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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Antes era mais fácil.



Houve um tempo em que as mulheres consideradas de família não votavam e nem trabalhavam. Pelo menos, não recebiam para trabalhar. Ficavam lá, nos afazeres domésticos, obedecendo a todas as ordens dos maridos. Não se queixavam nunca. Até porque se tentassem, certamente levariam umas bofetadas. Ou facadas. Ou tiros.  Pensando bem, esse tempo não houve. Ainda há! Tirando, óbvio, as proibições absolutas. Hoje, podem trabalhar, desde que ganhando menos, obedecendo o marido, sendo de família e cuidando dos afazeres domésticos. Em geral, os homens que impunham aquelas regras não imaginavam que estavam oprimindo as mulheres. Mas, é certo que estavam. Então, um dia, queimando sutiãs, elas criaram coragem, juntaram forças e começaram a reclamar.  Hoje, ainda não mudou muita coisa, mas elas estão tentando, com muita força. 

Ai... Antes, tudo parecia mais fácil...

Houve um tempo em que os negros eram escravizados. Sua cor era sinônimo de feiura e  xingamento. Diziam deles que não eram gente, mas sim uma espécie de macacos. Entravam pelos fundos e ficavam na cozinha. Seus cabelos eram chamados de ruins. Geralmente, os alvos alvejados pelos alvos não se queixavam. Até porque, quando tentavam, eram espancados, criminalizados e assassinados. Pensando bem, esse tempo negro (ou branco?) não houve. Ainda há, tirando a aceitação formal da escravidão. Em geral, aqueles que impunham as regras não imaginavam que estavam oprimindo os negros, mas estavam. Até que um dia, como se cantassem falando, as vítimas criaram coragem, juntaram forças e começaram a reclamar. Hoje, ainda não mudou muita coisa, mas eles estão tentando, com orgulho. 

Ai... antes, tudo parecia mais fácil... ( e claro).

Houve um tempo em que os homossexuais eram brutalmente perseguidos. Eram considerados pecadores, aberrações, vergonhas para a família, para o bairro, para a cidade e  para toda a humanidade. Eram obrigados a se esconder dentro de si mesmos e reprimir os seus desejos. Geralmente, não se queixavam. Até porque para se queixar, tinham que assumir sua condição  e, apenas por existir, eram também espancados, criminalizados e assassinados. Pensando bem, esse tempo não houve. Ainda há, embora agora falem em cura deles mesmos. Em geral, os héteros que impunham as regras não imaginavam que estavam oprimindo os homossexuais, mas estavam. Então, um dia, as vítimas criaram coragem, juntaram forças e começaram a reclamar. Hoje, ainda não mudou muita coisa, mas eles estão tentando, com alegria e saúde. 

Ai... Antes, tudo parecia mais fácil... ( mas cuidado com o "ai". Se ele for acompanhado de um gesto com a munheca, você estará em perigo). 

Houve um tempo em que as mulheres, os negros e os homossexuais, além dos nordestinos, dos pobres e das mulheres eram ridicularizados. Todos eram sinônimos de  xingamentos: mulherzinha, preto, viado, baiano, paraíba, favelado, miserável, etc. Mulherzinha preta ou nordestino viado, então... As piadas atacam os defeitos, logo, falar neles já era engraçado. Pensava-se que o pior defeito de cada negro era ser negro, de cada nordestino era ser nordestino, de cada homossexual era ser homossexual, de cada pobre era ser pobre e de cada mulher era ser o objeto de dominação do homem. 

Geralmente, os comediados não se queixavam. Até porque teriam que se queixar a vida toda e seriam chamados de chatos por isso. Estavam com medo,  mais preocupados em conquistar aceitação e, principalmente, em sobreviver, evitando espancamentos, cadeia, bofetadas, estupros e assassinatos. Pensando bem, esse tempo sem graça não houve.  Desgraçadamente, ainda há. Em geral, os comediantes e escritores não queriam ofender os oprimidos, mas, ofendiam-nos, mesmo quando adoráveis trapalhões. Então, um dia, as vítimas criaram coragem, juntaram forças e começaram a reclamar. Hoje, ainda não mudou muita coisa, mas eles estão tentando, com inteligência. 

