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segunda-feira, 28 de abril de 2014

Muito Além de Fotos com Bananas



Uma das mais intrigantes formulações de Freud foi o conceito de feridas narcísicas. Lembrando o antigo mito de um homem apaixonado pela própria imagem, o pai da psicanálise conta que a humanidade se comporta da mesma forma. Três eventos machucaram fatalmente esta auto idolatração:  a percepção de que a terra (e consequentemente o homem) não era o centro do universo; a consciência de que muitas decisões que tomamos seriam inconscientes, de modo que não controlamos nem a nós mesmos; e, finalmente, a elaboração da teoria da evolução, provando que não somos a imagem e semelhança de Deus, mas que viemos de seres menos evoluídos, especialmente do macaco.

Por muitos séculos, os africanos foram escravizados em todo o mundo. Em busca de legitimação moral desta prática repugnante e lucrativa, pediu-se auxílio à Igreja. Os clérigos tranquilizaram os vendedores, compradores e exploradores de escravos, asseverando que os negros não teriam alma. Não tinham alma, logo não eram gente. Dizia-se que pessoas de pele preta andavam como os brancos, tinham dois braços, duas pernas e até certa inteligência, mas não eram homens. Eram animais, talvez os mais espertos da natureza, exatamente como os chimpanzés. Conceitos espirituais e biológicos se cruzaram, para concluir que os negros, na teoria da evolução, estavam em um patamar inferior. É dentro desta história que se deve analisar cada piada associando negros a macacos.

Na Espanha, durante um jogo de futebol, o baiano Daniel Alves se preparava para cobrar um escanteio, quando arremessaram uma banana perto dele. Segundo o jogador, ele sempre ouve pessoas imitando sons símios, onde joga há onze anos. Em um ato inesperado, abaixou-se, apanhou a fruta, jogou sua casca fora e a colocou toda na boca. Ainda mastigava quando chutou a bola. Rapidamente, a imagem correu o mundo e todos elogiaram a coragem e criatividade do atleta. De fato, sua ironia foi uma ótima resposta para cada racista que pratica atos semelhantes. Com o gesto dizia que poderia comer bananas, tranquilamente, sem que isto o colocasse em condição de inferioridade. Afinal de contas, justificou, bananas previnem câimbras.

Pouco depois, teve início uma campanha que virou febre. Pessoas postavam na internet fotos com bananas e cartazes dizendo que "somos todos macacos", em apoio a Daniel. Começou com Neymar, companheiro de equipe e alvo frequente das mesmas ofensas, mas que disse não se considerar negro (fato que não depõe contra ele, mas sim contra a suposta democracia racial que alardeiam por aqui). Depois, vieram artistas de televisão, como Luciano Huck, Angélica e chegou até ao colunista de direita Reinaldo Azevedo. Em comum, entre as pessoas que se destacavam nessa corrente estava o fato de jamais terem se manifestado veementemente contra as violências cotidianas contra os negros. Alguns deles, ao contrário, sempre tentaram relativizá-las e retirar-lhes o conteúdo racial.

A frase escolhida acaba distorcendo o gesto do jogador, por ignorar todo o passado e toda a carga semântica da comparação de pessoas que eram consideradas seres quase humanos evolutivamente inferiores e macacos. Luciano Huck nunca precisou explicar porque não usava o elevador de serviço. Ninguém diria que Angélica não tem cara de médica. Reinaldo Azevedo não será parado na maioria das blitzes que enfrentar. Para eles ser chamado de macaco significaria que são engraçados ou espertos. Para os negros significa que são inferiores.  Bem mais inteligente foi o texto usado por Ivete Sangalo, "dê uma banana ao racismo", ou a frase do Ministério Público Federal, "somos todos humanos".

Caso alguém te chame de feio, você esperará que te defendam dizendo que você é bonito e não que todos também são horríveis. Quando chamam negros de macacos, deve-se responder que eles não são inferiores. Dizer que todos são macacos é recolocar o alvo do racismo no mesmo lugar do século XIX, porém, dizendo para ele deixar isto para lá. Não adianta dizer que todos temos a mesma origem biológica. É preciso reafirmar a condição humana de todos e não negá-la. Infelizmente, a repercussão da reação ao gesto racista parece apenas fingir que o racismo não existe. Talvez existam mais feridas que tentamos ocultar, além das explicitadas por Freud.

Seria bom ver os recentes adeptos ao combate contra a discriminação, lutando de verdade contra essa praga. Que tal combater a seletividade penal? Que tal deixar de fazer beicinho contra as cotas? Que tal parar de falar em cabelo "ruim"? Que tal não ironizar a eleição de Lupita como a mulher mais bonita do mundo? Que tal trocar a hastag da moda pela muito mais significativa  #somostodosquilomboriodosmacacos? Fazer algo contra o problema passa por reconhecer que ele existe e combatê-lo em cada fresta que ocupa, mesmo quando não arremessa frutas. Se queremos ser Daniel Alves comendo a banana, não devemos deixar que ela o engula. Precisamos, sim, vomitá-la de volta, na cara dos ignorantes. Somos todos Daniel Alves, mas nenhum de nós, nem ele, é macaco.