho que não nos tivesse preparado para essa inusitada situação.

Eu perguntei ao réu quanto precisava para a condução, tirei uma nota de cinco reais e lhe entreguei. Ele ficou meio sem jeito de recebê-la diretamente de mim, mas agradeceu e se foi, para esperar em casa a sentença que viria em duas semanas.

O assunto foi o comentário do dia entre os funcionários, que se dividiram em um misto de respeito e pilhéria pelo oficial e mais ainda por mim.

Só no dia seguinte, o auxiliar judiciário, que tem mesa na porta da sala de audiências, percebeu que no fundo de sua gaveta havia um pequeno envelope com o nome do réu. Ele veio me trazer correndo e contou, displicentemente, que talvez tenha sido o oficial quem deixara, mas não lembrava muito bem.

Quando abri o envelope, estava lá uma nota de dez reais para ser entregue ao réu.

Fiquei com fama de sovina.

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