Ai... Eu sei...  Antes, tudo parecia mais fácil. Mas, com força, orgulho, alegria e inteligência, os tempos mudaram. Somos capazes de entender que nem sempre o mais fácil é certo. Melhor ainda, somos aptos a superar e criar algo mais complexo que o mal banalizado. É verdade que não dá para exigir mudanças drásticas, nem condenar severamente, quem está no ocaso da vida e cresceu em outros tempos. Em tudo há contexto histórico, tudo bem. Sabemos que vocês fizeram coisas lindas também e não vamos deixar de admirá-las. Porém, quem está no auge da forma bem que poderia fazer a gentileza de evoluir. Deixem de preguiça... Afinal, nem crianças se orgulham de sair distribuindo respostas incorretas. Tem mais gente aqui. Viva!


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O uso de Presidenta e o uso da Intransigência



Há cerca de quatro anos, o Brasil se vê, vez ou outra, discutindo uma questão que parece gramatical. Existe variação de gênero para a palavra “presidente”? Isto se deve, como todos sabem, à ascensão de uma mulher ao topo do poder executivo. A autoridade declarou como gostaria de ser chamada e passou a adotar a forma desejada nos documentos oficiais. Houve estranhamento imediato e alguns veículos de comunicação, como o jornal Folha de São Paulo e a revista Veja, declararam solenemente que se recusavam a respeitar a vontade dela.

A resistência apareceu sob o argumento de preservação da língua. Para a linguística, trata-se de evidente bobagem. Todas as línguas mudam o tempo inteiro, inclusive a nossa, o que não significa perda de valor. O exemplo mais conhecido é o da transformação de “vossa mercê”, em você. Mas, eles são inúmeros. Sugiro a leitura, no original, da Carta de Pero Vaz de Caminha, ou de textos da década de 1950. Não falamos como nossos avós, que não falam como Caminha, que não falava como os avós dele, que não falavam o latim vulgar, usado por analfabetos, de onde surgiram o português, o italiano, o francês e o espanhol. Que pureza é esta que se defende?

Ainda que a expressão “presidenta” fosse uma novidade, não haveria motivo para tantas reclamações. Mas, o pior é que não é. Fala-se de dicionários do século XIX que já a utilizavam. Dois dos livros de gramática mais respeitados atualmente apontam a correção do termo, de maneira bastante interessante. Ambos, falando das normas apontam para o que está além delas. Luiz Antônio Sacconi1, tratando das principais dúvidas sobre gênero, escreve o seguinte.

“ À esposa de um presidente se dá o nome de primeira-dama. E ao marido de uma presidenta ou de uma primeira-ministra, que nome dar?

A língua não previu a situação em que um homem esteja na situação de marido de presidenta, primeira-ministra, governadora ou prefeita; daí porque não existe o termo masculino correspondente”.

Evanildo Bechara2, por sua vez, antes de apontar a palavra presidente como exemplo de termo variável, discorre sobre o gênero das profissões femininas.

“ A presença, cada vez mais justamente acentuada, da mulher nas atividades profissionais que até bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem tem exigido que as línguas - não só o português- adaptem o seu sistema gramatical a estas novas realidades”

Os dois livros citados, ambos com mais de 30 edições, indicam a razão fundamental do uso de “presidenta”. Trata-se de postura política para evidenciar o fato de que as mulheres estão vencendo séculos de opressão e assumindo postos antes inacessíveis. A opção pelo termo não é um mero capricho e muito menos autoritarismo. É uma tomada de posição. Não produz efeito apenas em relação à atual mandatária, mas a todas as mulheres. O termo presidente é tão notadamente relacionado ao masculino que não há heterônimo masculino para primeira-dama. Por isto, presidenta faz sentido e "presidento" não.

