Observação prévia: Este texto é uma breve interrupção ao recesso do blog, motivada por outro, brilhante, que fez os dedos do blogueiro coçarem insistentemente.
Em 06 de setembro, o juiz Gerivaldo Neiva publicou excelente texto, intitulado "Como se começa de novo sem nunca ter começado antes" (leia aqui) criticando algumas bases ideológicas em que se sustenta o programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça. Apesar de concordar na essência com a maior parte do texto, tenho algumas divergências pontuais e gostaria de tocar em outros aspectos não aprofundados.
O projeto do CNJ pretende, em essência, diminuir a reincidência através da oferta de capacitação e emprego para os presos e os egressos. Parte de algumas premissas que refletem a nossa ética capitalista, tais como a de que o "trabalho dignifica o homem". Assim, prega que o crime e a reincidência se devem, pelo menos em grande parte, ao fato de que o autor (concreto ou futuro) não possui ocupação lícita. O presidente do CNJ e do STF, citado por Gerivaldo diz:
"O Estado e a sociedade organizada devem criar e fomentar políticas públicas que permitam meios para esse recomeço e, paralelamente, propiciem a conscientização daquele que errou, de modo que passe ele a entender qual sua função, seus deveres e direitos diante da coletividade na qual passará, novamente, a conviver.”
No discurso está nítida a idéia de que "aquele que errou" não entende a sua função, seus deveres e seus direitos diante da coletividade. No fundo, reitera o discurso do criminoso como pessoa inferior, estúpida. Se por um lado é óbvio que os que roubam ou vendem drogas sabem que isto é ilícito, por outro, não se esclarece a principal questão: afinal, qual é a função do pobre na sociedade?
A propaganda do programa veiculada no rádio, conta a história do personagem Pedro, um ex-detento que se torna pedreiro, graças ao CNJ. É uma ocupação considerada subalterna, sem praticamente nenhuma perspectiva de ascenção social. É assim também em relação aos vendedores de cachorro quente, às costureiras, aos garçons, etc, carreiras que dominam as capacitações. Parece, portanto, que a função do pobre na sociedade é simplesmente permanecer pobre.
É importante entender isto porque Gerivaldo demonstra no seu texto que 73% dos encarcerados estão lá por roubo, furto ou tráfico, crimes eminentemente econômicos praticados por pessoas pobres. Podemos imaginar que elas delinquem porque não sabem trabalhar como pedreiros ou porque não sabem que são proibidas de cometer crimes, como parece pensar o CNJ. Podemos também supor que transgridem as leis porque não se conformam em viver como pobres. Assim, talvez, para o CNJ, a função do pobre seja não só a de permanecer pobre, mas a de ser pobre e conformado.
Gerivaldo compara, então, o índice dos detentos que apenas "desenham o nome" com o índice de reincidência. Demonstra também que o esforço do judiciário por capacitar para o exercício de funções subalternas não é acompanhado de esforço semelhante para fornecer educação (só 08% dos internos estudam). Isto confirma que há clara idéia de conservação e conformação e não de libertação. Porém, parece levar à conclusão de que educação formal acabaria com os crimes como meio de subsistência.
É incorreta a associação de falta de educação à criminalidade por algumas razões, das quais destaco duas. A primeira é que as pessoas muito bem educadas também praticam crimes e com muito mais frequência do que se imagina. Só não sofrem a perseguição penal (seletividade que não é enfrentada pelo CNJ). A segunda é que ainda que todos os presos obtivessem mestrados e doutorados, permaneceria a necessidade da existência de pedreiros, costureiras e garçons. Os novos ocupantes das funções menos valorizadas se conformariam com a falta de perspectivas?
Logo se compreende que os delitos que servem como atividade econômica de pobres continuarão a existir em grande quantidade, enquanto persistir a grande desigualdade social. O problema do crime não pode ser resolvido pelo direito penal. Nunca foi e nunca será. Programas como o Começar de Novo, embora bem intecionados e até desejáveis, podem ser úteis individual e circunstacialmente, mas não podem ser vistos como solução de nada mais amplo.
Ao invés de insistir em visões romanticas que lembram missões civilizatórias, deveríamos parar de bater a cabeça no muro, como diz Alexandre Morais da Rosa. Não adianta pretender educar ou capacitar as pessoas na prisão. Precisamos parar de gastar dinheiro e vidas em uma instituição fracassada. Vamos usar esse recursos para melhorar a vida de quem tem ocupações desvalorizadas e acabar com a desvalorização. Não basta oferecer um começo, tem que se oferecer um fim.
Observação póstuma: O blog volta ao recesso.
Perfeito. O problema é que o Direito Penal continua se expandindo, em boa parte por causa da mídia e de politicas "criminais" (penais) eleitoreiras. Isso aliado a desigualdade, penso que pode o CNJ fazer o que for, não vai mudar nosso quadro.
ResponderExcluir