Assim, tendo em vista que a linguística não se opõe às modificações da língua, gramáticos respeitadíssimos não se opõem ao uso do termo e ele possui valor para a afirmação da emancipação feminina, se recusar a utilizar “presidenta” é, também, uma posição política. Não se trata, portanto, de gramática. Esta postura requer a tomada de algumas decisões, que envolvem ignorância em relação à linguística e à gramática, desrespeito à pessoa e insensibilidade às mulheres.

A ignorância em relação à linguística se encontra na obsessão pela imutabilidade. Sobre a gramática, está no desconhecimento sobre os debates e, logo, sobre as possibilidades de escolha. O desrespeito à pessoa ocorre quando alguém pede para ser chamado por um entre dois termos possíveis, que não possui nenhum teor ofensivo, mas opta-se, deliberadamente, por contrariá-la. A insensibilidade às mulheres acontece quando se fecha os olhos para a sua difícil luta por afirmação e decide-se atacá-la. A raiva contra o uso de "presidenta" transparece a colocação  da birra contra uma pessoa, ou contra um partido, acima de tudo isto. É fácil ver onde está o uso da intransigência. 

1 SACCONI, Luiz Antônio. Nossa gramática completa: teoria e prática. 31 ed. São Paulo: Nova Geração, 2011.

2 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2009.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Gritos e Harmonia.



O Brasil sempre teve índios. Em um certo tempo, passou a ter brancos. Depois, foram trazidos os pretos. Como o sangue é quente e a carne é fraca, aconteceram misturas, afinal, sempre houve homens e mulheres. Mas, também existiram sempre pessoas que gostavam do mesmo sexo, que gostavam do sexo oposto e que gostavam de qualquer sexo. Desde o início, havia pessoas com mais ou menos riquezas, mais ou menos poder. Logicamente, depois da chegada dos brancos isto aumentou. Todos sempre conviveram e ninguém discorda. Algo, porém, tem mudado.

Especialmente, desde o século passado, a cada dia, mais negros e índios reclamam de racismo. Mais mulheres reclamam de machismo. Mais homossexuais reclamam de homofobia. Mais pobres reclamam da desigualdade social. Além disto, alguns brancos apoiam as outras cores, alguns homens apoiam o outro gênero, alguns heterossexuais apoiam as outras orientações e alguns ricos apoiam a outra classe. Tem gente incomodada. Afirmam que quem está reclama está dividindo o país, jogando brasileiros contra brasileiros. É uma conclusão possível, desde que se acredite que antes das queixas, todos não apenas conviviam, mas, conviviam em harmonia.

A relação entre as coisas, a consciência delas e as palavras é complexa. É possível carregar por anos uma enfermidade sem saber da sua existência. Apenas depois de ter consciência dela, seremos capazes de nomeá-la e, principalmente, enfrentá-la. A nossa ignorância em relação à bactéria não ajudava a resolver o problema e nem evitava a morte que viria, mas evitava a angústia de encarar os fatos.Talvez, estejamos passando por isto. Quem nunca teve sensibilidade para enxergar o racismo, o machismo, a homofobia e as desigualdades está assustado por lhe apontarem a existência do mal, ou pior, por lhe apontarem como parte do mal.

A Copa do Mundo realizada no país, pode ilustrar essas condições. Os interessados em aproveitar o evento para namorar gringas sonhavam com as holandesas e não com as marfinenses ou as paraguaias. Apenas homens, aliás, podiam contar aos pais que desejavam conquistar o máximo de estrangeiras. Se mulheres dissessem o mesmo, haveria crise familiar. As ofensas cantadas nos estádios quase sempre envolviam o bumbum do alvo. Chamar alguém de heterossexual é xingamento? Quanto às classes, nem precisa dizer quem podia comprar ingressos.

Brancos sempre foram os belos. Pretos e índios sempre foram os presos, os agredidos e os mortos. Homens conquistam, mulheres são pegas, ou agredidas e mortas. Heterossexuais se orgulham, homossexuais se escondem para não serem agredidos ou mortos. Ricos vão para a Copa ver jogos, pobres vão para a Copa trabalhar, ou são presos, agredidos e mortos. Tudo está tão entranhado na nossa cultura, sendo transmitido de pai para filho há tantas gerações, que consegue parecer invisível. Esta capacidade só as torna as diferenças ainda mais cruéis. 

Reconhecer os próprios preconceitos e as consequências deles é o primeiro passo para enfrentá-los. Mas, não basta. É preciso combatê-los. Lutar contra o racismo, o machismo, a homofobia, a exploração não dividem nada. Nunca existiu harmonia nenhuma. O que houve foram séculos de silêncio e silenciamento. Caso fingir que as chagas não existem resolvesse algo, não haveria mais qualquer uma delas. Silêncio e silenciamento nunca contribuíram para evitar qualquer discriminação, mas apenas para encobrir o sangue que corria. Calar incentiva a conservação das diferenças. Gritar é o único modo de acabar com elas.



domingo, 6 de julho de 2014

A Visão do Urubu sobre a Copa do Boi.


É um absurdo o Brasil sediar a Copa! Não temos a mínima condição de realizar esse evento. O Brasil não tem educação, nem saúde. Vamos passar vergonha! Aposto que não construirão os estádios. Os aeroportos vão ser um caos, os turistas serão assaltados, estuprados, assassinados e estuprados de novo, durante os engarrafamentos. Será um fiasco. O que vão pensar de nós quando perceberem como os brasileiros são  ignorantes, incivilizados! Que país é esse? Que país é esse? A gente somos inútil!

Bando de vagabundos, parem de fechar as ruas! Tem que prender todo mundo. Por isto, sou a favor da pena de morte. Direitos humanos é para humanos direitos. Acabem com essa cracolândia! Ditadura gayzista! Racismo contra os brancos! Esses comunistas são responsáveis por esta anarquia! Mas, o Jabor mudou de ideia... Sem partidos! Sem partidos! O gigante acordou! Não são só vinte centavos! Vem pra rua! Vem pra rua! Fora corruptos! Tá de vermelho, tá de vermelho! Sai que agora é a gente! Fifa comunista! Não pode ter copa! É uma vergonha. Bando de ignorantes! Hipócritas! Fora médicos cubanos! Escravos! Escravos!

Oba! A Fifa começou a vender ingressos para a Copa! O preço está bom. Só vai ter gente bonita! Consegui todos os jogos! Setor Vip! Ei, Dilma, vá tomar no c...! Ei, Dilma, vai tomar no c...! Esses terroristas estão acabando com o Brasil! Já estou com vergonha! O caos deve ter começado. Pelo menos será o fim dela. Finalmente, o mundo inteiro, que foi enganado por tanto tempo por aquele analfabeto de quatro dedos, prestando-lhe inúmeras homenagens, saberá a verdade sobre a porcaria de país que esses bolivarianos deixaram. Uuuuuuu, hino do Chile! Uuuuuuuu!

Tá, a Copa pode até estar boazinha. Os aeroportos funcionaram, a mobilidade urbana e a segurança também estavam ok, mas os governantes não têm qualquer mérito. Para começar, tudo bem que sediamos o evento, mas até a África do Sul fez isto antes. Perdemos para os africanos! Os africanos! Houve uma grande coincidência astrológica na conjuntura internacional que favoreceu o Brasil. As luas de saturno fizeram ângulo de 65 graus com plutão, de modo que tudo conspirava a favor do sucesso dos jogos. Essa quadrilha vive conspirando com Cuba, mas, com um governo  sério de verdade, o evento seria muito, mas muito melhor! Sem comparação!

Vocês só enganam os miseráveis sem educação. Para mim, podemos chamar este período vermelho de "A Copa Perdida". Aliás, não me venham com essa história de serem os pais da Copa. Todas as pessoas bem informadas sabem que ela já existia na era do Príncipe. O Operário, como sempre, ludibriou o povo, roubou o projeto do outro, mudou o nome e ficou com todos os méritos. Acordem, pesquisem e, principalmente, vejam! Vejam! A Copa, nos bons tempos, chamava-se Mundial de Clubes da Fifa. Em 2000, com primor de organização, foi vencida pelo Corinthians de Gilmar Fubá, após o empate sem gols contra o Vasco de Odvan. No Maracanã!

O que acontece em campo não tem nada com política! Até parece que se faz gol por decreto... Hipócritas! Querem se aproveitar do que os atletas fazem! Vai começar. Bernard no lugar de Neymar. Um a zero pra eles, Dois! Três! Ei, Dilma, vá tomar no c...! Ei, Dilma, vá tomar no c...! Bora Alemanha! Seis! É Hexa!Esta derrota é o reflexo de um país sem educação e sem saúde! Brasil de m... ! Nem comprar a Copa sabe... Ainda bem que tem eleições em outubro! Cadê aquele monte de montagem sobre ela que eu guardei? Vou voltar a falar de Copa no facebook, hoje! Eba! Quase um mês calado... Que esse jogo sirva para o povo, finalmente, aprender a votar. Fora comunismo no Brasil!  A culpa é toda deles! Não falei que esses vermelhos não prestam? Olha que vexame! Hahahahaha! Tudo exatamente como eu previ.

Moral da História: "O urubu tá com raiva do boi e eu já sei que ele tem razão. É que o urubu tá querendo comer, mas o boi não quer morrer, não tem alimentação".

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Coelhos, Hienas e Lobos. As mordidas do caso Suárez.



O conhecimento não se resume aos livros, ou às instituições formais de ensino. Ao contrário, cada aspecto da vida apresenta infinitos motes para reflexões. Manifestações artísticas, por exemplo, são extremamente frutíferas para a criminologia. Possibilitam aos seus autores grande dose de liberdade de expressão e uma posição de poder que garante certa imunidade. Enquanto um preso, ou ex-preso, comum precisa interpretar um papel de arrependido, ao falar publicamente da sua versão sobre um crime, um músico pode, abertamente, explicar porque, na sua ótica, um delito seria justificável. No futebol, acontece algo semelhante e o uruguaio Luiz Suárez é um personagem especialmente rico.

Luizito, como é chamado por sua torcida, enfrentava a forte equipe da Itália, quando, de repente, levou o rosto ao ombro de um oponente e, para espanto geral, o mordeu. Logo a seguir, jogou-se no chão e levou as mãos aos dentes, simulando uma pancada ma boca. O juiz não viu nada e ele ficou em campo até o fim do jogo. Mas, todas as câmeras de televisão viram. O anti-herói foi julgado e, muito rapidamente, condenado à suspensão por 09 partidas e o afastamento por 04 meses de qualquer atividade relacionada ao futebol, inclusive no  seu clube. Ele não pode sequer entrar em estádios de futebol. Perdeu a credencial da FIFA e está proibido de continuar com os companheiros de equipe.

O processo e a pena dividiram opiniões. Evidentemente, não faltam aqueles que consideraram tudo correto. Algumas pessoas, entretanto, protestam contra o modo de julgar, em que a possibilidade de defesa foi muito escassa, a sessão de deliberação secreta, não se sabe se havia a separação entre acusador e julgador, nem quais os fundamentos para chegar à decisão. Certamente, como a prova da "acusação" eram vídeos, poderia ser útil à defesa analisar as imagens na frente dos julgadores. Seria o momento de discutir se as imagens comprovam realmente o ato, ou a sua intensidade. Aparentemente, a decisão estava tomada, não importando o que fosse feito para ajudar o jogador, especialmente, por não ser a primeira vez que um adversário é apresentado à arcada dentária do artilheiro celeste, punido duas vezes pela mesma razão (no campeonato holandês e no campeonato inglês). 

Há ainda quem reclame da pena excessiva. 09 jogos é o maior afastamento da história das Copas, enquanto a mordida certamente não chega nem perto de ser a mais danosa agressão cometida. Lembremos que, em 1994, o brasileiro Leonardo provocou fraturas no rosto de Tab Ramos, dos Estados Unidos, com uma cotovelada, mas foi suspenso por apenas 04 jogos. O italiano deve ter se tratado com merthiolate e band-aids. O americano precisou ser operado. Alguns jornalistas, antes da decisão, achavam que Suarez merecia um jogo de suspensão. A maioria, contudo, entendeu ser razoável que ele ficasse fora da Copa. 

O que mais chama atenção, entretanto, é o "banimento" por 04 meses de qualquer estádio, com a proibição de continuar acompanhando à sua equipe. Até mesmo a vítima considerou exagerado. É inegável a semelhança, logo notada por juristas, com a teoria do Direito Penal do Inimigo. Como Suarez era reincidente na infração, a FIFA entende que ele teria renegado as  regras da "sociedade futebolística" e, por consequência, deveria perder o status de "cidadão". Assim, além de ter sido julgado por métodos contestáveis, ele foi excluído da comunidade. Virou uma espécie de "pária", até o final da pena.

Há, no entanto, um aspecto sobre esta parcela da punição que pode ter sido mais decisiva que a influência de Jakobs: a vontade de humilhar, de "dar o exemplo". Um dos julgadores declarou que era preciso que a sanção fosse rigorosa, senão, o futebol morreria. Como se vê, há uma grande dose de histeria na sentença. À pena rigorosa é atribuído o condão de salvar o mundo de calamidades e tragédias iminentes. Novamente, o futebol nos traz de volta à forma como a justiça é encarada também fora dele, com a habitual crença em monstros e deuses imaginários. O esporte reproduziu o pânico e a mania de grandeza com que a questão das penas é abordada diariamente.

O fato é que nunca houve uma onda de dentadas, que ameaçasse o esporte. Fora o uruguaio, é possível que tenha havido somente um mordedor recente: o atacante Emerson Sheik do Corinthians, na final da libertadores. O brasileiro não foi punido e não houve nenhuma campanha por punição. Ao contrário, ele foi elogiado pela esperteza. Mesmo com a sanção severa, é difícil imaginar que as trapaças no esporte deixem de ser elogiadas ou toleradas, quando dão certo. É assim que funciona aqui fora, quando os sonegadores de impostos, pedem a prisão de quem furta. Os consumidores e vendedores de álcool clamam pelo aumento de pena para tráfico de drogas. Aliás, o risco que a venda de maconha oferece à saúde pública pode ser comparado ao risco que uma mordida oferece ao futebol. No primeiro caso, todavia, não há vítimas, pois a compra é voluntária.

Na guerra contra os terríveis inimigos de fantasia, exigimos tratamento cruel e impiedoso. O preso não pode ver televisão, não pode receber comida dos parentes, não pode ter um mínimo de conforto. Tudo é considerado regalia. Tem que vestir farda, baixar a cabeça, varrer o chão e sofrer. Nesse contexto, Suárez não poderia ficar apenas fora da Copa. Para satisfazer a sanha por uma espécie torta e medieval de justiça, exige-se a humilhação. Era necessário a retirada da credencial, o impedimento de almoçar e saída, chorando, da concentração. É assim que os que se acham bons e puros distribuem sua pureza e sua bondade. Um coelho pode até morder, mas se for apanhado, logo conhecerá a fome das hienas e até mesmo dos lobos.  
 


segunda-feira, 28 de abril de 2014

Muito Além de Fotos com Bananas



Uma das mais intrigantes formulações de Freud foi o conceito de feridas narcísicas. Lembrando o antigo mito de um homem apaixonado pela própria imagem, o pai da psicanálise conta que a humanidade se comporta da mesma forma. Três eventos machucaram fatalmente esta auto idolatração:  a percepção de que a terra (e consequentemente o homem) não era o centro do universo; a consciência de que muitas decisões que tomamos seriam inconscientes, de modo que não controlamos nem a nós mesmos; e, finalmente, a elaboração da teoria da evolução, provando que não somos a imagem e semelhança de Deus, mas que viemos de seres menos evoluídos, especialmente do macaco.

Por muitos séculos, os africanos foram escravizados em todo o mundo. Em busca de legitimação moral desta prática repugnante e lucrativa, pediu-se auxílio à Igreja. Os clérigos tranquilizaram os vendedores, compradores e exploradores de escravos, asseverando que os negros não teriam alma. Não tinham alma, logo não eram gente. Dizia-se que pessoas de pele preta andavam como os brancos, tinham dois braços, duas pernas e até certa inteligência, mas não eram homens. Eram animais, talvez os mais espertos da natureza, exatamente como os chimpanzés. Conceitos espirituais e biológicos se cruzaram, para concluir que os negros, na teoria da evolução, estavam em um patamar inferior. É dentro desta história que se deve analisar cada piada associando negros a macacos.

Na Espanha, durante um jogo de futebol, o baiano Daniel Alves se preparava para cobrar um escanteio, quando arremessaram uma banana perto dele. Segundo o jogador, ele sempre ouve pessoas imitando sons símios, onde joga há onze anos. Em um ato inesperado, abaixou-se, apanhou a fruta, jogou sua casca fora e a colocou toda na boca. Ainda mastigava quando chutou a bola. Rapidamente, a imagem correu o mundo e todos elogiaram a coragem e criatividade do atleta. De fato, sua ironia foi uma ótima resposta para cada racista que pratica atos semelhantes. Com o gesto dizia que poderia comer bananas, tranquilamente, sem que isto o colocasse em condição de inferioridade. Afinal de contas, justificou, bananas previnem câimbras.

Pouco depois, teve início uma campanha que virou febre. Pessoas postavam na internet fotos com bananas e cartazes dizendo que "somos todos macacos", em apoio a Daniel. Começou com Neymar, companheiro de equipe e alvo frequente das mesmas ofensas, mas que disse não se considerar negro (fato que não depõe contra ele, mas sim contra a suposta democracia racial que alardeiam por aqui). Depois, vieram artistas de televisão, como Luciano Huck, Angélica e chegou até ao colunista de direita Reinaldo Azevedo. Em comum, entre as pessoas que se destacavam nessa corrente estava o fato de jamais terem se manifestado veementemente contra as violências cotidianas contra os negros. Alguns deles, ao contrário, sempre tentaram relativizá-las e retirar-lhes o conteúdo racial.

A frase escolhida acaba distorcendo o gesto do jogador, por ignorar todo o passado e toda a carga semântica da comparação de pessoas que eram consideradas seres quase humanos evolutivamente inferiores e macacos. Luciano Huck nunca precisou explicar porque não usava o elevador de serviço. Ninguém diria que Angélica não tem cara de médica. Reinaldo Azevedo não será parado na maioria das blitzes que enfrentar. Para eles ser chamado de macaco significaria que são engraçados ou espertos. Para os negros significa que são inferiores.  Bem mais inteligente foi o texto usado por Ivete Sangalo, "dê uma banana ao racismo", ou a frase do Ministério Público Federal, "somos todos humanos".

Caso alguém te chame de feio, você esperará que te defendam dizendo que você é bonito e não que todos também são horríveis. Quando chamam negros de macacos, deve-se responder que eles não são inferiores. Dizer que todos são macacos é recolocar o alvo do racismo no mesmo lugar do século XIX, porém, dizendo para ele deixar isto para lá. Não adianta dizer que todos temos a mesma origem biológica. É preciso reafirmar a condição humana de todos e não negá-la. Infelizmente, a repercussão da reação ao gesto racista parece apenas fingir que o racismo não existe. Talvez existam mais feridas que tentamos ocultar, além das explicitadas por Freud.

Seria bom ver os recentes adeptos ao combate contra a discriminação, lutando de verdade contra essa praga. Que tal combater a seletividade penal? Que tal deixar de fazer beicinho contra as cotas? Que tal parar de falar em cabelo "ruim"? Que tal não ironizar a eleição de Lupita como a mulher mais bonita do mundo? Que tal trocar a hastag da moda pela muito mais significativa  #somostodosquilomboriodosmacacos? Fazer algo contra o problema passa por reconhecer que ele existe e combatê-lo em cada fresta que ocupa, mesmo quando não arremessa frutas. Se queremos ser Daniel Alves comendo a banana, não devemos deixar que ela o engula. Precisamos, sim, vomitá-la de volta, na cara dos ignorantes. Somos todos Daniel Alves, mas nenhum de nós, nem ele, é macaco.

   

terça-feira, 18 de março de 2014

Abri a Porta.



Há sete anos, sou defensor público. Quando falava na carreira que gostaria de seguir, costumava sentir estranhamento e até menosprezo.  O Estado pagava relativamente pouco e a profissão era considerada a mais trabalhosa e mais desprestigiada do meio jurídico. Alguns não escondiam outra causa de repulsa: trabalhava com os pobres. "O povo fede", foi uma frase que ouvi. Mais de uma vez.

Passei no concurso, mas não recebi o prêmio imediatamente. Ao lado de outros que fizeram a mesma opção e para quem a Defensoria não era um "concurso meio", precisei virar freguês da assembleia legislativa, das secretarias estaduais, dos programas de rádio e televisão. Sem pressão, não conseguiríamos ser nomeados. Certa feita, furamos até a segurança do governador, para entregá-lo um manifesto. Nunca vi os aprovados em outros concursos jurídicos passando pelo mesmo sofrimento. Tive inveja. Queria que vissem que eu era tão bom quanto eles.

Tomei posse e logo ouvi que, para ser tratado como eles, eu teria que ser igual a eles. Vista-se igual. Compre um carro igual, ainda que precise financiar em mil parcelas. Vá para os mesmos lugares. Exija ter tudo o que eles têm. Durante um certo tempo, fiz isto. Usava minha carteira funcional, para ser respeitado. Entrei no cinema, sem pagar, dizendo que se eles tinham gratuidade, eu também possuía o mesmo direito. Estava quase chegando ao ponto de ir ao estádio na tribuna de honra, porque descobri que assim eles faziam. Até que acordei.

Olhei para mim mesmo e senti nojo. Não foi para me tornar alguém assim que enfrentei tantos obstáculos. Eu estava fazendo a luta errada. Era só mais um porco na revolução dos bichos. Não quero sentar no alto. Quero que eles desçam e fiquem no mesmo plano que todos. Não quero ser doutor. Quero que eles sejam você, assim como eu. Não quero prioridade na fila. Quero filas menores. Não quero ir para a Tribuna de Honra. Quero sentar junto com o povo e sentir que faço parte dele. 

Não faço questão do seu cafezinho. Não preciso entrar pela sua porta. Tenho pena de quem tem tanto medo e insegurança que precisa criar portas cada vez mais exclusivas para se sentir melhor. Não tenho qualquer admiração por esse respeito arrancado à força, com autoritarismo. Não vale nada ser considerado bom, apenas porque se tem poder, ou se está perto do poder. A admiração que eu anseio conquistar é a decorrente de ajudar as pessoas a abrirem as portas que vêem sempre fechadas. O respeito que preciso é que respeitem quem eu defendo. 

Texto em homenagem a todos os que compreendem o que é Defensoria Pública e, especialmente, aos Defensores Públicos que trabalham no Fórum de Caucaia-CE.